Entre Nós escrita por Aline Herondale


Capítulo 15
Horas Mágicas


Notas iniciais do capítulo

Alguém ai á está de férias? Porque eu ainda não. :(
Essa música eu descobri no bendito Spotify. Alguém mais usa essa plataforma? Ele é divino.
https://www.youtube.com/watch?v=eLaNBbKJPfw



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/603820/chapter/15

“Eu hesitei

te beijar, te tocar,

te sentir, te despir,

por medo,

de me doar,

de me entregar

a um sentimento tão feroz

e desconhecido.

O amor.”



Ange estava na frente do espelho do banheiro, limpando o rosto úmido com a toalha.

Seus olhos estavam terrivelmente irritados e pintados com linhas vermelhas. A região abaixo estava alta e ela parecia estar apertando, como se estivesse tentando enxergar algo ao longe. Ela quase não reconhece si mesma.

Não dormiu a noite inteira. O máximo que conseguiu foram cochilos de dez minutos, até Ammon e Graydon voltarem para casa, de madrugada, rindo e fazendo barulho. Depois disso não pregou o olho em momento nenhum. Por sorte nem Mouse ou Willa acordaram e Theo mal se mexeu.

Quando ela terminou de assistiu o sol nascer decidiu que já estava na hora de agir. Vinte minutos com uma embalagem de alvejante removeram as manchas de sangue do chão da cozinha. Isso foi fácil. Ela estava acostumada a ver sangue nos machucados dos seus irmãos. Ainda tinha algumas lembranças nebulosas sobre ver na sua própria mãe. Mas havia algo mais visceral naquele sangue, no sangue de Theo seco em sua mão. Ao olhar para a blusa pôde ver respingou de sangue seco na barra, as gotas de evidência subindo e descendo pela borda.

O sangue de Theo era diferente.

Quando ela o viu no chão da cozinha, atingido e encolhido, se assutou mas ver a maneira como o sangue estava respingado no chão foi pior. Foi a primeira vez na vida que a idéia de Theo morrer passou pela sua cabeça, que ela podia perdê-lo. Ela sabia o que as pessoas diziam sobre a dor de perder um parente, sabia que se tratava de uma dor tão profunda que parecia que uma parte sua era arrancada. Ange já tinha perdido a mãe e Dona Eva, além de Nicola, a única amizade sincera que teve, que partiu para fora do país. Achava que sabia o que era a perda, e se considerava preparada para isso.

Mas nada a preparou para a sensação que a idéia de perder Theo lhe causou: que seu céu se tornaria escuro para sempre, que não haveria mais solo firme. Mais estranha ainda foi a sensação que a assolou quando ela se deu conta de que ele ficaria bem. Ange se tornou consciente da sua presença física de um jeito que quase doeu. Ela queria abraçá-lo, agarrá-lo enterrando os dedos como se pudesse apertar o suficiente para costurar a pele dos dois; entrelaçar os ossos. Sabia que não fazia sentido e que nem era lógico, mas não sabia explicar de outro jeito.

Sabia que era intenso, doloroso e uma coisa que nunca tinha sentido por Theo antes. E isso a assustava.

Ela pendurou a toalha de volta no cabide e saiu do banheiro.

Mouse estava sentado na sua cama, balançando as pernas curtas.

— O Theo tá dodói? - Perguntou fitando Theo estirado na cama. Ele quase não se mexeu durante a noite e também não acordou em momento nenhum, mas Ange soube que ele estava bem assim que terminou de cobrir seus machucados.

— Mais ou menos. - Ela respondeu e ofereceu a mão para o irmão. Mouse pareceu ponderar a ideia e aceitou, fechando sua mãozinha dentro da de Ange. Ela desceu as escada, pretendo ir para a cozinha e começar a preparar o café da manhã. Passou antes na sala para buscar Willa que estava montando um quebra-cabeça mas Muse acabou se juntando a ela e Ange agradeceu mentalmente por ambos estarem calmos. Ela bebeu um copo d’água e avisou que ficaria no quarto. Ammon ainda não deu as caras mas Ange sabe que a qualquer momento ele aparecerá. Assim como seu pai.

Chegando na porta do quarto Ange levou um susto. Seu irmão estava tentando se sentar na cama. Ele estava bem, estava acordado.

