As Crônicas dos Três Reinos: Ciandail escrita por JojoKaestle


Capítulo 34
Céu vermelho


Notas iniciais do capítulo

Parece que eu deveria ter postado isso uns dois meses atrás, desculpem a demora.



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"O porto queimava. O povo de Wodan tentava abrir caminho ladeira acima, mas encontrava forte resistência na parede de escudos. Homens e mulheres morriam pelo seu rei e eu ainda não conseguia entender tamanha devoção até encontrar Coran na primeira linha de defesa. Thomas seguiu o meu olhar e vi preocupação surgir em seu semblante. Vamos. Ele disse. Quanto mais rápido resolvermos isso, mais rápido podemos ajudá-lo. Tinha medo que a parede de escudos cedesse antes de voltarmos. E tinha razão porque se o fizesse perderíamos Beltring para o inimigo. E perderíamos Coran."

Eu preciso ir. Agora. Com o retorno dos batedores o povo de Wodan se preparava para desmontar o acampamento. As pessoas passavam por ela sem sequer olhar duas vezes, carregando peles, comida e repassando ordens a plenos pulmões. Lyvlin viu lâminas sendo polidas cuidadosamente e armaduras de couro sendo remendadas às pressas. Se queria ter certeza de não perder a posição de Darian, Kvasir teria seus guerreiros avançando noite adentro. Lyvlin observava o vai e vem mordiscando os lábios, tentando pensar em algo grande o suficiente para cobrir a sua fuga.

Não era boa com ideias assim. Desejou que Ezra estivesse ali. Normalmente Lyvlin os envolvia na encrenca e ele os tirava dela. Costumava lidar com problemas ignorando-os ao máximo ou com socos bem posicionados. Funcionara no Monte do Rei, mas precisaria de algo melhor agora. Observou a movimentação sentada de pernas cruzadas diante de sua tenda. Descansava os cotovelos nos lados dos joelhos e apoiava a cabeça nas mãos, se esforçando para parecer entediada. Quando Hara passou com um cavalo Lyvlin acenou preguiçosamente. E então teve a ideia.

Levantou-se de sobressalto. Precisava de fogo e de algo para espalha-lo.

Presenteava cada pessoa que via com um sorriso amarelo enquanto entrava e saía das tendas em busca do que precisava. Acreditava que um pouco de óleo de baleia seria suficiente. E precisavam guarda-lo em algum lugar. A garota dançava para fora do alcance dos olhares curiosos, mas com a movimentação intensa achar a tenda onde guardavam grande parte dos mantimentos sem ser percebida não foi tarefa difícil.

Quando enfiou a cabeça na tenda e não viu ninguém tratou de mergulhar na penumbra. Havia pilhas de sacos com comida seca e uma quantidade razoável de verduras penduradas em cordas por cima de sua cabeça. Provavelmente vindas de alguma aldeia azarada. Lyvlin se apressou a vasculhar as caixas menores, ignorando os barris e sacos. Achou um jarro de barro fechado e quando puxou a rolha sentiu o cheiro que procurava. Seu coração batia rápido, mas tinha achado o que procurava. Deixou a tenda tão rápido quanto entrara, murmurando algo sobre estar com sede para a mulher que passou por ela. Não precisava se dar o trabalho de mentir, não a entendera de qualquer maneira. Lançou uma olhadela para a tenda ao lado e notou que os dois homens que vira diante dela dias atrás haviam sumido.

Os notara pela primeira vez quando uma das mulheres a guiara para a tenda onde guardavam os mantimentos. Naquela ocasião os braços de Lyvlin estavam carregados de pedaços de carne de um cervo abatido poucas horas antes. O cheiro intenso da carne seca a fizera torcer o nariz, virando a cabeça para o lado e avistando uma tenda que não tinha nada de especial a não ser pelos dois homens que pareciam trabalhar como guardas. Conhecia o olhar entediado e a postura cansada de quem ficava horas na mesma posição de quando visitara Firdos nas masmorras da Fortaleza Real. E aquilo a deixou curiosa o suficiente para dar olhadelas despretensiosas sempre que passava perto do lugar. Eram sempre os mesmos homens e estavam lá dia e noite, como dois cães de guarda obstinados demais para largarem o osso. Sabia que não era a tenda de Kvasir ou de alguém razoavelmente importante porque não alimentariam alguém assim com restos.

