Entre Nós escrita por Aline Herondale


Capítulo 17
Guerra dos Corações


Notas iniciais do capítulo

Surpresinha de férias! Fiz uma pasta no pinterest para a fic. Espero que as fotos ajudem na construção da história (me inspiro em muitas coisas de lá).
https://br.pinterest.com/alinegoldway/entre-n%C3%B3s/
Sorry pelo capítulo enorme :/
Prometi que ia melhorar nas músicas e aqui vai: https://www.youtube.com/watch?v=Lc8X3FXwQCg



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“Consta nas constelações que o meu afeto é feito rosa que desabrocha.

Pertence a você meio cheio de defeitos que carregam traços dos nossos laços.”

 

Passo o final de semana trancado no quarto, soterrado por deveres e exercícios, e deixo que Ange assuma. No domingo, bem cedo, Ange vai para a igreja e não volta para o almoço. Desconfio que foi direto para a floricultura então sei que só parecerá em casa no final do dia. Todo final de semana ela fica na floricultura, e normalmente sempre levamos os pequenos, mas como papai está aqui duvido que isso acontecerá.

Espero as coisas desandarem um pouco mas papai consegue manter a ordem e desço para almoçar bem mais relaxado. Willa e Ammon discutiram, e Graydon perdeu a paciência, mas me limitei a lavar as louça e tentar dar de comer aos pequenos. Meu corpo ainda estava meio anestesiado pela sensação e pelos meus pensamentos. Tudo estava muito conturbado e...irreal.

Na segunda, tenho que fazer um esforço enorme para ficar sentado durante a aula, me sentindo agitado e inquieto. Minha cabeça se tornou estranhamente difusa - sou possuído por uma infinidade de sensações diferentes ao mesmo tempo. Há uma luz piscando no meu cérebro, como o farol de um trem no escuro. Um torno que lentamente se fecha ao redor da minha cabeça, esmagando as têmporas.

Quando Ange entrou no meu quarto ontem para me dar boa-noite, informando que tinha deixado meu jantar na geladeira, não consegui olhar nos seus olhos. Se quer levantei da cadeira. Hoje de manhã gritei com Ammon durante o café, arrastei Mouse pela porta afora, sendo acusado pelo próprio de causar uma lesão corporal grave (aonde ele viu isso?), sól faltei morder Willa e ignorei Ange… Estou perdendo o controle. Minha cabeça não para de me arrastar para aquela dança: Ange, seu rosto, seu toque, aquela sensação. Não paro de repetir para mim mesmo que essas coisas acontecem, tenho certeza de que não são tão incomuns assim. Afinal, sou um cara de dezessete anos - qualquer coisa pode excitar a gente; só porque aconteceu enquanto eu dançava com Ange não quer dizer nada. Mas as palavras não ajudam a me acalmar. Estou desesperado para fugir de mim mesmo porque a verdade é que a sensação ainda está lá - talvez sempre tenha estado - e agora que reconheço isso, estou com medo de que, por mais que queira, jamais vá conseguir voltar no tempo. E não ajuda em nada eu ver Ange todos os dias, vestindo suas roupas que, antes eram tão comuns e hoje são tão...chamativas. Desde quando suas saias são tão curtas? Elas não tem mais nada para vestir além de blusas de alcinha? De repente ela só prende o cabelo num coque, exibindo toda sua clavícula branca… Sua cicatriz que começa na bochecha e se estende até o pescoço nunca foi tão chamativa.

Não, isso é ridículo. Meu problema é que eu preciso de alguém em quem concentrar minha atenção, algum objeto de desejo, alguma menina que inspirar minhas fantasias…

Olho ao redor na sala de aula, mas não encontro ninguém. Meninas atraentes, sim. Uma menina de quem eu goste, não. Porque ela não pode ser só um rosto, um corpo; tem que haver mais do que isso, algum tipo de vínculo. E eu não posso nem quero me vincular a ninguém.

Mando uma mensagem para Ange pedindo que pegue Willa e Mouse na escola, e então mato a última aula, vou para casa, confiro se Graydon está por ali e então visto minhas roupas de corrida e me arrasto pela periferia do parque local, que está coberta de poças d’água. Corro o mais longe e forte que posso, até que o chão parece cintilar sob meus pés, e o mundo ao redor se expande e retrai, manchas vermelhas perfurando o ar à minha frente. Por fim meu corpo é tomado de dor, me obrigando a parar, e então eu volto para casa - ignorando Graydon -, tomo mais um banho gelado e estudo até os outros voltarem e a faina noturna começar.