Ange correu até ele, fechando a porta do quarto em silêncio. Ela se sentou ao seu lado e ficou o observando calado, bebendo da imagem do seu irmão: bem, acordado e,  principalmente, vivo.

Theo esperou alguma reação dela, mas Ange só o encarava. Seus olhos carregados de um sentimento intenso que ele não soube identificar. Desconfortável, foi o primeiro a  quebrar o silêncio.

— Desculpe. Eu não deveria ter começado… - Sua voz tremeu como se seu corpo estivesse sendo sacudido. Ange tentou tocar seu rosto mas ele se afastou, como se tivesse levado uma ferroada. Sua dor era palpável: a mágoa, o ressentimento, a fúria, tudo enchendo o pequeno quarto.

— Theo, você tinha todo o direito de perder a cabeça por causa do papai. - ela começou sem saber direito como tranquilizá-lo. -  A total falta de comprometimento com os pequenos, ele levando Ammon para esses bares...- Ange se aproximou ainda mais dele  e tenta tocá-lo novamente. - Theo, escuta. O que papai fez infelizmente não foi nenhuma novidade. Não podemos esquecer como ele é. Você não pode esquecer. Ele se enfureceu e revidou da única maneira que sabe: batendo.

— Ele está certo quando diz que não presto. - Theo estava olhando para o chão, sem coragem de olhar nos olhos da irmã. Sentiu vergonha e humilhação. Não conseguia se defender nem de um velho gordo, viciado. O que poderia fazer pela família? Diferente de Ange que resolvia tudo, consertava as coisas e sempre sabia lidar com qualquer situação. - Eu… Eu sou um inútil. Não sei nem me defender. Quem dirá proteger alguém.

Ange havia perdido quase toda a discussão que Theo e Graydon tiveram, mas ela imaginava que podia adivinhar o que ele havia dito para seu irmão; o mesmo de sempre.

— Theo, para com isso. Como pode dizer uma coisa dessas?

— Mas é a verdade Ange.

— Não, não é. E você sabe disso. Não deixa o papai te influenciar! - Ange disparou a dizer e subitamente segurou o rosto do irmão, forçando seus olhos encontrarem os dela. - Quem foi que ficou do meu lado a vida inteira? Ela família se mantém únida por causa de você, Theo. Se eu nunca tive uma crise no meio de todo mundo foi por sua causa. Você. Foi você e é você quem me dá forças todos os dias. Você, Theo. Você!

Ele abaixou a cabeça, derrotado. Ange podia sentir sua mandíbula tensionar, tremendo sob suas mãos. Os músculos contraídos nos ombros.

— Está tudo bem. Eu estou bem, os pequenos estão bem e isso é tudo que importa! Não dê ouvidos a ele. Nunca, jamais dê ouvidos a ele. Ele é só um velho, viciado,  amargurado, que nunca foi homem de verdade. E ele não sabe nada sobre você. Ninguém se envergonha de você, Theo. Só temos orgulho. Eu tenho orgulho de você ser meu irmão. De você ser meu… Por Deus, Theo...

Há um longo silêncio. Tudo que ela podia ver era o alto da cabeça de Theo. Ela o sentiu concordar com a cabeça e se inclinou ligeiramente para ela. Rapidamente Ange passou os braços pelo seu pescoço, puxando-o para si, apertando com força.

Sussurrando, disse:

— Eu sou a pessoa mais sortuda do mundo por ter você.

Theo vagarosamente levou suas mãos até as costas da irmã e a apertou tão forte quanto ela estava. Fechou os olhos e se permitiu respirar pelo tempo que quis seu cheiro. Ficaram assim por longos minutos.











Fico parada na porta da cozinha por um momento, absorvendo o caos. Antes de sair do quarto pedi para Theo esperar alguns minutos ali deitado pois ela tinha uma ideia em mente. Não contei o que era, só disse que num minuto teríamos a tarde inteira livre.

Eles estão sentados à mesa, com um mar de sucrilhos, bolinhos de chocolate, batas fritas e latas de Coca-Cola espalhados à frente. Papai deve ter mandado Ammon à loja de conveniência quando descobriu que nem Theou ou eu compramos “besterias”. Mas pelo menos ele acordou antes do meio-dia, embora ainda esteja só de bermuda, descalço e tenha enormes bolsas sob os olhos injetados. A julgar pelo cinzeiro, já deve ter fumado meio maço, mas, apesar da aparência, está animado e cheio de energia, sem dúvidas graças à dose de uísque que farejo no seu café.