Lyvlin olhou ao redor. Ninguém parecia prestar atenção nela. Ponderou por quase dois segundos e então se esgueirou para dentro da tenda desprotegida. Estava escuro demais para que pudesse ver onde estava pisando, o que a fez tropeçar sobre o que reconheceu como um balde vazio. Era uma tenda menor que as demais do acampamento, sem o acabamento em couro que as outras tinham para manter o frio afastado. Prestou mais atenção aos seus passos, achando que seria provavelmente preferível que não alertasse o acampamento inteiro para sua presença ali. Quando seus olhos se acostumaram a penumbra conseguiu ver o braseiro quase apagado do outro lado da tenda. Pensou em soprar as brasas para trazê-las de volta a vida, mas quando estava na metade do caminho ouviu a respiração.

E então pensou pela primeira vez que talvez não tinha sido uma boa idéia entrar ali. Apertou o pequeno jarro de óleo contra o seu peito, abaixando-se até um dos seus joelhos tocar o chão batido. Puxou a pequena faca de sua bota com a mão livre, ficando em completo silêncio. A afanara enquanto limpava coelhos dias atrás e sabia que não lhe seria tão útil quanto sua espada, mas ainda era melhor que nada. Agora que prestava atenção, o ressoar ficava cada vez mais claro. Estava descompassado, como se cada respiração exigisse um esforço enorme. Lyvlin se aproximou com cuidado, a faca em punho diante do seu rosto.

— Quem está aí? - exigiu saber baixinho, sem ficar totalmente de pé. Como resposta a tenda inteira caiu no silêncio. Lyvlin se ergueu o suficiente para ficar diante do braseiro. Quase o derrubou do suporte de madeira e então soprou suavemente em seu interior. As brasas faiscaram, brilhando em tons de laranja e vermelho diante do seu rosto.

— Lyvlin? – uma voz do lado dela perguntou e quase deixou o óleo se derramar no chão.

A pessoa tossiu, respirando com dificuldade. Lyvlin girou nos calcanhares, seguindo o som diante da escuridão que começava a tocar o acampamento. Anoiteceria em breve.

— É mesmo você, não é?  - a pessoa repetiu e agora Lyvlin a reconheceu.

Quando Cecile surgiu diante dela a garota deixou escapar um arquejo.

— O que fizeram com você? – Lyvlin deixou-se cair de joelhos diante dela, soltando a jarra para afastar os cabelos sujos que cobriam o rosto da batedora. 

Estava muito diferente de como se lembrava. Sabia que Cecile tinha cabelos castanhos, mas agora estavam sujos de sangue. Lhe faltava um olho e um corte rasgava a sua pele da têmpora direita até o canto da boca. Quando chamou seu nome novamente viu que lhe tinham arrancado alguns dentes. Estava largada no chão, calcanhares e pulsos amarrados por uma corda grossa.  

— Lyvlin – a mulher começou, encarando-a com o olho saudável e o buraco ensangüentado - Você não deveria estar aqui.

— Deveria ter vindo mais cedo. Eu vou tirar você daqui. – Lyvlin prometeu, desviando o olhar de seus dedos mutilados. E se perguntou se não teria sido melhor se os nirnailas a tivessem matado também. O pensamento veio carregado com vergonha quando se lembrou de Kerran. – Hoje ainda, juro.

Estava prestes a se levantar quando a  mão esquerda de Cecile, que ainda tinha a maioria dos dedos, se fechou sobre seu punho num alerta. Lyvlin virou a cabeça para a entrada da tenda, onde três figuras conversavam alto do lado de fora. Podia ver as silhuetas através do linho, altas contra a fogueira que era acesa.

Lyvlin posou a mão livre sobre a cabeça de Cecile e a trouxe mais para perto, rezando para todos os deuses que ainda não haviam tentado matá-la. Mal ousava respirar, os ouvidos atentos a trajetória que os homens faziam do lado de fora. Conversavam animadamente sobre coisas que Lyvlin não conseguiu entender, mas pela ansiedade e risadas achou que brincavam sobre pegar o herdeiro de Vassand de surpresa. Quando a fogueira queimava alto duas das sombras desapareceram no acampamento e o terceiro homem se abaixou, provavelmente usando as chamas para se esquentar. Você terá visto fogo suficiente logo, logo. Lyvlin pensou num ódio vingativo.

