A Prayer For The Heartless escrita por Izzy Aguecheek


Capítulo 10
Sebastian


Notas iniciais do capítulo

Eu não acredito que consegui terminar esse capítulo 'O' perdão pela demora! Minhas aulas voltaram e eu também não pude escrever no Carnaval, sem falar que a carga emocional desse capítulo é maior do que a dos outros (o capítulo é quase todo só falando das emoções do Sebastian pfffff), então foi o mais difícil até agora. Espero que gostem!



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I cannot spend another night in this home

I close my eyes and take a breath real slow

The consequence is if I leave I'm alone

But what’s the difference when you beg for love?

As I run through glass in the street

Kerosene hearts

Carry the name that my father gave me

And take the face of the Wolf

 

Eu não posso passar outra noite nessa casa

Eu fecho meus olhos e respiro bem devagar

A consequência é que se eu partir, eu estou sozinho

Mas qual é a diferença quando você implora por amor

Enquanto eu corro por vidro na rua

Corações de querosene

Carregam o nome que meu pai me deu

E tomam o rosto do Lobo

           Pierce The Veil – Hell Above

 

Preach all you want, but who’s gonna save me?

 

Reze o quanto quiser, mas quem vai me salvar?

            My Chemical Romance – Thank You For The Venom

A mente de Sebastian era puro barulho. Primeiro, havia os sons de estilhaço: a garrafa de vodca se espatifando no chão da sala, o copo estourando em mil pedaços contra a parede da cozinha de Jocelyn, o porta-retratos rachando no quarto de Valentim, seu próprio coração, dia após dia. Depois, havia o vento e o ruído dos motores: o Volvo de Valentim parando na porta da escola para buscá-lo, o assobio do ar produzido pelo carro que quase o atropelara, o rugido quase suave do Porsche enquanto ele acelerava.

Havia estalos de tapas, rangidos de dobradiças e o som suave de lágrimas caindo; o que mais perturbava Sebastian, porém, eram as vozes. Ele não conseguia distinguir uma da outra, embora soubesse exatamente a quem elas pertenciam; as palavras eram claras o suficiente para isso. Havia a voz de Valentim, perguntando se ele sabia que horas eram, e a de Jocelyn, dizendo que tentara, mentindo para ele para fazê-lo acreditar que ela havia tentado. Simon, dizendo que Clary o considerava um irmão de verdade. Tantas, tantas vozes. Tantas vozes e nenhuma verdade.

Exceto, talvez, pelas vozes que lhe diziam que ele era um problema. Sebastian não tinha como argumentar contra essas.

Ele mal percebeu o que estava fazendo quando parou em um posto de gasolina, praticamente na estrada interestadual. Sebastian desceu do carro e foi até a loja de conveniência, onde usou uma identidade falsa para comprar uma garrafa de vodca e um pacote de salgadinhos. Se não estivesse tão transtornado, teria tentado convencer a moça atrás do caixa a deixá-lo levar a bebida; pelo olhar que ela lhe lançou, não teria sido difícil.

 - Você parece estar com pressa – observou a moça, se inclinando por cima do balcão e quase para fora de seu decote. Era uma loira bonitinha, com a aparência mais genérica que Sebastian já vira. O crachá em seu peito indicava que se chamava Kelly. Um nome comum para uma garota comum.

   Sebastian retribuiu o sorriso que ela lhe ofereceu.

   - Ah, eu estou sempre com pressa – afirmou. O que, de certa forma, era verdade.

  - Aquele que se apressa em vida, apressa-se em chegar à sepultura* – retrucou Kelly. Algo na forma como ela falou deu a impressão de que a frase era uma citação, e Sebastian achou mais do que justo responder com outra citação:

   - Porque os mortos viajam depressa**.

   Kelly estava rindo quando Sebastian deixou a loja de conveniência para trás. Ele não sabia o que fazer em seguida, mas certamente tinha uma forma mais eficiente de preencher o vazio em seu peito agora. Conversar com Clary, que ideia estúpida, francamente. Não era para isso que existia a vodca?

   Sebastian abriu a garrafa com uma mão só, enquanto dava a partida com outra, o pacote de salgadinhos já esquecido no banco do carona. Ele ia seguir o plano original, decidiu: ir para a interestadual e nunca mais voltar. Sem procurar um amigo, porém. Para o inferno com os amigos. Sebastian havia passado a vida inteira sem amigos. Não precisava arrumar um agora.

