Mundo medonho escrita por Helen


Capítulo 27
Intrepidez.




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Desculpe-me.

...Ah, é mesmo.

Você não está me vendo e nem me ouvindo.

Mas tudo bem.

Eu sei que um deles vai dizer isso pra você, já que eu sou medroso demais pra falar.

...

César estava certo. Meus medos tomaram conta de mim antes mesmo de se materializarem, atrofiando-me antes que eu pudesse perceber.

Mas por quê? De onde veio esse medo todo?

...

Ela.

Detetive a conhecia e me falava sobre ela.

Não ouso dizer que a amava. Amava seus olhos.

Tinha medo de falar, porque os seus olhos me encaravam com uma inocência que eu nunca tive.

O medo de corromper aquilo me dominou por dias seguidos.

...

Que motivo idiota.

Veja só onde o egoísmo lhe trouxe, Hugo.

...

Percebeu agora que eu sou imbecil?

...

Já sabia desde que você aceitou minha ideia, alter ego.

...

Eu vou acabar com isso.

...

Finalmente.

...

Medo. — Hugo encara a sua criatura.

— Sim? — Loch se vira para Hugo.

— Me dê meu sabre. Deixe que eu acabe logo com tudo isso.

— Oh. — o Medo e Loch sorriram ao mesmo tempo. — Esse sim é o nosso criador.

A criatura juntou a gosma em suas mãos. Deixou que ela escorregasse até o chão e então se revelasse a espada medonha de Hugo, que o Medo havia carregado consigo quando viera atacar o auditório. Hugo segurou a arma e a encarou por algum tempo, receoso. Ele segurou com as duas mãos. Respirou fundo, nervoso por ter a atenção de todos. Então sorriu com uma esperançosa tristeza, olhou para Devit, Agatha, Ronald e Loch, e disse:

O que é coragem? Não ter vergonha das suas ações? Pedir perdão a alguém sabendo que não vai ser perdoado? Dizer adeus a algo que você ama muito, sem imaginar que talvez aquilo nunca mais volte?... — ele fez uma pausa. — Não. Coragem não é a ausência de medo, como os Intrépidos pensaram que seria. Coragem é... resistir ao medo. Aproveitem que descobriram isso agora. Pra mim já é tarde.

Hugo, então, enfiou o sabre em sua própria testa, se matando. O ato chocou todos, principalmente o Medo. A criatura começou a se desfazer. Galxy sentia a gosma que o prendia ao cálice se diluindo, e liberdade fluindo por todo o seu ser. O corpo de Loch foi escorregando pela gosma medonha, que ia caindo e se transformando em pó.

Quando a enorme criatura e seu plástico se transformaram completamente em pó, Ronald deu um grito de felicidade, saltando e socando o ar. Agatha sorriu e os dois se abraçaram, alegres. Devit assistiu a cena com uma expressão séria, até Galxy tocar no seu ombro e o elogiar pelo bom trabalho. Otsugua flutuava em círculos ao redor de Agatha e Ronald, comemorando também. Ainda faltava os Medos da Sociedade, mas o maior já havia passado.

Devit desceu do cálice com a ajuda de Galxy e conferiu se Loch ainda estava vivo. Ao se aproximar, o homem abriu os olhos, um pouco confuso. Se levantou com um pouco de dificuldade e limpou todo o pó medonho de si.

— Você é feito de que?! — Devit se espantou com o estado do homem. Seria impossível ele estar de pé depois de tudo que havia passado.

Intrepidez. — Loch deu um sorrisinho e fez sinais positivos com as duas mãos.

— Haha, engraçado. Qual é o truque? — cruzou os braços.

— Tu tem Otsugua e graças a ele é um mago. Eu tenho minha 'intrepidez' e graças a ela sou "imortal". Nada de mais. — ele riu.

— Que? — Devit suspeitou. — Você também...?

— Não! Ha ha. É outra coisa menos 'sobrenatural'.