Fico ao mesmo tempo enfurecida e aliviada de ver que não exibe qualquer sinal da briga com Theo.

— Ange! Ange! Ange! - Willa grita e estende os braços para mim.

Ao seu lado, Mouse tenta fazer malabarismos com três laranjas da fruteira, sua glicose entrando em órbita. Willa fala tão rápido que ninguém entende, a boca cheia ao máximo, o queixo todo sujo de chocolate. Preparo o café, tiro o saco de granola do armário e começo a cortar o pão em cima da bancada.

— Quer uma barrinha de chocolate? - Oferece Mouse, generoso.

— Não, obrigada, Mou. - agradeço. - E acho que você já deve ter comido chocolate demais por hoje. Lembra o que acontece quando você come muito açúcar?

— Sou mandado pra sala do diretor. - responde automaticamente. - Mas hoje nós não tá na escola.

— Não estamos na escola. - corrijo. - Olha só, eu estava aqui pensado… Hoje é sábado certo? Porque não vamos naquele parque de diversões que vocês querem tanto conhecer? Segunda feira é aniversário do Mouse mas como o papai não vai estar aqui podíamos comemorar hoje.

Graydon me dá um olhar sombrio e desconfiado, bufando de raiva.

— Verdade! - Grita Willa, quase caindo da cadeira de excitação.

— Sim, sim sim! Queremos, queremos, queremos! - Mouse dispara a correr em volta da mesa, saltitando de felicidade.

— Papai, leva a gente, papai. Por favor! - Willa pede de mãos juntas e fazendo um bico muito fofo.

— Porque não ao boliche? - sugere Ammon sem mais nem menos. - Eles têm games lá.

Sorrio indulgente.

— Eu acho esse parque tem games, Ammon.

Uma centelha de interesse surge em seu olhos.

— Pai, compra algodão-doce para mim? - grita Mouse.

— Pra mim também, pra mim também! - secunda-o Willa.

Papai dá um sorriso desanimado.

— Ir ao parque?...

— Mas vocês têm que se vestir correndo. - aviso. - Já é quase onze horas.

— Pai, anda logo! - grita Mouse. - Você tem que se vestir agora!

— Só vou terminar esse cigarro.

Mas Mouse e Willa já saíram correndo da cozinha para vestir os casacos e calçar os sapatos. Até Ammon tirou os pés de cima da mesa.

— Theodor vai vir no nosso passeiozinho? - pergunta papai, dando uma tragada funda no cigarro, seus olhos se fiando. Um arrepio sobe minha espinha e para disfarçar o tremor vou até a mesa,do lado contrário de onde Graydon está sentado. Eu sei que ele só está perguntando isso para saber quão mal Theo está pela surra de ontem. Respiro fundo antes de responder.

— Não, ele saiu cedo para dar uma caminhada e comentou que  tem um monte de deveres de casa atrasados para fazer.  - Paro de tirar a mesa de repente e dou um tapa na testa. - Ah, não. Que droga!

Nem Ammon ou papai perguntam o que aconteceu, mas pelo olhar sei que estão esperando alguma explicação. Demoro alguns segundos antes de responder à pergunta silenciosa.

— Esqueci completamente. Não posso sair hoje. Prometi aos Davidson que tomaria conta do recém-nascido deles agora à tarde.

— Não dá para dizer que está doente? - Papai pergunta com desdém mas sei que, no fundo, passar uma tarde inteira com Ammon, Mouse e Willa, sozinho, o aterroriza.

— Não, eles vão a um casamento e eu já prometi há um tempão que ficaria com o bebê. - Respondo sem levantar a cabeça, - Além disso - acrescento, numa indireta atrevida -, nós precisamos do dinheiro.

Mouse e Willa voltaram para a cozinha, devidamente encasacados, mas param, na mesma hora sentindo a mudança no clima.

— A genial da Ange acabou de se tocar que a gente não pode ir. - Ammon informa a eles.