   Quando chegou, de fato, à interestadual, a garrafa de vodca estava quase vazia, mas Sebastian estava prestes a transbordar, e sua cabeça, prestes a explodir. Ele não tinha para onde ir, e, para um garoto que passara a vida inteira sendo jogado de um lado para o outro com a ilusão de que tinha um lugar no mundo, a certeza absoluta disso era um alívio. Ele não queria um lugar para ir, a menos que fosse à porra do inferno. Mesmo assim, não conseguiu deixar de se perguntar o que seus pais estariam fazendo agora.

Valentim não se preocuparia com ele durante algum tempo; Sebastian já fugira de casa antes. Uma vez, quando tinha catorze anos, passara quatro dias fora, dormindo uma noite na casa de Meliorn, e três no beco atrás do colégio. Fora assim que conhecera as pessoas certas para se arrumar um cigarro, e fora assim que descobrira que cidades à noite são assustadoras quando não se é um Morgenstern, e, é claro, se apaixonara por essa atmosfera. Quando voltara para casa, assustado, mas com o sorriso arrogante e o gosto de fumaça ainda na boca, Valentim recebera-o com o cinto, uma semana sem jantar e nenhuma alegria por tê-lo de volta.

Distraidamente, Sebastian se perguntou se Clary já havia fugido de casa. Chegou à conclusão de que provavelmente não; que motivos ela teria, afinal? Jocelyn a receberia de volta com um sermão, uma semana de castigo e o rosto de uma mãe que perdera muito sono por causa da preocupação com a filha. Sebastian ponderou que, se tivesse uma mãe assim, ele também nunca fugiria; não valia a pena. Valentim ao menos mordera a isca e aceitara a provocação.

 O barulho em sua mente estava ficando mais alto, então Sebastian estendeu a mão e ligou o rádio. O sinal ali era fraco, e a música, irritante; ele desligou o aparelho após trinta segundos e abriu as janelas.

A estrada tinha cheiro de gasolina e poeira, e aquilo o agradou. Ele quase sentiu vontade de voltar ao posto que acabara de deixar, quem sabe conversar um pouco com a moça atrás do balcão antes de voltar para casa. Então, lembrou-se do olhar de fúria de Valentim e do nome genérico no crachá da moça, e a ideia perdeu todo o apelo. Mas, apesar disso, Sebastian ainda se sentia insuportavelmente sozinho. Agora que olhava para trás, percebia o quão solitário estivera durante todos os anos de sua vida, e, portanto, isso não devia mais doer tanto; mas doía, o suficiente para fazê-lo frear o carro bruscamente e pegar o celular.

Devagar, Sebastian repassou mentalmente o encontro com Clary e o que ele jurara ser a última vez que procuraria por simpatia. Os contatos em sua agenda não lhe ofereceriam nada além de preocupação forjada, rancor e cortes afiados, e, dessa vez, ele sabia disso.

Não que fizesse diferença, no fim das contas. Sebastian pressionou o botão de ligar, acionou a função de viva voz e aguardou. Porque Sebastian Morgenstern era um mentiroso e um traidor, e mentirosos e traidores quebram qualquer promessa, incluindo as que fazem a si mesmos.

Ao contrário da filha, Jocelyn demorou a atender o telefone. Sebastian estava prestes a desligar quando ouviu a voz:

— Sebastian?

O tom dela o irritou e o fez se sentir culpado, e, acima de tudo, o magoou. Havia algo indiscutivelmente maternal nele, e Sebastian sabia que era pura e exclusivamente porque ela sabia que ele havia machucado a irmã. Afinal, Jocelyn Fray era, acima de tudo, mãe de Clary.

Sem conseguir pensar em algo melhor e arrependido de ter ligado, Sebastian disse:

— Jocelyn – Ele ouviu uma voz ao fundo, e acrescentou: - E Luke. Ou quem quer que esteja aí.

Houve um ruído, e uma voz mais jovem substituiu a de Jocelyn.

— Clary. É a Clary.

Sebastian fechou os olhos.

— É claro.

— Suponho que esteja ligando porque agora não tem mesmo ninguém, não é?

Ela estava furiosa, e, pela primeira vez em muito tempo, isso não trouxe a Sebastian nenhuma satisfação. Não havia nada além daquele abismo.

— Jocelyn, eu liguei para falar com você, não com sua maldita secretária – Os lábios de Sebastian se retorceram em um sorriso, porque ele sabia que precisava do sorriso para encarar fosse lá o que fosse aquilo em que havia se metido. – Embora eu tenha tido sorte, suponho, por não ter sido seu cachorro que atendeu.

Do outro lado da linha, mãe e filha tiveram uma breve discussão, então a voz de Jocelyn assumiu o comando.

— Suponho que não tenha ligado para se desculpar, então.