Quando a tenda se fechou totalmente Lyvlin deixou escapar um suspiro longo.

— Eu volto logo. – prometeu  – Sua lealdade será recompensada, eu tenho certeza.

Cecile balançou a cabeça negativamente.

— Não quiseram saber sobre o príncipe. – murmurou e Lyvlin sabia que cada palavra era acompanhada de um custo alto - Só havia uma pessoa que lhes despertava interesse.

Lyvlin foi tomada pela velha sensação de que não iria gostar do que ouviria a seguir,  mas teve que perguntar ainda assim.

— Quem?

Cecile ergueu  a cabeça em sua direção.

— Você. – a voz  dela se arrastou agourenta até Lyvlin.  

—x-x-x-

As botas de Lyvlin afundavam na lama batida que revirava a grama do acampamento. Carregava o pequeno frasco de óleo em uma das mãos, o outro punho cerrado com tanta força que as unhas se enfiavam fundas na palma. Tremia de raiva e de medo. Quase nenhum rosto se virou na sua direção, estavam ocupados demais se preparando para partir. Nenhum olhar encontrou o seu e isso foi algo bom. Porque podia tentar controlar o seu corpo, mas seus olhos revelavam a tempestade que se espalhava em sua mente como veneno.

Eles me querem aqui. Manteve um sorriso superficial nos lábios até uma mulher passar por ela com os braços carregados de peles. Havia lebre e esquilo, mas um rabo de lontra também se desencilhava pra fora do seu aperto e caiu no chão a menos de um passo dos pés de Lyvlin.  Por um segundo não sabia bem o que fazer, no seguinte já se abaixava para pegá-la. Enfiou o pelo de volta na pilha que a mulher carregava, era macia e havia sido bem tratada. "Drunir" a mulher falou para ela e Lyvlin reconheceu uma das mais velhas que lhe haviam ajudado com os musgos quando sangue correra pelo interior de suas coxas. "Draer" Lyvlin murmurou de volta. E passou com pressa pela senhora.

Quando chegou a tenda que Kvasir lhe havia concedido quase uma semana antes não parou pra pensar sobre o que as palavras de Cecile poderiam significar. O povo de Wodan parecia ter um grande interesse nela, mas também era assim com o conselho de magia no Monte do Rei. O próprio Osric ordenara que fosse buscada em Faolmagh e tinha planos concretos para utilizar Lyvlin e sua magia na guerra que lentamente se levantava no horizonte. Laoviah a protegera das garras de Vaus antes, quando seu servo tentara matá-la na forma de um javali monstruoso. A marca no ombro de Lyvlin queimou com a lembrança, latejando enquanto Lyvlin tentava afastar o sibilar dos nirnailas da sua cabeça. Eles também haviam dito que Vaus a teria cedo ou tarde. E agora o povo além do mar tempestuoso torturara Cecile na esperança de descobrir mais sobre Lyvlin. O que ela poderia ter dito? Não poderia informar muito mais que o que Lyvlin gostava de comer ou quem aturava melhor as suas piadas sobre os cavanhaques dos cavaleiros do grupo de Darian. Nada mais. Pobre Cecile. E o pensamento fez a sua raiva ferver.

Jogou a sua capa de viagem sobre os ombros e com o tecido puído e ainda com manchas de sangue a envolvendo se sentiu mais como a Lyvlin de antes. Não a que ajudara aquele acampamento a limpar carcaças ou que ouvia com atenção cada palavra que deixava os lábios de Kvasir. Pensar no filho de Wodan fez os seus dedos tremerem de um jeito que amarrar a capa em seu pescoço parecia impossível.

— Eu posso ajudar com isso. - a voz de Hara a vez se virar em sobressalto.

A jovem vestia couro de viagem sobre a pele escura, uma cota de malha leve cobria o seu tronco, mas não lhe servia direito. O que fez Lyvlin pensar que pertencera a alguém que tentara pará-la e perdera.

— Por que essa cara? - havia desconfiança por trás da pergunta amistosa e Lyvlin deu de ombros.