Galxy desceu as mãos e segurou os dois, trazendo-os de volta para o cálice. Devit decidiu não perguntar mais, deixando Loch e sua intrepidez quietos. A entidade cósmica torceu as capas dos Scrupulum (que agora eram um grande pedaço de pano) e tirou todo o pó medonho que estava nelas, revelando sua característica transparente. Prendeu o grande pano transparente em armações de metal, e descobriu-se que aquilo na verdade era a "porta" do cálice. Galxy falou algumas coisas na sua língua estranha, e então se ouviu o som de motores aquecendo. Todos ficaram assustados, mas Galxy continuou ligando sua máquina. O cabo da "taça" foi retraído para dentro, enquanto eles flutuavam no ar.

— Espera aí, isso aqui é uma nave? — Ronald colocou as mãos no pano, com delicadeza.

— Sim. — respondeu Galxy. — Sair daqui a pé seria muito cansativo pra vocês, então é como um agradecimento pelo favor que me fizeram.

A nave partiu numa velocidade impressionante. Ela quebrou todas as paredes do bunker, o fazendo desmoronar. Ronald e Devit acharam incrível como o pano transparente era resistente. Eles saíram do palácio medonho quebrando seus pilares, e ele foi destruído. Partiram com velocidade contra todos os Reis Medonhos que tentavam fugir pela Sociedade, e esmagaram todos, antes que chegassem ao túnel. Depois de terminar o serviço, Galxy bateu a nave contra o teto, fazendo a Sociedade inteira ruir também. Passou pelo longo túnel submerso e fez questão de acabar com ele. Saiu quebrando a caverna da entrada, e parou na praia, onde todos os humanos desceram.

Lá fora, já era noite. Por sorte, os barcos dos Scrupulum continuavam lá. Com sua saída garantida, todos pararam para descansar um pouco, observando o mar, tranquilo apesar de tudo. Então, Devit se lembrou da ordem de César:

"Destrua aquele farol."

Pediu tempo para os outros e entrou mata adentro, procurando a construção com alguma dificuldade por causa dos arranhões que havia levado, a encontrando pouco tempo depois. Chegou até ela e abriu sua porta. Subiu as longas escadas e chegou até o topo. Havia nada.

Aquele tão poderoso farol intrépido nos territórios medonhos parecia ter nada de mais. Sua luz estava apagada e seus vidros, empoeirados. Devit ligou o farol e foi forçado a fechar os olhos com a luz forte. Sentiu aquela luz atravessar sua alma e a de Otsugua ao mesmo tempo. Devit ficou desnorteado, e ouviu o som espectral de Otsugua, como se ele estivesse conversando com alguém.

"Porque mentiu pra eles?" era a voz de Galxy.

Otsugua disse algo, mas era incompreensível.

"Sou apenas um motorista. Aquele ruivo roubou parte da minha nave e me prendeu à nave porque tinha medo que Diana fosse embora, já que eu que iria levá-la de volta pra casa." Otsugua parecia insistir numa ideia. "Sei que minha aparência é semelhante a de alguém poderoso, mas eu sou apenas um dos eremitas do espaço, como eles me chamam lá fora." A alma disse alguma outra coisa. Galxy soltou um som parecido com uma risada. "Tem razão. Serve como aviso para os grandes entre os humanos. Espero que eles não mexam com o que não devem novamente."

Devit murmurou alguma coisa enquanto cerrava os olhos tentando enxergar, e Otsugua se virou para ele. Em latim, pediu para que o humano deixasse aquela conversa em segredo, e o homem afirmou que manteria. Ele achou uma alavanca para virar o farol manualmente e virou aquela luz toda para outra direção. Galxy desaparecera.

— Devit? — a voz de Agatha veio de baixo.

— Sim, Agatha?

— Oh, vocês estão aqui. "A dupla sobrenatural", como Ronald fala.

— Ha ha, engraçado. Já estão se preparando pra ir embora?

— Nem! Ronald está conversando com Loch como se fossem velhos amigos. Fiquei sobrando na conversa e fui procurar você.

Devit sorriu, e Agatha também. As últimas palavras de César ecoaram pela sua mente.

— Ei, onde está sua mãe? — perguntou Devit.

— Morreu quando eu tinha quinze anos. Fui pra casa da família de Ronald e desde então eles me consideram a namorada dele. Aliás, você viu o meu pai? Deduzi que viria ao farol por causa da carta dele.

— Oh... Ele morreu. Mas morreu são. Disse pra eu cuidar de você e do meu irmão.

