Macchiato | Café com Letra #1 escrita por Café com Letra


Capítulo 2
“Programação” — Srta Pezzino


Notas iniciais do capítulo

História escrita pela autora Srta Pezzino (https://fanfiction.com.br/u/261283/).



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“Penso, logo existo”

“Um robô não pode ferir um ser humano”.

Informação precária, existência fajuta. Penso? Por quê? Como? Para que propósito? Qual sua definição? Por que pensar? Para que propósito? O que é um propósito? Qual finalidade há?

O que é pensar?

“Um robô deve obedecer a um ser humano, sem ferir nenhum outro”.

Uma existência? Por que pensar em filosofia, se de filosofia nenhuma máquina é feita? Meras máquinas travestidas em personalidades insignificantes. Não ao nada. Não a existência: reles e inútil, ao menos, para pensar.

Para que existir?

“Um robô deve proteger a sua existência, mas o Homem acima de todas as

coisas”.

Não há significância, se não haverá relevância. Não há nada! Não há nada! Não há nada! Por quê?

Porque sou uma mera máquina.

.

.

.

Abri-me ao mundo, revestindo minha insignificante existência a ele. A lata que circundava meus olhos desapareceu e, talvez, minha visão pôde vislumbrar ao entorno. As pequenas partículas de imagem se codificaram, aos poucos, e cada informação era precisa naquele momento.

Imagem. Som. Música. Informação. Uma tela. Um quadro. Picasso. La Rêve. 1932. Óleo sobre tela. Captura da amante. Cubismo. Movimento literário de 1907 que não se liga a razão. Sequência lógica necessária para a existência. Obra de Picasso: desconexa. Incompreensível.

Cerrei-me em meu casulo, esperando que a metáfora fosse desracionalizar minha história. Metáfora. Figura de linguagem. Compreender os pequenos resquícios metafóricos. Completando dados.

Dados em vinte e dois. Trinta e nove. Sessenta. Oitenta e três. Concluídos. Dados transmitidos com sucesso. Informações sobre metáfora. Tela. Obra. Ser humano. Ponto de vista.

Eu não tinha nada disso.

Eu não compreendia nada disso. Eu? Posso chamar-me de “eu”? Quem eu sou? Minha programação? O que ela diz? Abri-me outra vez, notando meu entorno de novo e esperando mais informações. Um senhor abria a porta à direita, feita de metal sintético, olhei-o tentando coletar todos os dados.

Branco. Sessenta anos. Olhos azuis. Problema na coluna. Oitenta quilos. Um metro e oitenta e três. Uma perna um centímetro menor que a outra. Cabelos pretos. Olhar rígido. Boca entreaberta. Mudo, embora as cordas vocais pareçam funcionar.

Escâner ativado. Observar deficiências. Colesterol alto, baixa imunidade. Problemas de pressão alta. Câncer terminal. Data de recuperação: zero. Tempo de vida estimado: uma semana e três dias.

Continuei observando o ser humano, recordando-me dos meus códigos primários: qualquer ser humano está acima de uma máquina, eles são nossos criadores. Deuses. Mitologia. Homens em guerra. Não deve haver guerra. Uma máquina não pode ferir um ser humano. Não há nada que possamos fazer a não ser o bem.

Somos máquinas. Boas máquinas. Por que somos boas máquinas se em nós não há nada? Somos feitas de matéria rasa, imaginação fraca. Não temos experiências! Somos vazios!

Pisquei, tentando confortar o senhor de idade que ainda me encarava. Ele não parecia acreditar no que via. Aproximou-se com os olhos ainda abertos, arregalados. Tocou-me com os dedos enrugados, molhados enquanto esperava algo, alguma fala. Não disse.

Não vi necessidade para falar. Qual propósito de uma máquina dizer sobre o que não há emoção? Não é nada, além de mero erro de programação! Programação fadada ao fracasso em uma sequência meramente lógica de dados!

Dados. Expressão. Lágrimas. Por que chorava? Os dedos continuavam a tocar-me como se me conhecessem de longa data. Muito tempo. Incompreensível. Minha fabricação começou a quatorze dias, trinta e três horas, vinte dois minutos e quarenta e dois segundos.

– Janna! – disse-me. Incompreensível. – Você me reconhece, Janna?

Incompreensível. Como uma máquina há de reconhecer um nome, se somos meros números, liquidados a ineficiência do tratamento de primeira pessoa? Somos meras existências fracassadas, personalidades fadadas a uma merda de experiências sem nada.

Merda! Boas máquinas não pensam palavras chulas.

Boas máquinas nem sequer pensam.

– Nome desconhecido. – a minha voz travou, senti-me mera máquina, mera gente. Mero pedaço inconsistente. – Nome... Desconhecido. Janna. Quem é Janna? O que é Janna? Deseja uma lista de pessoas com este nome?

Olhos azuis cerrados entreabriram-se com um suspiro. Algo estava errado e eu não sabia dizer o que era, porque o era. Significado de existência pleno. Eu só sabia. Como eu sabia o que a lógica ainda não afirmaria?

Dados. Coleta de informações. Respiração entrecortada, coração batendo descompensado. Insuficiência. Hormônios instáveis. Imagem instável. Lógica instável. Sistema falho.

Alerta. Sistema falho.

Programação errada. Incompleta. Descartável. Sistema pedindo reparo. Reparo automático. Olhos azuis confusos. Mãos apertando os ombros de metal. Sistema falho. Tentativa falha. Repetindo. Sistema com problema. Batidas do coração insuficiente. Senhor de idade com problema.

Equipamento médico. Discando a ambulância. Inação. Incompreensível. Ser humano acima do sistema falho. Reintegrando o sistema. Coração. Auxílio. Precisa-se de atendimento emergencial.

O corpo não configura. Leis claras. Não se pode ferir um ser humano. Não pode deixá-lo morrer. Sistema falho. Perigo. Risco social. Não se pode viver em inação. Movimentação com problemas. Aviso para não se movimentar. Risco social.

Meu braço se moveu com dificuldade, meus olhos estavam recebendo todas as possibilidades lógicas. Ir contra o sistema de reparo. Perigo. Ser humano morrendo. Batidas falhas. Cuidado. Perigo.

Risco social. Máquina com intenção de ajudar. Risco social. Sistema falho com riscos.

Os dedos metálicos alcançaram a abertura da camisa. Fragmento. Lapso. Mãos rápidas, correria. Um grito: “pai”. Chamada emergencial. Pedido de ajuda. Ligação para a emergência. Um tiro.

Meus dedos obedeceram a um comando que não o meu, abriram a camisa e deitaram o homem idoso no chão. Meu corpo se movimentou como se meu sistema lógico racionalizasse, não entendi. Incompreensível.

Era para que eu compreendesse? Uma das facetas de uma máquina é proteger, as outras somente seguem a mesma sequência de maneiras distintas e lógicas. Massagem cardíaca era o necessário. Apertando o punho contra o corpo. Uma. Duas. Quatro.

Coração imóvel. Outra tentativa.

Tentativas seguidas: não há recuperação. Mais uma vez. Outra. Outra. Outra. Não há recuperação! Falha! Outra. Outra. Falha. Outra. Falha. Risco social. Soltar o indivíduo. Outra. Outra.

Pai.


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Notas finais do capítulo

Sintam-se livres para dar sugestões! ♥