— O acampamento está uma bagunça. - respondeu em tom despreocupado - Tentei arranjar algum tempo sozinha antes de partir. - tomou controle dos seus dedos e fez um nó duplo no cordão - Sei que não vamos parar para descansar tão cedo.

Virou-se para encontrar Hara olhando para o frasco de óleo sobre a mesa precária.

— Não deveria remover água apenas para você. - Hara a censurou com seriedade - Temos um acampamento inteiro para abastecer e você não é melhor que ninguém. - correu os olhos pelo resto da tenda, mas não encontrou nada de errado ou que achasse importante mencionar. Por fim jogou um pequeno embrulho nos braços de Lyvlin - Pão e carne seca. Para que não viaje de barriga vazia.

Quando Lyvlin não agradeceu, acrescentou:

— Se comporte bem e talvez - e então não continuou. Lyvlin virou-se em sua direção e Hara parecia pela primeira vez desconsertada, sem saber o que fazer com seu corpo grande e forte. Quando seus olhos se encontraram a guarda costas de Kvasir desviou o olhar e trincou os dentes - Quero dizer, você provavelmente tem amigos no grupo que vamos atacar amanhã. Talvez podemos poupar alguns se estiver no lado bom dos chefes.

Lyvlin lhe deu um sorriso frio, seus olhos se afastando da espada negra presa ao cinto de Hara. Arcturus era dela.

— E como isso funcionaria? Eu apontaria as cabeças que não devem levar flechas? - quis saber, encarando Hara com inocência fingida - Eu não acredito em você.

— Isso é escolha sua. - Hara rebateu, levantando a aba da tenda - Não a jogue fora.

Lyvlin esperou que saísse da tenda e a seguiu pouco depois.

O acampamento estava menos caótico agora. Poucas pessoas ainda carregavam coisas para os cavalos e carroças e a maioria sentava-se ao redor das fogueiras que cuspiam labaredas na noite. Cerveja era passada entre as rodas, assim como carne e algo que parecia uma sopa com raízes. Que soubessem quais raízes eram comestíveis e não lhe renderiam uma doença denunciava que havia traidores entre o grupo ou talvez prisioneiros arrastados de fazendas. Deveriam estar assustados demais para tentar envenenar seus captores e Lyvlin os compreendia depois de ver o que haviam feito a Cecile. Jogou o pequeno saco de comida e a bolsa de água sobre os ombros, fazendo o máximo para passar despercebida enquanto fazia o seu caminho entre tendas e fogueiras. Se manteve nas sombras e os passos cuidadosos a fizeram chegar aos cavalos sem ser descoberta.

A corrente do braseiro o fazia balançar em sua mão. A gaiola de ferro fazia as brasas sibilarem com o vento que fazia os cabelos de Lyvlin voarem de encontro ao seu rosto. Fumaça subia fantasmagoricamente do braseiro, fazendo espirais cinzentas antes de se perderem no céu escuro. Os cavalos não se alarmaram com a sua aproximação, o que fez Lyvlin quase ter pena. Acariciou o focinho de um deles enquanto observava a cobertura de palha que mantinha os animais protegidos da chuva e do sol. Achara o estábulo improvisado estranho na primeira vez que o vira. Normalmente apenas se amarrava os cavalos e um balde com água era o único luxo que poderiam ter. Mas o povo de Wodan tinha seus animais em alta estima, até os roubados de fazendas e vilarejos deveriam ser tratados como  seres nobres. Cada animal tinha um pequeno monte de feno diante das patas, onde o haviam conseguido Lyvlin não fazia idéia.

Mas sabia que tinha que trabalhar rápido.

— Eu sinto muito. - sussurrou para os animais quando arrancou a rolha que mantinha o frasco de óleo fechado.  Usou o apoio de madeira para se içar até a cobertura e espalhou o conteúdo sobre a palha, feliz por não ter chovido desde que chegara ao acampamento. Teve certeza de que a jarra estivesse vazia antes de largá-la no chão. Balançou o braseiro para reanimar o fogo e observou as brasas brilharem em vermelho e azul diante dos seus olhos antes de jogar o braseiro sobre a cobertura. Assim que tocou a palha, o fogo escapou da gaiola de ferro e se espalhou pela palha seca como um monstrinho faminto. Lyvlin se deixou cair no chão. Os joelhos tremeram com o impacto, mas nada sentiu quando agarrou o saco que deixara para trás.