— Suponho que não faria diferença, porque ela não vai me desculpar – Como Jocelyn não respondeu, Sebastian continuou, com petulância: - Clary não deu o meu recado?

Qual recado, Sebastian?

— Eu disse a ela para mandar um beijo. Logo depois do nosso pequeno desentendimento.

Ele não achava que já tivera tanta facilidade em irritar a mãe antes; estava óbvio que a paciência de Jocelyn estava no limite. Sebastian deveria ter adivinhado que mexer com Clary era o método mais eficaz. Jocelyn devia odiá-lo agora.

Pequeno desentendimento? Minha filha chega em casa aos prantos, com uma marca vermelha no rosto, e diz que você a agrediu, e você chama isso de pequeno desentendimento?

— Bem, irmãos fazem essas coisas, não fazem?

Ele queria que Jocelyn lhe dissesse que eles não eram irmãos, que Sebastian não era filho dela. Queria que ela lhe dissesse para fica longe de Clary, para desaparecer da vida de todos eles. Tornaria tudo mais fácil. Esperança era uma coisa perigosa, e, portanto, a única emoção que Sebastian Morgenstern não conseguia matar sozinho.

Ao invés disso, Jocelyn disse, com firmeza:

— Não, não fazem.

Sebastian respirou fundo.

— Eu não pretendia bater nela – disse.

Se Jocelyn não lhe ofereceria um motivo para ir embora, Sebastian precisava obter alguma outra coisa dela. E ele estava sendo sincero.

Jocelyn ficou em silêncio por alguns instantes, então disse:

— Acho que não importa, não é? – A voz dela estava trêmula, e Sebastian sabia que era de raiva dessa vez. Nada de arrependimentos agora; ela provavelmente estava mais feliz do que nunca por ter se afastado do filho. – Não acho que importe para você.

Sebastian lembrou-se da conversa que tivera com Jocelyn na cozinha da casa dela, apenas alguns dias atrás, quando ele havia dito quase a mesma coisa sobre se acreditaria que a mãe o amava, e finalmente admitiu para si mesmo que estava procurando a única coisa que nunca procurara: redenção. Sebastian havia procurada por amor, luxúria, dor, e até raiva, nos dias ruins; mas ele nunca pedira desculpas a ninguém.

Quase sem voz, ele repetiu as palavras de Jocelyn, amargas e pesadas em sua boca:

— Eu me importo que você pense assim – Sebastian engoliu em seco, e repetiu, mais alto dessa vez, para que Clary pudesse ouvir: - Eu me importo.

Ele desligou o telefone, e as paredes começaram a ruir.

Se Valentim não se importasse com Sebastian, não teria cuidado dele durante toda a vida. E, se se importasse de verdade, não o teria tratado daquele jeito. Se Jocelyn se importasse com Sebastian, não teria ido embora. Se Clary não se importasse com ele, não teria atendido à ligação mais cedo, e, se ele se importasse com ela, não a teria chamado para dar uma volta. Importância: essa era a chave e a fechadura. Se Sebastian não se achasse tão importante, talvez conseguisse se importar consigo mesmo.

 O mundo desabou completamente quando ele deu a partida no Porsche, tomou os últimos goles da vodca e pegou o celular de novo. Analisou a lista de contatos outra vez, prestando pouca atenção à estrada, e apertou o botão de discagem rápida; o único número ali era o de seu pai. Antes que a chamada fosse completada, Sebastian a encerrou, desligou o aparelho e jogou-o no banco do carona.

 Ele estava bêbado, e parte dele odiava isso. Fazia com que ele se lembrasse de chegar em casa depois de uma festa particularmente agitada e receber uma bronca do pai, do vinho que costumava tomar na casa de Seelie, do estado em que Jace o havia encontrado. Mas, ao mesmo tempo, lhe dava algo para culpar pela dormência em seu corpo, e, no momento, isso era tudo que Sebastian podia desejar.

***

O sol já estava se pondo quando a ideia de descobrir onde estava passou pela cabeça de Sebastian. Ele brincou com ela por alguns minutos antes de decidir que não estava nem aí; dessa forma, estava perdido em todos os sentidos da palavra, e isso o agradava. Sebastian era uma pessoa familiar com os extremos.

Ele havia dirigido por horas, com álcool e ódio corroendo suas veias, mas não se sentia cansado. Tinha certeza de que conseguiria chegar no estado vizinho antes do amanhecer, se quisesse; entretanto, não queria. Fugir para outro estado o ajudaria a se livrar do pai, definitivamente, e a esquecer da relação difícil com a mãe, com um pouco de sorte, mas nenhuma distância seria o suficiente para afastá-lo de si mesmo; então, qual era o sentido?