— Irmão?

— É. Também não sei de quem ele estava falando. Na verdade, nem sei porque ele voltou à sanidade por causa de mim. Enfim, está na hora de destruir esse farol e voltar pra casa. — ele se levantou. — Otsugua!

A alma respondeu ao chamado.

Lets destruet locum praeberi fari! — disse Devit, animado.

Otsugua começou quebrando a luz principal do farol. Agatha desceu para a praia, enquanto Otsugua destruía cada pedaço daquela construção, deixando nada além de ruínas. Devit assistiu a tudo aquilo, do lado de fora. Quando apenas restos de paredes sobraram, os dois foram embora.

...

Todos passaram apenas mais uma hora descansando. Como Galxy desaparecera, eles resolveram usar os barcos para voltar. Atravessaram o trajeto com um pouco de dificuldade por causa dos ferimentos, mas, finalmente, chegaram no litoral do país.

Os poucos pescadores acordados não acreditaram quando viram os quatro feridos, principalmente Loch. Como já era tarde da noite, não havia carros, e os ferimentos precisavam de cuidado urgente, os pescadores acordaram todos os outros de sua vila e se mobilizaram para cuidar daqueles Intrépidos.

A noite foi agitada, mas o sono dos quatro foi recompensador e confortável, por estarem imersos à hospitalidade daquelas pessoas comuns. Elas não tinham dinheiro nem motivos para fazer uma cirurgia para ter a intrepidez. Sabiam do valor que o medo tinha para suas vidas, e era por isso que viviam tão bem.

...

No outro dia, Loch conseguiu fazer uma ligação aos Intrépidos. Primeiro, explicou tudo o que havia passado na Ilha Medonha, com detalhes minuciosos. Disse que o criador dos Medos estava morto, incluindo todos os outros Medos Psico-Físicos e os Scrupulum. Declarou que a organização Intrépidos e a malta Scrupulum estavam oficialmente dissolvidos. Contou como Agatha, uma comum, sofreu vivendo sem memórias de seu próprio pai, que havia enlouquecido por causa dos Medos e acabara por se tornar uma cobaia deles. Falou de Galxy, dos Reis Medonhos, dos planos dos Medos de se tornarem Devoradores Medonhos. Alertou a todos sobre o grande problema que os Medos representavam, e pediu que com urgência eles fossem novamente transformados em sentimentos, custe o que custasse. E ordenou que a cirurgia de intrepidez fosse proibida para sempre. Por fim, pediu que dessem férias a todos os quatro sobreviventes, para que pudessem se recuperar do grande trauma. Terminou dizendo:

— Descobri uma coisa com essa aventura toda: "Coragem não é a ausência de medo, como os Intrépidos pensaram que seria. Coragem é resistir ao medo.". Um homem me disse isso antes de se matar por causa dos Medos. Não sei o que isso pode significar a vocês, mas pra mim, significa que isso já foi longe demais. Eu, Loch Sylvania, vou fazer o possível e o impossível para impedir que mais cenas como essas se repitam. E eu espero que vocês também tenham essa mesma determinação. Por isso, tenham um pouco de empatia pela humanidade e acabem com tudo isso que fizeram. Agradeço, e muito. E não me procurem para entrevistas, porque eu estou oficialmente de férias.

Loch desligou o telefone, respirou um pouco, e disse que pagaria a conta de telefone do homem que havia lhe emprestado o aparelho.

Depois de alguns dias na vila dos pescadores se recuperando, todos os quatro conseguiram voltar para suas casas. Ronald conseguiu o telefone de Devit e Loch, e disse que adoraria sair para um boliche com eles algum dia. Agatha concordou. Marcaram algum dia naquela semana. Foram todos, e conversaram sobre qualquer coisa que não fosse aquele mundo medonho.

...

A Sociedade Medonha literalmente sumiu do mapa, como se os Medos nunca tivessem existido. Porém, perto das regiões onde antes se encontrava a Ilha Medonha, é possível detectar um sinal de rádio, que transmite uma mesma mensagem codificada que até hoje ninguém sabe decifrar o significado e nem de onde vem. Mas como você é um bom leitor, vou dizê-la a você:

"A eternidade é tempo suficiente até que a gente retorne."


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