— Porque?! - Mouse me lança um olhar de acusação, seus olhos claros magoados.

— Nããão! - Willa uiva de desespero.

— Mas vocês podem ir com o papai - digo com naturalidade, tendo o cuidado de evitar qualquer olhar.

Mouse e Willa se viram para ele, olhos suplicantes.

— Pai! Pai, por favor! Por favor! Por favor! - Pedem.

— Ok, ok, tá bem, tá bem! - Ele suspira, lançando um olhar aborrecido, quase zangado.

Enquanto papai sobe para se vestir Mouse e Willa correm pela sala num frenesi movido a glicose, Ammon torna a pôr os pés na mesa e começa a folhear tranquilamente uma revista em quadrinhos.

— Que desfecho inesperado. - murmura, sem levantar os olhos.

Fico tensa, mas continuo a tirar a mesa.

— Que diferença faz? - respondo. - Mouse e Willa vão sair e de divertir, e você vai ter cinco vezes o dinheiro que costuma carregar no bolso para gastar em games.

— Não estou me queixando. - diz ele. - Só acho comovente o jeito como você inventou essa mentira complicada só porque Theo tem vergonha de enfrentar o fato de que é um filho da mãe violento. - ele faz uma pausa. - E desde quando meninas da igreja podem mentir? - Pergunta em deboche.

Paro de limpar a mesa, apertando a esponja com tanta força que a água quente e ensaboada escorre por entre meus dedos.

— Theo não sabe nada sobre isso, ok? - respondo, a voz controlada de raiva comprimida. - A ideia foi minha. Porque francamente, Ammon, é um fim de semana, Mouse e Willa merecem se divertir um pouco, e Theo e eu estamos totalmente arrebentados de tomar conta da casa a semana inteira.

Decido ignorar o seu último comentário sobre eu poder mentir. Só vai incitar mais raiva em mim e divertí-lo.

— Aposto que ele está mesmo...depois de levar uma surra no papai ontem. Sem contar na tentativa de me matar, alguns dias atrás. Sorte dele eu não ter contado para o papai. - E me fuzila com os olhos castanhos duros como balas.

Seguro a beira da mesa.

— O Theo só quer te proteger. Não é certo o papai te levar para um bar. Um bar Ammon. - enfatizo. - Você só tem treze anos, não deveria frequentar esse tipo de lugar. E Theo também não tinha intensão de brigar com papai, ele só perdeu a cabeça por um momento. Violência não leva a nada.

Um lento sorriso de triunfo se esboça no rosto de Ammon.

— Bem, não posso dizer que fiquei surpreso. Se ele não passasse os dias se escondendo atrás dos livros da escola e aprendesse a lutar como um verdadeiro…

Dou um soco na mesa.

— Não me venha com essa conversa machista de gangue. - sibilo num sussurro furioso, ameaçando perder meu autocontrole. - O que aconteceu não foi certo. O Theo ficou extremamente abalado e decepcionado. Ele não é violento e nunca teve a intenção de machucar ninguém.

— Uau, é muita consideração da parte dele. - responde Ammon, a voz destilando sarcasmo, ainda folheando a revista com uma calma insuportável. - Mas é meio difícil de acreditar, quando apenas algumas horas atrás ele estava com as mãos no pescoço do papai.

Engulo em seco. Theo fez isso? Não me admira que Graydon tenha batido nele daquele tanto, mas além do que imagino não faço ideia do que ele falou para Theo. E a julgar deve ter sido algo relacionado à mim. Theo não perderia as estribeiras por pouca coisa.

— Ele também teve sua parte nisso. Não duvido nada.

A conversa se dá por encerrada quando papai aparece na porta da cozinha totalmente agasalhado e com um boné na cabeça.

Mouse e Willa saem gritando de excitação em direção a porta e Ammon vai embora com seus olhos ardendo de raiva.

