Entre Nós escrita por Aline Herondale


Capítulo 16
Cena do Crime


Notas iniciais do capítulo

Prometo que nos próximos capítulos vou procurar músicas melhoras para apresentar para vocês. Só música melancólica, credo.
https://www.youtube.com/watch?v=0DKw_xnzKok
Espero que gostem!



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“posso te olhar por mais cinco minutos

e continuar te olhando

por um dia inteiro…

mas eu não entendo essas pessoas

que costumam atiçar olhares

e depois sumir.

Eu não entendo.”



Ficaram assim por longos minutos. Não estavam mais rindo, ambos mais calmos e concentrados na dança. Os olhos dele estavam com as pupilas dilatadas e sua expressão era de vislumbre.

Ange nunca vira aquela intensidade no seu olhar e apesar de intimidá-la de uma forma que nunca aconteceu entre eles, ela perguntou se havia algo de errado.

Murmurando algo como “deixa para lá”, ele a girou para longe, depois, a puxou novamente para si. Minutos de dança e eles já eram um par quase perfeito, ela percebeu surpresa. Devia ser “coisa de gêmeos”, pensou.

A música terminou e quase imediatamente começou uma nova, dessa vez, era uma música mais lenta e mais suave. Era música em que casais dançavam juntos, braços em torno dos pescoços, mãos apoiadas nos quadris, cabeças apoiadas umas nas outras.

Theo começou a ficar meio ofegante. Ange, com as mãos ainda nas dele, ficou parada, ansiosa e imóvel. Não sabia qual seria a reação do seu irmão por conta da mudança de música. Será que ele iria embora? Ou ficaria? Pouco provável.

O momento se estendeu, interminável. Os olhos de Theo examinaram os dela; e o que quer que tenha visto ali o fez decidir. Então ele a envolveu nos braços e a puxou mais para perto. O queixo dela pairando acima do ombro dele, surpresa.

Ange o sentiu inspirar, respirando ao seu lado. As mãos dele se abriram, mornas, sob as omoplatas dela. Ela abaixou a cabeça. Dava para ouvir o coração dele, rápido e furioso, embaixo da orelha, sentir a rigidez do peito dele.

Os fios claros de Theo estavam bagunçados, e, quando ele a puxou para perto, ela sentiu o cheiro de cravo da colônia dele, e o fraco cheiro de sabonete. Ela colocou os braços no pescoço de Theo, puxando alguns fios do cabelo na nuca dele ao entrelaçar os dedos.

Um tremor passou por ela. Ange já tinha tocado no cabelo de Theo antes, é claro, mas era tão macio ali, havia um espaço vulnerável logo abaixo da queda dos fios. E a pele também era macia. Ange acariciou para baixo com os dedos, reflexivamente, e sentiu ao mesmo tempo o nodo mais alto da coluna dele, a respiração aguda.

Ange olhou para Theo. Seu rosto estava branco, os olhos para baixo, cílios claros sobre as maças do rosto. Ele estava mordendo o lábio inferior, como sempre fazia quando estava nervoso. Ela viu todas as marcas que os dentes fizeram na pele macia.

Ela se pegou pensando no comentário de Francie. Uma boca beijável…

Ela se forçou a afastar o pensamento. Ele era seu irmão. O que estava acontecendo com ela? Não deveria pensar sobre isso em relação a ele. Não era…

A mão esquerda de Theo desceu pelas costas dela até a cintura, deslizando levemente para o quadril. O corpo dela balançou. Ange já tinha ouvido falar das amigas com borboletas no estômago, e sabia o que isso significava: aquele agito, aquela sensação profunda e desconfortável nas suas entranhas. Mas ela agora sentia em todo lugar. Borboletas sob sua pele, batendo as asas, enviando tremores que subiam e desciam em ondas pelo seu corpo. Ela começou a ficar nervosa e traçou os dedos sobre as costas dele, querendo escrever: O-Q-U-E-V-O-C-E-E-S-T-A-F-A-Z-E-N-D-O?

Mas ele não pareceu notar. Pela primeira vez, Theo não estava ouvindo a linguagem secreta deles. Ela parou, olhou para ele; os olhos dele, ao encontrarem os seus, estavam sufocados, sonhadores. A mão direita estava no cabelo dela, soltando-o e entrelaçando-o com os dedos. Ange sentiu como se cada fio de cabelo fosse um fio vivo ligado a uma de suas terminações nervosas. Sua respiração começou a ficar ofegante e descompassada e quando ela pensou que o peito fosse explodir Theo abriu a boca.

