Contador de Histórias escrita por Darth


Capítulo 8
Donzela da Tempestade




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Depois de sua estadia em Turallion, Galeth rumou norte uma vez mais, em direção às Montanhas Sombrias. A Estrada Principal, onde estava, o levaria ao Passo de Kordarak, a travessia sob a cordilheira construída pelos anões. Era lá que pretendia contar sua próxima história, em uma taverna onde os viajantes que precisavam atravessar as Montanhas para o lado norte do continente paravam para descansar antes de enfrentarem os perigos do mar de Areia, o conhecido deserto que se estendia por quase toda a área norte de Ornea.

Após um dia e meio de caminhada, tendo de acampar em uma clareira de um bosque próximo da estrada, o bardo cantante finalmente chegou ao Passo de Kordarak. A taverna local era diferente das outras tavernas em Ornea, pois era uma taverna construída à moda anã: inteira em pedras, escavada na montanha e com pilastras com tochas em sua fronte. As janelas eram buracos na estrutura inteiriça, sem vidro pois ele não era necessário no sopé da cordilheira e no seu interior. Entalhado sobre a porta de ferro havia um caneco de cerveja transbordando com um anão beberrão o entornando e os dizeres: Taverna Barba Frouxa.

Galeth sorriu ao ver a barba ruiva entalhada. “Ele não mudou nesses dois anos” pensou o bardo. Com um sorriso, entrou na taverna:

– Thorodin me tire a barba! Finalmente veio dar as caras por aqui, Galeth! – disse o anão troncudo detrás do balcão. Ele tinha a barba e os cabelos ruivos, todos trançados primorosamente e com a ajuda de anéis e argolas de prata e ouro. Seus olhos cinzentos, comuns entre os anões, tinham um brilho divertido e sua voz era animada.

– Vejo que continua com suas reclamações com Thorodin, alguma delas já surtiu efeito? – disse o bardo rindo, Thorodin era o conhecido deus dos anões. – E já que vim, aproveite e me traga a sua famosa cerveja. Não é sempre que se pode beber da cerveja dos anões, não concorda Tarek?

– Claro que surtiram, meus negócios nunca estiveram melhores. E agora fui agraciado com a presença de um bardo e um amigo, ambos em um só. Se metade das histórias que ouvi forem verdade, vocês estiveram ocupados depois que me separei do grupo. – O anão pôs um caneco enorme no balcão, cheio até a borda, para o bardo, que se sentou em uma banqueta.

– De fato, recebemos muitos trabalhos na época. Mas acabamos seguindo nossos rumos a mais ou menos um ano atrás. Todos tínhamos nossos sonhos a seguir, assim como você seguiu o seu.

– Realmente, a vida de aventureiro é lucrativa, mas nunca se sabe até quando a sorte vai te manter vivo. E a que devo a honra de sua visita? Veio contar uma de suas famosas histórias?

– Eu estou a caminho de Sandraven, no norte do continente. Então aproveitei que teria de passar pelo Passo de Kordarak e vim lhe fazer uma visita. E quanto a história, claro que a contarei.

– Que tal a de quando invadimos a fortaleza subterrânea de Rikutaz, o louco?

– Fazia tempo que não me lembrava desta história. – Disse Galeth, cheio de nostalgia – Mas hoje não. Peço perdão, mas tenho uma história em mente já. E considerando que estamos no meio do continente, acredito que será bem recebida.

– Então suba para um quarto, tome um banho para tirar esse fedor de estrada e ficar apresentável como um verdadeiro bardo e desça contá-la.

Galeth subiu para o quarto que Tarek indicara. O quarto era mais espaçoso do que os quartos das tavernas humanas onde ficara até então, com uma cama de casal sobre uma estrutura de rocha, um armário, um lavatório e uma escrivaninha. Após se lavar e se vestir, o bardo desceu para o salão.

Clientes já começavam a chegar, a maioria mercadores de caravanas que vinham do mar de Areia ou que iam para lá. Galeth jantou e ficou conversando com Tarek sobre suas viagens com o grupo enquanto esperava os presentes na taverna começarem a beber.

A bebedeira começou após os filhos de Tarek servirem o prato principal da janta: Sauro do Subterrâneo assado com tempero a base de cerveja e hidromel. O lagarto de dois metros de comprimento estava em uma travessa de prata sobre uma das mesas e todos pegavam pedaços para comer com pão e cerveja.

E foi aí que o bardo cantante fez jus ao seu título, subiu em uma mesa com o alaúde e começou a tocar e cantar. Fizera isso movido pelas lembranças de seus dias como aventureiro, onde costumava dançar e tocar noites inteiras em tavernas. Saltou de mesa em mesa enquanto cantava, arrancando gritos de aprovação e baques de canecas chocando-se em brindes.