— Quem é? - Estou uma pilha de nervos desde que tomei uma overdose de cafeína. Meu consumo diário de café bateu o recorde de Ange, que já é bem alto, mas é o único jeito de manter meu nível de energia durante o dia e as madrugadas de insônia. Ninguém responde, mas escuto a porta se abrir e fechar às minhas costas. Eu me viro da escrivaninha, a caneta pressionando as marcas nos dedos, o notebook que a escola me emprestou apoiado num mar de notas rabiscadas. Ela está de camisola novamente - a camisola branca que ficou pequena demais e mal chega às coxas. Como eu gostaria que ela não se virasse quando usa isso; como gostaria que seus cabelos cor de cobre não fossem tão longos e brilhantes, como gostaria que não tivesse esses olhos cor de folha seca, que não fosse entrando assim, sem ser convidada. Como gostaria que vê-la não me deixasse tão inquieto, revirando minhas entranhas, retesando cada músculo do meu corpo, fazendo meu pulso acelerar. É demais para eu aguentar. Na verdade é demais para qualquer ser humano do sexo masculino.

— Oi. - Ela diz. O som da sua voz me dilacera. Com essa única palavra ela consegue destilar ternura e preocupação. Com uma única palavra ela transmite tanto, sua voz  me  chamando de fora de um pesadelo. Tento engolir, a garganta seca, um gosto amargo preso na boca.

— Oi.

— Estou incomodando?

Quero dizer a ela que sim. Quero pedir que vá embora. Quero que sua presença, que seu cheiro intenso e marcante se evapore desse quarto. Mas como não consigo responder, ela caminha e senta da beirada da cama, a centímetros de mim, um pé descalço em baixo do corpo.

— Matemática? - Pergunta, dando uma olhada nas minhas folhas de papel.

— É. - Volto a olhar para o livro, a caneta levantada.

— Olha… - Ela faz menção de me tocar, e eu me retario. Como eu gostaria de controlar isso. É óbvio que Ange já percebeu que isso tem acontecido a um tempo, e apesar de não fazer ideia do motivo e nem de quando começou ela já percebeu. Gostaria que não tivesse porque ver sua expressão magoada é terrível e saber que ela está bolando ideias absurdas pelo motivo, piora tudo. Sua mão não alcança a minha quando me encolho, apenas pousando, solta e vazia, na superfície da escrivaninha. Fixo os olhos novamente na tela do notebook, o sangue ferindo as faces, o coração massacrando o peito. Ainda estou consciente dos seus cabelos caindo como uma cortina em volta do rosto, e não há nada entre nós além daquele silêncio torturado.

— Me conta. - Pede ela simplesmente, suas palavras perfurando a frágil membrana que me cerca.

Sinto a respiração acelerar. Ela não pode fazer isso comigo. Levanto a cabeça e olho pela janela, mas tudo que vejo é meu reflexo, o quarto pequeno, a doce inocência de Ange ao meu lado. Uma das poucas inocências que ainda lhe resta.

— Aconteceu alguma coisa, não aconteceu? - Sua voz continua a perfurar o silêncio como um sonho indesejado.

— Eu só estou cansado. - Minha voz arranha a garganta. Pareço um estrangeiro, mesmo aos meus ouvidos.

— Eu notei. - continua Ange, - E é por isso que não entendo por que continua se matando de tanto estudar.

— Eu tenho um  monte de deveres para fazer. E não sou um gênio que nem você, preciso me esforçar para conseguir aprender a matéria. - Respondo sem pensar. Ange demora uns segundos para responder.

— Eu também tenho que estudar para entender as matérias, não entendo simplesmente assistindo as aulas. - Diz e sinto sua voz dura, comedida numa raiva controlada. - O diferente foi que tive mais tempo quando eramos pequenos, mas isso já faz muito tempo, Theo. Pensei que tivéssemos combinado de nunca mais tocar nesse assunto.

O silêncio estrangula o ar. sinto que ela não vai deixar demover tão fácil.

— O que aconteceu, Theo? Foi alguma coisa na escola? - Ela pergunta e sua voz já se tornou doce novamente, toda a birra tendo escoado, tornando tudo perigoso mais uma vez. Talvez teria sido melhor se ela continuasse com raiva. - Você só está deprimido por causa da vida, é isso?

Mordo o lábio até reconhecer o gosto metálico de sangue. Ange percebe e as perguntas param, deixando em seu lugar um silêncio perplexo.

Escuto o barulho dela se levantando da cama e solto o ar aliviado, mas então mãos finas e quentes envolvem meu rosto e o viram bruscamente. Ange está a centímetros do meu rosto, com seus olhos enormes e lindos, me analisando, com as sobrancelhas unidas. Inspiro fundo e de repente sinto que todo o seu corpo está encostando na lateral do meu, seu quadril, sua barriga, suas coxas...

Involuntariamente tento me afastar o mais rápido possível mas ela me segura firme e puxa meu rosto para mais perto de si. Mechas caem em volta do seu rosto, alisando minhas bochechas. Céus, como é cheirosa.

— Theodor diz alguma coisa! Você está me assustando! Não aguento te ver assim, por favor, me conta o que está acontecendo. - Ela pede com a voz carregada de preocupação. -  Porque você está tão distante?

Seu eu não fizer nada agora mesmo tudo vai desmoronar e…

— Para! Sai daqui e vai dormir! Me deixa em paz! - As palavras disparam da boca feito balas, ricocheteando nas paredes antes que eu possa me dar conta do que digo. Ange transfigura, seu rosto se congelando numa máscara de espanto incrédulo, os olhos arregalando de incompreensão. Mal as palavras a atingem, ela já está indo embora, com o semblante sério e ferido, virando a cabeça para esconder as lágrimas que enchem seus olhos, a porta se fechando com um clique às suas costas.