— Quando eu acordei e vi que estava no seu quarto - disse ele, com a voz baixa e carregada - eu achei tão bom. Faz tanto tempo que não dormimos mais no mesmo quarto. Isso me lembrou dos anos em que mamãe era viva e de quando você nunca partiu. Eu estava com saudades de...dormir com você.

A Ange normal o teria abraçado e derramado algumas lágrimas, como sempre faz quando começam a falar sobre algum assunto envolvendo a mãe. A Ange e o Theo normal teriam se separado rapidamente e cada um cuidaria de alguma tarefa da casa sem mais delongas. Mas esse não era o Theo normal; era um Theo que ela nunca havia visto, um Theo com a expressão reduzida aos ossos elegante do seu rosto. Ela nunca sentiu uma onda de desejo desesperado, perdido em seu olhar, como chamas claras, nas curvas das suas maçã do rosto e da mandíbula, a suavidade inesperada da sua boca.

— Mas foi você quem não quis mais dormir comigo. Disse que não podia mais. - sussurrou ela.

Ele não respondeu. Parecia agoniado. Seus batimentos estavam três vezes mais acelerados. Dava para ver na garganta dele. Os braços estavam parados no lugar; ela sentiu que ele queria segurá-la onde ela estava e não permitir que ela chegasse mais perto. O espaço entre os dois era quente, elétrico. Os dedos de Theo se curvaram em torno do seu quadril. Sua outra mão deslizou pelas costas dela, lentamente, subindo pelo cabelo até ele alcançar a pele nua da sua nuca.

Ele fechou os olhos.

Os dois tinham parado de dançar. Estavam imóveis, Ange não conseguia respirar, as mãos de Theo se moviam sobre ela. Theo já a tinha tocado milhares de vezes mas ele jamais a havia tocado assim.

Parecia enfeitiçado. Alguém que sabia que estava enfeitiçado, e estava lutando contra os impulsos com todos os nervos e fibras do corpo, a percussão de uma terrível batalha interior pulsando pela veias. Ela sentiu a pulsação pelas costas da mão, depositada nas costas dele.

Ela não deveria estar receosa? No mínimo desconfiada? Sentia que algo estava acontecendo, algo animalesco e reprimido mas tudo o que ela queria era chegar mais perto e soltar o que quer que estivesse presso dentro do seu irmão. Aquele era Theo. Seu irmão gêmeo, sua alma gêmea. Ange não tinha motivos para se afastar dele. E com uma surpresa reveladora ela sentia que queria chegar mais perto.

Ange foi em direção a Theo, sutilmente, menos de um centímetro. Ele engasgou. O peito dele inchou contra o dela, tocando as pontas dos seios de Ange sob o tecido da regata. A sensação o golpeou como eletricidade. E ela não conseguiu pensar, nem reagir, nem questionar.










A sala está envolta em luz dourada. Ange ainda sorri para mim, seu rosto iluminado de alegria, fios ruivos e loiros caindo sobre os olhos e as costas, fazendo cócegas nas minhas mãos ao redor da sua cintura. Seu rosto brilha como um daqueles postes antigos, acesso por dentro, e tudo mais na sala desaparece, envolto numa névoa escura. Estamos dançando, oscilando de leve ao som da voz que canta, e sinto Ange quente e viva nos meus braços. Só de ficar lá, me movendo de leve para os lados, eu me dou conte de que não quero que esse momento termine.

Eu me pego pensando, assombrado, como ela é bonita, encostada em mim com sua regata laranja, os braços nus e lisos no meu pescoço. O seu colo perigosamente exposto, revelando as curvas acentuada das suas clavículas e seios, a planície da pele clara e lisa por baixo. A saia de algodão branco acaba muito acima dos joelhos, e tenho consciência de suas pernas nuas roçando o jeans puído e ralo da minha calça. Bebo cada detalhe, da sua respiração suave ao toque de cada dedo na minha nuca. E me pego sentindo uma mistura de excitação e euforia tão forte que não quero que o momento jamais acabe…

Trocamos algumas palavras e digo coisas que nunca diria se estivesse em plena consciência. Enxergar nos olhos de Ange como a magoei quando disse que não voltaria a dormir no mesmo quarto que ela quase me enlouquesse. E cogito a ideia de contar o real motivo.

Minha cabeça está nebulosa e sinto que estou agindo de um modo que nunca deveria agir, principalmente com ela e por ser Ange. Mas não controlo mais meus movimentos. Ela parou de sorrir e está me olhando num misto de receio com curiosidade. Ange dá um passo na minha direção, menos de um centímetro, mas sinto seu peito encontrar o meu e instantaneamente todos os seus contornos por debaixo da blusa.