Quando terminou sua apresentação, estava arfante e notou que até Tarek estivera bebendo e dançando junto com os clientes da taverna. Guardou o alaúde no estojo enquanto recuperava o fôlego para o momento que se aproximava:

– Fazia tempo que não ria como ri hoje. Vocês foram uma plateia admirável! – Uma onda de vivas e mais brindes – E agora chegou o momento da minha história. Uma história que se passa no Mar dos Tormentos, na costa leste de Ornea. E quem a protagoniza é Tania Purseal, a donzela dos mares, capitã do terrível Presa do Demônio.

“Isso que vou contar aconteceu três anos atrás, quando Tania guiava seu navio Presa do Demônio de volta à Seabrad, o conhecido porto dos piratas, na costa nordeste de Ornea. Como estavam voltando de um saque à Mannister, na costa leste, Tania e seu bando estavam no Mar dos Tormentos. Este mar era conhecido por suas águas revoltas e perigosas.

O Presa do Demônio era um navio imponente, até mesmo para os padrões piratas. Seu casco e suas velas eram todos acinzentados. O casco era feito com os ossos de um monstro marinho há muito morto e a figura de proa era um demônio alado com uma carranca horrenda esculpido nesse mesmo osso. Era equipado com balistas e catapultas ao longo do convés. Possuía também quatro caríssimos canhões de pólvora, uma maravilha da alquimia.

Sua capitã não era menos impressionante. Com seus trinta anos e trajando um sobretudo cinza assim como seu amado navio, trajava também um corselete de couro e trazia na cintura um par de alfanjes, as espadas preferidas pelos piradas, e em um cinto em seu tronco havia duas pistolas de pólvora, com capacidade para uma bala cada. Seu rosto era belo, mas ostentava uma cicatriz em sua testa e outra em sua bochecha. Seus cabelos ruivos eram mantidos curtos a altura do queixo, para não atrapalharem no combate, e seus olhos eram verdes como o mar. Sobre sua cabeça, um chapéu que demonstrava seu posto como capitã, preto com plumas vermelhas.

A chuva era algo constante no Mar dos Tormentos, mas naquele dia Tania estava preocupada. Seus olhos e sua experiência diziam que não era nada fora do comum, mas seu instinto dizia que algo estava errado. A Capitã Purseal não era uma mulher tola e confiava em seus instintos:

– Gav, o que você vê aí em cima? – gritou a capitã ao seu observador, que ficava no cesto no topo do mastro principal.

– Uma tempestade se aproxima a estibordo, capitã!

– Reforcem todas as amarras. É bom que a carga e o armamento estejam bem presos ou eu farei com que vocês visitem o palácio do próprio deus Ochyan, malditos cães! – ordenou a ruiva. Ochyan era o deus dos mares e das tempestades e também protetor dos marinheiros e piratas.

Os homens puseram-se a trabalhar rapidamente, checando nós e refazendo-os quando achavam necessário. Levaram menos de cinco minutos para verificar o navio por completo. “O tempo que gastei obrigando esses idiotas a praticarem os malditos nós valeu a pena, no fim das contas” pensou Tania.

Quando a tempestade alcançou o Presa do Demônio, foi como se o próprio Ochyan tivesse esmurrado o navio, tamanha foi a força das ondas que o atingiram. Um dos tripulantes foi lançado ao mar e antes mesmo que o alerta de homem ao mar fosse dado, ele foi trespassado por uma lâmina com metade do comprimento do mastro principal. O resto da tripulação entrou em pânico, gritando:

– É STIFIATUS! O TORMENTO DOS MARES VEIO NOS BUSCAR!

Stifiatus era uma lenda antiga conhecida entre os marinheiros. Tratava-se de um monstro titânico que era uma mistura bizarra entre um tubarão e uma lula. O corpo e a cabeça eram de tubarão, porém ao invés de nadadeiras e da nadadeira dorsal, havia sete tentáculos, três de cada lado e um no topo. Desses sete, três terminavam em lâminas enormes, um em cada lado e o do topo. Os outros quatro terminavam em ventosas para agarrar suas presas. Seu comprimento era maior que qualquer navio, atingindo facilmente os vinte metros. E era esse monstro lendário que estava atacando o Presa do Demônio.

Tania percebeu que seu mal pressentimento era por causa do monstro. Notou também que as ondas monstruosas surgiam aonde o monstro nadava. “Então a tempestade na verdade é a presença dessa coisa. Será que o Mar dos Tormentos é tão revolto por esse bicho nadar aqui?” pensava a mulher atônita. Se tivesse lhe dito algo assim à duas horas atrás, ela teria rido como nunca. Agora, vendo as ondas de mais de sete metros que o mero nadar do monstro causava, ela acreditava:

– TODOS VOCÊS, PREPAREM AS BALISTAS, OS CANHÕES E AS CATAPULTAS! VAMOS ESCAPAR DESSE DESGRAÇADO RUMANDO PARA A COSTA NO MAR DE AREIA!