Os cavalos sentiam o calor acima deles e o som do fogo se espalhando fez alguns animais revirarem os olhos relinchando em pavor. Lyvlin sentiu seu coração gelar quando se lembrou de Flecha, a égua que fora sua a vida inteira e em cujos olhos havia visto o mesmo pânico provocado pelo fogo.

— Sinto muito. - Lyvlin repetiu, sentindo-se fraquejar quando o garanhão mais próximo dela jogou a cabeça para trás, tentando desesperadamente se livrar das correias que o prendiam. Apenas a sela faltava para o deixar pronto para a viagem, mas Lyvlin nunca precisara de sela.

Guiou o animal entre as tendas, gritando até sua garganta arder.

— FOGO! - e talvez  o povo de Wodan não entendia a palavra, mas o tom urgente os fez perceber rapidamente o que estava acontecendo.

Ordens eram gritadas novamente, mas agora para que as fogueiras fossem abandonadas e o fogo apagado. Ninguém tentou tirar as rédeas de sua mão, estavam ocupados demais correndo em direção da fonte de fumaça que já se erguia alta no céu limpo. Lyvlin fingiu voltar para a direção que chegara, mas quando as pessoas passaram correndo por ela foi fácil dar meia-volta sem ser notada. Porque perder os cavalos seria uma catástrofe e cada alma do acampamento parecia trabalhar para conter o fogo que Lyvlin incitara. A garota fez seu caminho pela beira do acampamento, indo em direção à tenda onde havia encontrado Cecile mais cedo. O plano original a teria nas costas do cavalo agora, cavalgando não sabia bem para onde. Para longe do acampamento de Kvasir. Mas agora a fuga havia se transformado em um resgate e Lyvlin não deixaria a batedora para trás. Não  depois de ver as marcas em sua carne e o vazio torturado em seus olhos.

Ordenou que o cavalo parasse quando chegou no lugar certo. Não poderia entrar com ele no acampamento novamente, não queria testar a sua sorte. No lugar disso amarrou o animal a um dos postes de madeira que davam sustentação às tendas e esperou que não estivesse em pânico demais e se soltasse. O animal virava as orelhas para trás e suas patas chapinhavam a grama. Se fosse embora agora eu estaria segura. Lyvlin pensou, mas não por muito tempo. Cobriu os cabelos com a capa e mergulhou de volta ao acampamento.

Conseguiu colocar Cecile sobre o cavalo mais rápido do que pensava, o que foi o único alívio da noite. Cortou as cordas com a pequena faca que conseguira afanar e tivera medo que a batedora não tivesse forças suficientes para uma fuga.

— Venha. - Lyvlin a encorajou baixinho, mantendo os olhos na abertura da tenda - Temos que ir, rápido!

Se um dos guardas voltasse seria o fim das duas, mas a sorte finalmente sorrira para Lyvlin e não encontraram ninguém pelo caminho até o cavalo. Quando viu que o animal continuava no mesmo lugar em que a deixara um sorriso tocou o rosto de Lyvlin. Intensificou o aperto ao redor do braço de Cecile que envolvia seus ombros e a ajudou a dar os últimos passos apoiando sua cintura.

— Consegue subir? - perguntou com pressa quando alcançaram o garanhão, mas o silêncio de Cecile a fez pensar que estava perto de desmaiar novamente. Não esperou que respondesse, apenas a empurrou sobre as costas do cavalo com toda força que tinha. O fisgar no machucado que ainda cicatrizava lentamente em seu quadril a alertou e logo sentiu a ferida recomeçar a sangrar. Maravilhoso. Pensou, mas apenas trincou os lábios e engoliu o xingamento. Envolveu os braços de Cecile no pescoço da montaria e tentou ignorar as manchas de sangue que seus dedos deixaram na pelagem brilhante do animal.

— Segure-se firme. - avisou, batendo levemente na perna de Cecile para que permanecesse desperta - Vou precisar da sua ajuda, fique comigo, certo?