E então, do nada, tenho consciência de outra sensação - um comichão pelo meu corpo inteiro, uma pressão familiar entre as pernas. Bruscamente eu a solto, empurrando-a para longe, e caminho até o rádio em passos largos para interromper a música.

Com o coração martelando no peito, eu me refugio no sofá, me enroscando, tateando o livro mais próximo para puxar para o colo. Ainda parada onde a deixei, Ange olha para mim, com uma expressão totalmente desconcertada.

— Eles vão voltar a qualquer momento - explico, minha voz apressada e irregular. Respiro fundo. Não posso perder o controle. - Eu...tenho que terminar isso aqui.

Parecendo tranquila, ela suspira, e se joga no sofá do meu lado. Sua perna cola na minha coxa e eu me retraio violentamente. Preciso de uma desculpa para sair da sala mas não estou conseguindo pensar direito, minha cabeça um caos de ideias e emoções tumultuadas. Estou sem fôlego, o coração batendo tão alto que tenho medo de que ela escute. Preciso tomar o máximo de distância possível. Pressionando o livro nas coxas, pergunto se poderia começar o almoço um pouco mais cedo hoje. Ela concorda pegando as duas canecas vazias onde estava nossos chocolates e vai para a cozinha.

No momento em que escuto o barulho da louça na pia, subo a escada correndo, tentando fazer o mínimo de barulho possível. Depois de me trancar no banheiro, eu me encosto à porta, como se tentasse reforçá-la.

Então tiro todas as roupas, quase as rasgando na minha pressa, e tomando o cuidado de não olhar para o corpo, entro no chuveiro gelado, arquejando com o choque. A água está tão fria que chega a doer, mas não me importo: é um alívio. Tenho que acabar com essa…essa loucura. Depois de ficar lá por um tempo, olhos semicerrados, a pele começa a ficar insensível e as terminações nervosas dormentes, apagando todos os sinais de excitação. Paralisa os pensamentos acelerados, alivia a pressão da loucura que começou a esmagar minha cabeça. Eu me inclino para frente, mãos na parede, deixando a água glacial fustigar meu corpo, até não restar mais nada a fazer senão tiritar violentamente.

Não quero pensar. Se não pensar, sentir, vou ficar bem e tudo vai voltar ao normal. Sentado à escrivaninha do quarto com uma camiseta limpa e uma calça de moletom, o cabelo molhado pingando em filetes frios que escorrem pela nuca, quebro a cabeça com equações de Segundo Grau, lutando para manter as cifras na cabeça, lutando para entender os números e símbolos. Repito as fórmulas em voz baixa, cubro páginas e mais páginas de cálculos, e toda vez que sinto uma rachadura nessa couraça autoimposta, uma fresta da luz entrando no meu cérebro, eu me forço a trabalhar ainda mais duro, ainda mais rápdio obliterando todos os outros pensamentos. Mal tenho consciência dos outros voltando, das vozes altas no corredor, do barulho dos pratos na cozinha abaixo de mim. Eu me concentro em apagar tudo isso. Quando Willa chega para avisar que eles pediram pizza e ganharam uma torta para cantar o parabéns do Mouse, digo a ela que não estou com fome e minto que estou com uma enorme dor de cabeça. Ela fecha a cara e peço que se desculpe com Mouse por mim e assim que ela sai tranco a porta. Como previa um minuto depois Ange aparece e tenta entrar mas eu a despisto. Preciso terminar esse capítulo até hoje à noite, preciso resolver cada problema em alta velocidade, não tenho tempo para pensar. Tudo que posso fazer é trabalhar, ou vou enlouquecer.

Os sons da casa me engolfam como estática de rádio, a rotina noturna pela primeira vez se desenrolando sem mim. Uma briga, uma porta batida, papai gritando - não me importo. Eles que se entendam, eles têm que se entender, preciso me concentrar nisso até ser tão tarde que eu possa despencar na cama, e então será de manhã e nada disso terá acontecido. Tudo estará de volta ao normal - mas do que estou falando? Tudo está normal! Eu só esquecei, num momento de insanidade, que Ange é minha irmã gêmea.











Depois que Theo se limpou, escovou os dentes e penteou os cabelos, caminhou até o quarto de Ange.