Quando a porta da frente finalmente é batida e as vozes excitadas vão se afastando pela rua afora, solto um longo suspiro de alívio e dou uma olhada no relógio da cozinha. Quantas horas será que temos até Willa e Mouse começarem a brigar, Ammon a discutir por causa do dinheiro e papai decidir que já fez mais do que o bastante para compensar sua ausência durante a semana inteira? Considerando o tempo do percurso, acho que umas quatro horinhas - cinco, se tivermos sorte. Sinto que devo começar a aproveitar imediatamente, experimentar todas as coisas que estou sempre planejando fazer, mas empurrando com a barriga porque tem sempre algo mais urgente em casa acontecendo… Mas de repente parece um luxo absurdo ficar aqui sentada na cozinha silenciosa, a luz do sol rendilhada entrando pela janela e aquecendo meu rosto - sem pensar, sem me mexer, sem me preocupar com deveres de casa ou discutir com Ammon ou tentar controlar Mouse ou divertir Willa. Apenas existindo, como fazia quando morei com Dona Eva. O som do silêncio enche o espaço como um cheiro delicioso: sem vozes altas, portas batidas, pés marchando, música ensurdecedora ou vozerio de desenhos animados.

Devo ter pegado no sono, porque de repente o tempo dá um salto e eu me pego sentada num raio brilhante  de luz branca, estremecendo e massageando o torcicolo no pescoço e a rigidez nos braços. Me espreguiço e levanto, toda dura, indo encher a chaleira. Quando sigo para o corredor com duas canecas fumegantes de chocolate quente e me dirijo à escada, ouço um barulho de papéis às minhas costas e me viro. Theo se refugiou na sala, entre fichários, livros e um mar de notas espalhadas sobre a mesa de centro e ao seu redor no carpete, sentado no chão, costas no sofá, uma perna estendida embaixo da mesa a outra dobrada e equilibrando um volume pesado. Está parecendo bem melhor, muito mais relaxado em sua camiseta verde favorita e jeans desbotado, descalço, o cabelo ainda úmido do banho.

— Obrigado. - Tirando o livro do colo, ele aceita a caneca que ofereço. Volta a se recostar no sofá, soprando a bebida quente, e eu sento no carpete apoiando os cotovelos sobre a mesa do centro, bocejando e esfregando os olhos.

— Nunca tinha visto ninguém pegar no sono com a cabeça pendurada no encosto de uma cadeira. O sofá não é confortável o bastante para você? - Seu rosto se alegra com um sorriso. - E aí, me diz...como foi que você se livrou da tropa inteira?

Conto a ele sobre a sugestão do parque de diversões, a mentira sobre o bebe dos vizinhos.

— E você conseguiu convencer Ammon a participar desse passeio familiar?

— Eu disse a ele que tem games no parque.

— E tem?

— Não faço a menor ideia.

Caímos na risada.

Depois um tempo pergunto:

— Como está indo com a revisão?

Empurrando o livro enorme com ar de nojo, ele solta um suspiro longo e trêmulo.

— Não estou entendendo esse troço. E se o professor Parris entendesse pelo menos eu não teria que aprender sozinho de um livro de biblioteca.

Sinto vontade de reclamar. Estava esperando que a gente fosse sair par afazer alguma coisa à tarde - dar um passeio na praia, tomar um milkshake no Joe’s ou, luxo dos luxos, pegar um cinema -,mas final do ano será o vestibular e tentar estudar no feriadão do fim do ano com as crianças em casa o dia inteiro seria quase impossível. Não posso dizer que estou preocupada com a prova, porque, ao contrário de Theo, acho todas as matérias fáceis.

Dando goles distraídos no chocolate quente, ele torna a pegar a caneta e começa a desenhar um diagrama no pedaço de papel mais próximo, classificando as várias formas e símbolos com um código ilegível. Fechando os olhos por um momento, pega o papel e o compara com o diagrama do livro. E antes que eu tenha a oportunidade de abrir a boca, ele amassa o papel, irritado, atirando-o do outro lado da sala, e começa a morder o lábio.

— Talvez você precisa dar um parada… -sugiro, erguendo os olhos do livro aberto do meu lado.

— Porque não consigo decorar esse troço? - Ele me olha com ar suplicante, como se eu pudesse fazer a resposta aparecer. Isso eu até posso mas o que ele quer mesmo é a minha capacidade em consegui-la. Observo seu rosto pálido, as olheiras fundas, e penso: Você está exausto.

— Quer que eu teste você?

— Quero, por favor. Só me dá um minuto.