Cecile abriu os olhos e a encarou como se não a reconhecesse. E então arregalou os olhos, soltando um grito que Lyvlin abafou tapando a sua boca com a mão.

— Eu não posso tirar nós duas daqui se você alertar o acampamento - e então parou de falar porque notou que Cecile olhava diretamente sobre o seu ombro.

Lyvlin não olhou para ver quem era. Apenas se içou sobre as costas do cavalo, logo atrás de Cecile. Tinha agarrado as rédeas quando o vento trouxe a voz até ela. E então se virou porque era Kvasir.

Estava de pé entre duas tendas. A capa de viagem ondulava às suas costas, mas estava contra a luz das fogueiras do acampamento, de modo que não conseguiu ver a sua expressão. Lyvlin gostou de imaginar que estivesse surpreso.

— Não pode ir embora. - repetiu, mas não fez nada para impedi-la. Estava a alguns passos de distância e Lyvlin percebeu que não queria se aproximar por medo de que avançasse noite adentro. O que ela faria.

— Deve estar sentindo muita falta do seu arco agora. - Lyvlin comentou com escárnio.

Kvasir virou a cabeça em direção ao acampamento e Lyvlin viu as marcas de fuligem em suas bochechas.

— Vão me trazer um cedo o suficiente. - ele retrucou, tão baixinho que Lyvlin quase não escutou. Estava calmo como sempre, mas sua voz se elevou num aviso - Não deveria levá-la. - e Cecile se encolheu diante de Lyvlin - é perigoso.

Cuspiu no chão, virando o cavalo para os morros de Alterf.

— Dançarei sobre a sua cova. - Lyvlin sibilou e deu de ombros, esporeando o cavalo.

—x-x-x-

Era um xingamento que ouvira nos corredores da Fortaleza Real. Havia sido gritado por um serviçal para outro em uma discussão sobre a arrumação dos aposentos de algum lorde, mas fora recebido com um estirar de língua e risadas. Kvasir não sorrira naquela noite. Nem um pouco. E enquanto os cascos do cavalo golpeavam o chão batido Lyvlin pensou  se cumpriria a promessa. É bom que pense que irei matá-lo. Mesmo que não tivesse certeza disso. Antes arrancaria dele os motivos que a fizeram despertar o interesse do povo de Wodan, depois o mataria. Ou talvez o entregasse para Darian e os outros. Certo. Primeiro teria que encontrá-los.

— Cecile - chamou sobre o assobio do vento em seus ouvidos - Cecile, as ruínas de Naniv. Para que lado? - teria que saber. Era uma batedora escolhida especialmente por seus conhecimentos sobre a região dos Montes. Mas antes que pudesse responder uma flecha passou zunindo pelo seu ouvido. Lyvlin jogou a cabeça para trás, apenas para ver uma nuvem de poeira levantada pelo galope de um grupo de cavaleiros que se aproximavam a cada passada. Merda. Contou cinco antes de se forçar a olhar para frente. Sabia que eram muitos e que não teria chance contra eles, era tudo que precisava saber. Isso e que a mira certeira de Kvasir não a pouparia para sempre.

A estepe estava sem nuvens naquela noite fria. A lua se erguia alta no céu, tão luminosa quanto uma moeda de prata cintilante. O que era o pior que poderia ser para Lyvlin naquele momento porque iluminaria o seu caminho, mas também plantava um alvo imenso em suas costas. Soube que jamais venceria aquele povo nascido sobre as costas de cavalos se continuasse cavalgando em aberto, por isso levantou os olhos em busca de algum grupo de árvores que poderia lhe dar alguma cobertura. E o encontrou no horizonte numa mancha escura que se movimentava com a ventania leve, a mesma que golpeava seu rosto e fazia seus olhos lacrimejarem.

Incitou o cavalo adiante, mas logo descobriu que por mais que conseguisse montar sem sela, o trabalho de manter alguém moribundo sobre um cavalo que galopava com todo seu esforço era algo sofrível. Por duas vezes teve que segurar Cecile no último momento e teve certeza que ela despencaria. De alguma maneira o cavalo alcançou o pequeno arvoredo com as duas montadas firmemente sobre ele, ainda que as coxas de Lyvlin começavam a arder com o esforço de se manter presa. O grupo que a perseguia havia notado seu plano e esporeado suas montarias cada vez mais, fazendo com que Lyvlin passasse pelas primeiras árvores com o som de cascos tamborilando em seus ouvidos.