Sebastian parou em outro posto de gasolina, comprou outra garrafa de vodca e, enquanto esperava o atendente encher o tanque do carro, verificou as chamadas perdidas no celular. Valentim havia ligado três vezes, o que fez com que seu coração se contorcesse dolorosamente com um misto de raiva, curiosidade e saudade. Ele decidiu deixar o telefone ligado dessa vez, embora não soubesse bem se deveria atendê-lo caso tocasse.

— Belo carro – comentou o frentista, quando terminou de colocar a gasolina. Sebastian ergueu os olhos do celular e arreganhou um sorriso para ele.

— É, não é? O cara de quem eu roubei também era – Ele pagou em dinheiro pelo serviço e abriu a porta do motorista. – Pode ficar com o troco. Vê se compra uma calça decente.

Antes que o frentista pudesse sequer pensar em retrucar, Sebastian já havia deixado o posto. Porque os mortos viajam depressa, e não há muita vida em querer saltar da própria pele.

Havia uma quantidade surpreendentemente grande de carros na estrada àquela hora, mas isso não fez com que Sebastian prestasse mais atenção ao trânsito. Ele abriu a nova garrafa de vodca e tomou um gole longo antes de deixá-la de lado por algum tempo. Não queria ficar bêbado a ponto de esquecer todas as suas preocupações; se fizesse isso, não sobraria mais nada, e se sentir como nada era ainda pior do que se sentir como um ninguém.

Foi unicamente por causa disso que, quando seu celular começou a tocar, Sebastian atendeu. Não parou o carro, não olhou para a tela para ver quem era; simplesmente apertou o botão e aproximou o aparelho do ouvido, sem dizer nada. Seus contatos não lhe proporcionariam nada além de cortes afiados, mas o que eram cortes para alguém que empunhava palavras como espadas?

— Sebastian.                     

Não era apenas a voz de Valentim que era inconfundível; havia algo na certeza com a qual ele dissera o nome, a calmaria antes de uma tempestade. A certeza de alguém que, ao contrário de Jocelyn, não só sabia bem o filho que tinha como estava acostumado a ter a obediência dele. Sebastian estampou seu sorriso mais exagerado, mesmo que ninguém estivesse por perto para ver, e disse:

— Olá, papai.

— O que você fez? — E aí estava: a essência da relação deles. Nenhum alívio por saber que o filho estava bem, nenhuma preocupação em saber onde ele estava, nenhuma ameaça para tentar fazê-lo voltar para casa. Só a acusação, como sempre. O que você fez, Sebastian? Você sabe que horas são? Vou precisar voltar aos velhos métodos, se você continuar se comportando mal assim. — Sua m... Jocelyn me ligou. O que você fez?

— Seja lá o que tenha sido, você deveria me agradecer – Sebastian deu de ombros, incapaz de se conter. Cada músculo em seu corpo estava tenso. – Considerando que a Jocelyn faz o possível para não falar com você e tudo.

— Não me venha com gracinhas, Sebastian – Por um momento, Valentim soou quase tão cansado quanto Jocelyn soara na terça-feira, na cozinha da casa dos Fray. Sebastian sentiu uma pontada de culpa antes que esta fosse consumida pelo buraco negro em seu interior. – Ela parecia bastante preocupada, e Jocelyn não fica preocupada à toa.

Ele ainda a ama. Ele é capaz de amar, só não a mim. A mente embriagada de Sebastian não conseguiu pensar em uma maneira de resumir o que acontecera, então ele disse:

— Eu desliguei na cara dela. Acho que é por isso.

Ele ouviu Valentim respirar fundo do outro lado da linha.

— Você acha que ela ficou preocupada porque você desligou na cara dela?

— É.

Houve um momento de silêncio, então Valentim tornou a falar, soando estranhamente suave:

— E por que diabos você ligou para ela, para começo de conversa?

— Porque eu não queria ligar para você.

As palavras eram afiadas, mas o tom estava errado. Fazia com que Sebastian parecesse um garotinho fazendo birra. Fazia com que Sebastian se lembrasse de como Valentim o via.

— Jocelyn disse que achava que você ia fazer alguma besteira – disse Valentim. – Eu disse a ela que nada me surpreenderia, vindo de você.

Aquilo era um teste. Sebastian estava cansado de testes; não importava qual fosse sua reação, ele sempre se saía mal. Por isso, ele ficou em silêncio dessa vez, até Valentim ceder:

— Volte para casa.

— Para você poder me punir por ter pegado o carro? – retrucou Sebastian. – Não, obrigado.