Quando ele volta ao livro, aos diagramas e rabiscos, seus olhos se franzem de concentração e ele torna a morder o lábio. Começo a folhear uma revista a esmo, minha cabeça lembrando por um segundo o dever de física avançada enterrado no fundo da minha mochila, antes de eu decidir que pode esperar. Chego à seção de esportes, fofocas e quando chego na metade fico entediada e a deixo de lado.

Bebericando meu chocolate olho para Theo, que está tamborilando os dedos no carpete, os olhos fechados, repetindo baixinho uma fórmula de química em tom de mantra. Tento imaginá-lo na sala de aula, copiando o material exposto do quadro, prestando atenção à aula e fazendo perguntas. Aonde será que ele tem o costume de se sentar? Perto da janela? No fundo da sala?

Theo abre os olhos e os fixa em mim.

—  Ah, meu Deus, isso tem que estar certo!

— Que assim seja, amém. - digo e inesperadamente ele ri.

— Será que dá para me testar nisso agora?

— Posso, mas não prefere fazer isso depois do almoço? Já é quase meio dia…

— Ange você acabou de devorar uma xícara inteira de chocolate quente! Não pode estar com fome. - Ele aponta para a xícara vazia que tenho nas mãos.

— Vai me dizer que você não está?

— Eu não. - Ele me dá um sorriso implicante.

Sem aviso prévio fico de pé, decidindo que o nosso raro dia de folga pede um pouco de diversão. Ligo o rádio velho em que papai costumava escutar as partidas de jogos, e sintonizo na primeira estação pop que encontro. Então me viro para Theo e estendo os braços. Ele solta levanta uma sobrancelha e sorri, nervoso.

— Você está brincando, né?

— Como é que eu posso dançar sem um parceiro? - argumento.

— Pensei que Dona Eva já tinha lhe ensinado tudo sobre valsa.

— E ensinou! Mas não sobre salsa e ainda preciso melhorar alguns passos, sem contar que Francie me ensinou alguns novos. - Empurro a mesa para longe, empilho os livros e papéis e seguro a mão dele. - De pé, parceiro!

Com certa relutância ele obedece, mal-humorado, resmungando sobre o dever inacabado.

— Vou restabelecer o fluxo sanguíneo no seu cérebro. - prometo a ele.

Tentando não parecer constrangido e derrotado, Theo fica no meio da sala, as mãos nos bolsos. Aumentando o volume alguns decibéis, coloco uma das mãos na dele e pouso a outra no ombro. Temos praticamente a mesma altura, ambos altos. Começamos com alguns passos fáceis. Embora ele passe a maior parte do tempo olhando para os pés, até que dança direitinho. Tem um bom senso de ritmo e aprende novos passos mais depressa do que eu. Mostro a ele os movimentos que Francie me ensinou. Depois que ele pega o jeito, ninguém segura mais a gente! Ele pisa nos meus dedos algumas vezes, mas como estamos descalços só nos faz rir.

Depois de um tempo começo a improvisar. Theo resolve me fazer rodopiar e quase me atira contra a parede. Achando isso engraçadíssimo, ele tenta fazer de novo, e de novo. O sol brilhando no seu rosto, as partículas de poeira girando à sua volta na luz dourada da tarde. Relaxado e feliz, por um breve momento ele parece estar em paz no mundo.

Logo estamos sem fôlego, suando e rindo. Depois de um tempo, o estilo de música muda - uma canção com uma batida lenta, mas não importa, porque estou tonta demais dos giros e risos para continuar. Passo os braços pelo pescoço de Theo e descanso o corpo no dele. Noto o cabelo úmido grudando no seu pescoço e inspiro o cheiro de suor. Fico esperando que ele se afaste e volte a estudar química, agora que nosso momento doido acabou, mas para minha surpresa ele apenas envolve minha cintura e nossos corpos ficam balançando. Pressionada contra ele, posso sentir as batidas fortes do seu coração contra o meu, seu peito se expandindo e contraindo depressa contra o meu, o sussurro quente do seu hálito fazendo cócegas no meu pescoço, sua perna roçando a minha coxa. Pousando os braços nos seus ombros, eu me afasto um pouco para olhar seu rosto.

Mas ele não está mais sorrindo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

ALGUÉM MAIS PERCEBEU QUE TENHO POSTADO UM CAPÍTULO ATRÁS DO OUTRO?
XO