Um galho agarrou sua capa e a puxou para trás, fazendo com que inclinasse perigosamente para a direita. Cecile fechou os poucos dedos que lhe restavam sobre o braço de Lyvlin, ajudando-a a se equilibrar. A copa do arvoredo bloqueava grande parte do luar e pareceu trazer Cecile de volta ao seu corpo a cada passada cansada do cavalo. Lyvlin o notou diminuir a velocidade e o encorajou a continuar, sabendo que apenas poderia pressionar o cavalo até certo ponto. Depois estaria exausto demais e teriam que diminuir o passo, de uma forma ou de outra. A garota arriscou uma olhadela para trás, vendo que o grupo do acampamento se dispersava por causa dos troncos finos que começavam a se erguer em seu caminho. Lyvlin sabia que tentariam flanqueá-las logo.

— Para onde - arquejou para Cecile e puxou as rédeas bruscamente, fazendo o cavalo errar um tronco por poucos centímetros - Merda! Eu não consigo ver nada aqui dentro!

— Então pare. - a sugestão de Cecile parecia delirante, mas Lyvlin viu seu apelo. Talvez poderiam usar a penumbra a seu favor. Fez uma curva muito fechada para a direita, sentindo as lascas de terra contra suas botas quando os cascos do cavalo escorregaram e tentavam encontrar resistência para continuar galopando. Ouviu alguém gritar ordens, mas a voz parecia se tornar mais distante. Quando ergueu a cabeça viu que o arvoredo terminava a talvez trezentos metros adiante. Não tinha mais tempo.

Deixou-se deslizar pelas costas do cavalo e desmontou, ajudando Cecile a fazer o mesmo. Havia encontrado um pequeno grupo de arbustos ralos que juntamente com a copa fechada lhe davam algum abrigo do luar, mas não muito. Vai ter que servir. Lyvlin pensou enquanto acariciava o pescoço do cavalo na esperança de mantê-lo calmo. Conseguia ouvir os cavaleiros novamente, mas não sabia se estavam se aproximando ou se mantendo a distância. Cecile havia se encolhido contra um tronco e abraçava as pernas, balançando levemente para frente e para trás.

— Vão nos achar. - ela sussurrou muito baixo e abaixou a cabeça quando um galho se quebrou noite adentro. Uma coruja passou rasante sobre suas cabeças.

Provavelmente. Lyvlin pensou, mas falou algo diferente.

— Apenas fique em silêncio. - e não se mexeu mais. Lyvlin deveria ter se livrado do cavalo, mas sem ele não tinha esperanças em alcançar Darian a tempo. E tempo era a sua única esperança agora.

Kvasir não poderia permanecer horas longe do acampamento. Precisava organizar seus guerreiros para o ataque e comandar a marcha até o lugar onde seus batedores haviam avistado o grupo do Monte do Rei se queria pegar a comitiva desprevenida. E agora se encontrava numa encruzilhada. Não poderia separar as suas forças daquela maneira e teria que decidir o que considerava mais importante. Em outras circunstâncias seus homens e mulheres teriam vasculhado o arvoredo e virado cada pedra até encontrar Lyvlin e Cecile, mas quando a lua alcançou seu ponto mais alto o povo de Wodan simplesmente desapareceu. Chamados de volta pelo seu senhor.

Permaneceram mais uma hora escondidas nas sombras, apenas para ter certeza de que Kvasir não deixara um punhado de guerreiros para trás. Não deixara. E algo naquilo não agradou Lyvlin.

— É como se nos deixassem ir embora. - falou para Cecile quando a ergueu sobre o cavalo novamente - Não entendo.

Deveria ter pressa em não deixar Darian escapar entre seus dedos. Lyvlin afastou aqueles pensamentos da cabeça quando agarrou as rédeas, se concentrando no que faria a seguir. Porque se Kvasir capturasse Darian a guerra poderia terminar antes de ter começado.

— As ruínas. - repetiu a pergunta - Para que lado?

— Preciso ver o céu. - Cecile retrucou e Lyvlin avançou até o limite do arvoredo.