Os homens hesitaram um momento, mas acabaram obedecendo pois além de confiarem em sua capitã, não tinham plano melhor. Tania pegou o leme do navio e girou com toda sua força para a esquerda, gritando:

– A TODO PANO! ELE PODE SER UM MONSTRO, MAS NÓS SOMOS A PRESA DO DEMÔNIO! VAMOS, VAMOS, SEUS CÃES SARNENTOS! FAÇAM CADA TIRO CONTAR!

A primeira leva de disparos se deu quando os três tentáculos de lâminas surgiram, dois de um lado do navio e um do outro. O casco chacoalhou e rangeu quando o monstro colidiu contra ele vindo de baixo. A capitã Purseal ordenou ao contra-mestre para que assumisse o leme e desceu para o convés principal desembainhando seus dois alfanjes:

– CONTINUEM A DISPARAR!

Um dos tentáculos avançou contra uma das catapultas. “Não no meu navio, seu desgraçado” pensou Tania ao saltar para frente da catapulta e golpear a lâmina monstruosa com seus dois alfanjes, toda sua força, seu ódio pelo monstro e seu amor pelo seu navio e sua tripulação. Outro tentáculo avançou contra ela, que o desviou também.

O tempo ia passando e a capitã perdeu a noção de há quanto tempo estava desviando golpes dos três tentáculos-lâmina do Stifiatus. O navio saltava, balançava e rangia, mas seguia aguentando as investidas do ser colossal. E assim como o navio que liderava, Tania seguia desviando e combatendo os três tentáculos com força sobre-humana. Ela só estava conseguindo graças à ajuda de sua tripulação com os disparos do armamento do navio, que ora acertavam algum dos tentáculos, ora obrigava-os a desviarem-se.

Então, a capitã levou um golpe na perna e coxeou. Conseguiu desviar o golpe seguinte, mas viu que não estava mais em condições de se manter. “Eu fiz tudo o que podia, pelo menos peço que meu navio e meus homens possam chegar em segurança a terra firme” pensou antes de soltar os alfanjes, entregue ao seu destino. E nada.

Os baques pararam e os tentáculos sumiram. Eles haviam alcançado uma área rasa onde o Stifiatus não conseguia nadar. Em meio a gritos eufóricos de alegria, a tripulação ergueu a capitã Purseal. Enfaixaram os ferimentos que todos possuíam, já que ninguém saíra ileso da batalha. E pararam um dia para descansar na costa do mar de Areia, seguindo depois para Seabrad pela costa.”

Quando terminou a história, Galeth viu as lágrimas nos olhos de vários dos presentes. “Eles realmente se emocionaram com a força de Tania” pensou o bardo. Tarek era um desses, enxugando as lágrimas com a ponta da espessa barba ruiva. Enquanto os presentes voltavam a beber e conversavam sobre a história que acabaram de ouvir, o anão puxou Galeth para o lado e disse:

– Galeth, meu amigo, não acredito que você realmente fez isso!

– Do que está falando? – respondeu o bardo, confuso pela reação do amigo.

– Eu tinha apenas ouvido rumores, mas não achei que você teria feito algo assim. Não quando significasse arriscar tanto assim o alaúde e a espada.

– Desembuche logo, Tarek!

– Você era um dos tripulantes de Tania não era? Ouvi boatos de que alguns aventureiros partiram com ela de Mannister, entre eles um bardo que sabia usar uma espada. – A pergunta pegou o bardo de surpresa.

– Eu devia ter imaginado que você perceberia. Bom, devo lhe pedir que não fale a respeito disso com ninguém, mas sim, eu estava na tripulação. Foi assustador ver aquela coisa nadando para lá e pra cá.

– E por quê você não ajudou eles? Com certeza teria sido muito mais fácil fugir do Stifiatus se você tivesse tocado.

– Porque eu vi uma história sendo criada na minha frente, Tarek. Eu não podia interferir. Você sabe como eu sou quanto a isso. – respondeu Galeth com um sorriso. – Mas agora, vou subir. Tenho um dia cheio amanhã. Atravessar o mar de Areia com certeza será interessante.

– De fato será, Galeth.

Enquanto o bardo subia, o anão o observava e acendia um cachimbo. Pensava nas palavras de Galeth. “Então era isso que ele queria dizer quando disse que queria conhecer todas as histórias” pensou.


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