E parou no meio do caminho. Ele queria se deitar na cama ao lado dela, queria conversar sobre os eventos que aconteceram e fechar os olhos junto dela, ouvindo sua respiração como ruídos do mar, medindo os passos até o sono.

Mas, quando pensou naquela tarde na sala, em Ange rodopiando, sorrindo de um modo que a muito tempo ele não a via sorrir, e depois garrada à ele, ele não sentiu o que deveria sentir: diversão, a lembrança da alegria, o alívio por ter uma tarde livre dos seus irmãos.

Em vez disso sentiu um aperto no corpo que enviou uma onda de dor até o meio dos ossos. Quando ele fechou os olhos, viu Ange iluminada pela luz do pôr do sol, os cabelos se soltando da trança, os últimos raios de sol pintando suas mechas de vermelho e a deixando com uma auréola em volta da cabeça.

O cabelo de Ange. Theo sempre precisava desviar o olhar. Talvez por ela raramente soltá-lo, talvez por Ange de cabelos soltos ter se tornado seu desejo secreto, e passar os dedos por eles também, mas os cabelos lisos e longos sempre foram como cordas ligadas diretamente aos nervos.

A cabeça dele doeu, o corpo pulsava além do razoável, querendo estar novamente na sala com ela. Sozinhos. Não fazia o menor sentido, então ele forçou os passos para longe da porta de Ange, pelo corredor, de volta para seu quarto. Estava escuro e tinha cheiro de roupa amontoada e úmida. Mesmo assim Theo não precisou de luz; ele sabia exatamente em que parte da escrivaninha estava seu livro de história.

Theo retirava folhas de sobre o título quando um resmungo ecoou pelo corredor. Ele pegou o volume e em um instante já estava fora da porta do quarto, se apressando pelo corredor. Viu a porta do banheiro aberta, a luz amarelo inundando o corredor e Mouse inclinada para fora, o rosto fino iluminado. O pijama era coberto de biscoitos.

— A Willa ta’ com dor de barriga. - Disse ele. - Ela vomitou. Não deu tempo de chamar a Ange.

— Obrigado por avisar. - Ele abaixou para dar um beijo na testa dele. - Volte para a cama, cuido disso.

Mouse recua, e Theo entra no banheiro, fechando a porta.

Willa é uma bola encolhida no canto da privada. Ela estava cochilando, a cabeça apoiada nos joelhos, a boca aberta em um engasgo. Um fio de saliva escorrendo pelo queixo. Provavelmente haviam lhe dado todo doce que ela pediu do parque e acabou misturando várias besteiras.

Theo se sentou no chão e colocou uma das mãos no ombro da irmã.

— Willa. - chamou. - Acorde; você está no banheiro, acorde.

Willa levantou o rosto, os fios lisos e claros desalinhados. Quando viu Theo, soluçou e pulou para cima do irmão mais velho, agarrando-o pelo pescoço.

Theo segurou Willa e esfregou as costas dela, afagando gentilmente os nodos da espinha. Muito pequena, muito magra, sua mente dizia. Era uma luta fazer Willa comer e dormir, desde a morte da mãe. Mas ele e Ange vinham fazendo o melhor que conseguiam.

A respiração de Willa foi uniformizando lentamente enquanto Theo estava ali abraçando-a. Queria levar Willa para a cama e se deitar, queria aconchegar a irmã e dormir. Ele precisava muito descansar, e o cansaço parecia arrastá-lo como uma onda, puxando-o  para baixo.

Mas ele não conseguia dormir. O corpo estava aceso, incomodado. Os socos que recebeu de Graydon foi uma agonia enorme, e as joelhadas foi pior ainda. Ele sentiu os ossos dobrarem, a ponto de quebrar. Quase ganhou duas costelas fraturadas. Sua visão ficou turva e ele sentiu cair.

E então veio a voz de Ange ao seu ouvido, e as mãos dela nele, e ele soube que ia ficar tudo bem.

Espontaneamente, lhe veio à mente a imagem que ele estava tentando apagar o dia inteiro: Ange agarrada a ele, com as mãos em volta do seu pescoço. Seus cabelos em cor de chamas em volta do rosto.

Ele lembrou de ter pensado que nunca viu Ange o abraçar com tanta intensidade e nem tão apertado.

Theo caminhou de volta para o seu quarto e sentou na cama, apoiando as costas. Enquanto Willa dormia, ele abriu o livro que tinha pego mais cedo e continuou a ler de onde havia parado da última vez.


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Notas finais do capítulo

MEREÇO UMA RECOMENDAÇÃO? EU ACHO QUE MEREÇO SIM.
XOXO