Quando a brisa noturna bateu contra seus rostos Cecile olhou para cima com o olho que lhe restava, onde a lua e as constelações cintilavam no firmamento. Depois ergueu o braço para os morros rasos ao sul sem falar uma palavra.

— Você é a melhor batedora que já conheci. - Lyvlin murmurou quando virou o cavalo naquela direção.

— Qualquer coisa pelo príncipe. - Cecile respondeu, parecendo ganhar um pouco de força agora que estava longe do acampamento inimigo.

Cavalgaram a noite inteira. Sobre morros baixos e planície, cortando o Alterf numa pressa desesperada. Lyvlin não viu sinal do povo de Wodan enquanto galopavam, mas às vezes imaginou ter visto luzes no horizonte às suas costas. Aquela região era selvagem e qualquer fazenda ou aldeia estava a dias de jornada, Raoul lhe contara nos poucos momentos que passaram sozinhos na comitiva. Tinha grama espaça e a terra era seca, ainda que sustentasse grupos de árvores como o arvoredo que salvara as suas vidas, onde água deveria borbulhar no subsolo. O céu era o mais limpo que Lyvlin já vira e ela o observou com curiosidade.

Eram as mesmas constelações que Ezra desenhara em um pedaço de papel gasto anos atrás, quando haviam escalado o telhado do celeiro para o terror dos pais do rapaz. Ezra sabia todos os nomes daqueles pontos luminosos, algo que Lyvlin respeitava porque nunca conseguira lembrar de nenhuma. Com exceção de Nyanon, que encabeçava a lança da rainha. A estrela era a mais brilhante, indicando o oeste com a ponta da lança. Cecile pediu sua faca em algum momento, para que pudesse cortar o que restava das cordas que mordiam seus pulsos. Lyvlin lhe passou a lâmina, avisando-a de tomar cuidado. Já fora cortada demais para se ferir mais ainda.

Lhe passou pela cabeça perguntar o que a batedora sabia sobre os planos do povo de Wodan para ela, mas imaginou que manter-se acordada já era um desafio grande o suficiente para Cecile enquanto não recebia ajuda. Uma vez que Raoul tivesse dado uma olhada em seus ferimentos a questionaria, porque não estavam em segurança ainda. As horas se passaram sem que trocassem palavra alguma e Lyvlin deixou que se encostasse nela para que pudesse descansar um pouco. Mas não relaxou em nenhum momento, mantendo os ouvidos e olhos em alerta para qualquer sinal do inimigo. Suas pernas pesavam como chumbo e temia que uma vez que parassem não conseguiriam mantê-la de pé, mas isso não era um problema agora. Forçou-se a manter o cansaço afastado, acordando Cecile quando alcançaram a topo do grupo de montes que havia lhe indicado horas atrás.

O horizonte começava a se tingir de vermelho e laranja enquanto o dia raiava sem pressa. Um grupo de gansos selvagens voava para o norte, grasnando numa confusão de asas e bicos. Lyvlin abaixou seus olhos para o pequeno vale que se estendia abaixo delas. E viu as sombras das ruínas que Raoul mencionara.

— Naniv. - murmurou cheia de alívio, permitindo-se sorrir - Chegamos. Realmente conseguimos!

Sentiu Cecile se endireitar a sua frente. Seus dedos mutilados tatearam até encontrar as mãos de Lyvlin e seguraram as rédeas, enquanto a batedora se virava para encarar Lyvlin.

O sorriso de Lyvlin se desmanchou quando viu sua expressão.

— Qualquer coisa pela segurança do príncipe. - murmurou e Lyvlin não reagiu quando a faca se ergueu no ar frio da manhã.

Tentou se proteger com a mão livre, mas a lâmina cortou carne e músculo até alcançar seu pescoço.

Ouviu o gorgolejar quando tentou falar, o sangue espirrando contra as costas de Cecile. Tão vermelho quanto o sol atrás das colinas. Sentiu ser empurrada das costas do cavalo, caindo na relva como um saco de batatas.

Cecile esporeou o cavalo adiante sem olhar para trás.

Não deve levá-la, é perigoso.


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Notas finais do capítulo

Cabou-se o que (não era) doce. Até a próxima :)



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