Silêncio.

— Foi você quem quebrou o porta-retratos – disse Valentim, por fim.

— Você nunca teve nenhuma foto minha – Sebastian ficou surpreso com a amargura na própria voz, embora não devesse. – Por que deveria ter uma delas?

Não fora assim que ele planejara. Ele deveria ter simplesmente ido embora, jogado o telefone pela janela e deixado o pai se perguntando o que acontecera. E, quando atendera à ligação de Valentim, definitivamente não planejara soar tão patético. Tão carente.

— Não que faça diferença, aliás – acrescentou, abrindo um sorriso de escárnio. Sorrir assim doía, o que era bom. – Pode enfiar essas fotos onde você quiser. Eu não vou voltar.

— E o que você pretende fazer, então? – Sebastian não era o único que sabia jogar aquele jogo; a voz de Valentim era puro deboche. O estômago de Sebastian se revirou; ele tomou mais um gole da garrafa.

— Não é da sua conta.

— Para quem você vai correr? Eu sou a única pessoa que te quis durante sua vida toda, Sebastian.

— Talvez eu não queira você, então.

Houve mais uma pausa, e então aconteceu uma coisa surreal: Valentim Morgenstern abaixou o tom para falar com o filho e, finalmente, soou como um ser humano de verdade.

— Sebastian – disse ele, em voz baixa. Sebastian conseguia imaginá-lo perfeitamente, sentado na poltrona de sempre na sala de estar, as pernas cruzadas elegantemente e o cabelo penteado impecavelmente para trás. – Volte para casa. Por favor.

Sebastian teve um momento sem reação antes de começar a rir. Ele não percebeu quão histérico soava, e muito menos as lágrimas que desciam por seu rosto. Antes de desligar, disse uma última frase, engasgando-se no próprio riso:

— Vá para o inferno.

Em seguida, jogou o celular pela janela aberta.

Ele mal ouviu o barulho do aparelho atingindo o asfalto, porque o barulho dentro do carro era avassaladoramente maior. Tudo em seu interior começou a gritar ao mesmo tempo, e Sebastian gritou junto. Rindo. Chorando. Socando a buzina do carro e tomando goles de vodca até que tudo parecesse mais leve, até que sua consciência parecesse um balão de gás hélio, prestes a se soltar e flutuar para longe.

Sebastian mal notou quando passou para a outra pista.

Conscientemente, Sebastian não viu o ônibus vindo em sua direção.

Inconscientemente, ele tomou a decisão de não desviar.

A colisão entre os dois veículos foi a coisa mais verdadeira que ele já havia sentido, o choque de metal contra metal e de sua vinda contra a dos passageiros e de sua cabeça contra o volante. Devia ter doído mais do que todos os socos de Valentim, mas o efeito não foi nem de longe o mesmo. Havia medo, dor e alívio, mas nada da rejeição que tornava a mão do pai tão pesada, as palavras da mãe tão afiadas, as lágrimas da irmã tão venenosas.

Em seus últimos momentos de vida, Sebastian Morgenstern poderia ter pensado em mil e uma coisas diferentes. Ele poderia ter se preocupado com os passageiros do ônibus. Ele poderia ter se preocupado com o estado do carro – Deus, como ele amava aquele carro! – ou com os carros que vinham atrás. Ele poderia ter se preocupado com suas últimas palavras, ou com o fato de que ia morrer como um ninguém, mas isso era irrelevante; morreria como um ninguém, mas morreria em seus termos. Sebastian nascera errado, e, se dependesse dele, morreria errado.

 No último segundo, ele pensou em apenas duas coisas. A primeira era só uma palavra: redenção. A segunda era mais complicada. Enquanto o mundo explodia em luzes e rangidos de metal e guinchos de pneus no asfalto, Sebastian Morgenstern se perguntou se alguém se incomodaria em rezar por uma alma como a dele.


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Notas finais do capítulo

*A citação da moça do posto de gasolina é do personagem Salladhor Saan do livro "A Fúria dos Reis", do George R.R. Martin. Confesso que só lembro da citação, porque não tenho mais a menor ideia de quem é esse cara.
** A citação do Sebastian eu vi no Drácula, mas é originalmente da obra "Lenore", de Gottfried Bürger.
... Eu me sinto uma pessoa horrível D: Então, opiniões sobre o final? Sobre qualquer coisa? Algum erro de português que eu deixei passar? Qualquer coisa, deixe um comentário! Ainda teremos um epílogo curtinho e então os dois capítulos "bônus" falando o ponto de vista do Jace e da Clary, respectivamente. Espero que a demora tenha valida a pena :P