— Ai meu Deus, ai meus Deus, ai meu Deus! Você não vai adivinhar o que aconteceu agora de manhã. - Os olhos de Francie só faltam saltar fagulhas de excitação, os cantos dos lábios pintados com batom cereja curvados num sorriso.

Solto a mochila no chão e despenco na cadeira ao seu lado, os gritos de Mouse ainda ecoando na minha cabeça: ele teve que ser arrastado para a escola depois de armar um bate-boca violento com Ammon por causa de um Transformer de plástico no fundo de uma caixa de sucrilhos. Fecho os olhos.

— Nico DiMarco estava batendo papo com o Ned e…

Abro os olhos para interrompê-la:

— Pensei que você fosse sair com o Murphy Harker.

— Ange, eu posso ter resolvido dar uma chance ao Murphy enquanto espero que o seu irmão caia em si, mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Nico estava batendo papo com o Ned hoje de manhã, e adivinha só o que ele disse… adivinha! - Sua voz transborda de excitação e o professor Lassonde para de rabiscar o quadro por um momento para nos brindar com um suspiro sofrido.

— Meninas, será que vocês poderiam pelo menos fingir que estão prestando atenção? Francie?

Francie o brinda com um dos seus sorrisos de mil e um dentes, e então volta a se virar na cadeira para mim.

— Adivinha!

— Não faço ideia. Que ele ganhou convites para alguma festa exclusiva?

— Nããão! Mas também seria uma ótima notícia. - Francie faz um sapateado eufórico no chão com sapatilhas proibidas pelo regulamento da escola. - Eu ouvi Nico dizer ao Ned Vandervot que hoje, depois da aula, vai ter convidar para sair! - E abre tanto a boca que chega a dar para ver as amígdalas.

Fico olhando para ela, apática.

— E então? - Francie me sacode brutalmente pelo braço. - Não é o máximo?

— Estou lisonjeada.

Francie atira a cabeça para trás num gesto teatral, gemendo. Suas pulseiras coloridas brilhando e contrastando com sua pele negra.

— Aaargn. Que é que há com você ultimamente? No começo do ano você disse que ele era o único cara da escola que você pensaria em beijar,

Solto um suspiro pesado.

— Pois é, eu disse. Tudo bem, ele é um gato. Mas ele sabe disso. Posso me sentir atraída por ele como todo mundo, mas nunca disse que queria sair com o cara.

Até porque provavelmente eu nem conseguiria. E é quase uma certeza de que eu teria um ataque de pânico nos primeiros trinta minutos do encontro, penso.

Francie balança a cabeça, incrédula.

— Sabe quantas meninas dariam tudo para conseguir um encontro com ele? Acho que até eu colocaria Theodor em banho-maria por uma chance de beijar esse latino.

— Ai, ai, Francie… Então sai você com ele. - Respondo perdendo um pouco a paciência.

— Mas eu até já fui lá para descobrir se ele estava falando sério! E ele perguntou se eu achava que você estaria interessada. - Ela continua, alheia a mim. - Eu falei que estava, é claro.

— Francie! - Digo um pouco alto demais, sem tempo de me conter. - Diz a ele para esquecer. Que não estou interessada. Fala com ele no recreio, hoje!  

— Porquê?

Abro a boca e a verdade ameaça sair.

— Porque eu não estou interessada. - Respondo simplesmente.

— Angeline, você se dá conta do que está fazendo? O cara pode não te dar uma segunda chance. - Francie apoia o rosto numa das mãos e me fita, suspirando decepcionada.

— Eu não preciso nem de nenhuma.

Eu me arrasto pelo resto do dia. Francie não me dirige mais a palavra porque a acusei de ser uma intrometida quando ela se recusou a avoltar ao pátio e dizer a Nico que eu não estava interessada. Mas, sinceramente, não me importo se ela nunca mais falar comigo. Um bloco gelado de desespero pesa sobre meu peito, tornando difícil respirar. Meus olhos doem de lágrimas pressas. No meio da tarde até Francie está preocupada, rompendo o voto de silêncio e se oferecendo para me acompanhar à enfermaria. Mas o que a enfermaria da escola poderia me oferecer? Uma pílula para fazer a solidão desaparecer? Um comprimido para fazer Theo falar comigo novamente? Ou talvez uma pílula para fazer tudo voltar, rebobinando os dias para que eu possa me afastar dele quando terminamos de dançar a salsa em vez de continuar em seus braços, oscilando de leve? Será que ele está zangado porque o coloquei numa situação embaraçosa? O momento em que minha coxa roçou a parte interna da sua foi só um acidente. Nunca tive a intensão de fazer com que nada daquilo acontecesse. não fazia ideia de que dançar uma música lenta pudesse excitar um cara. Mas quando senti algo pressionando meu quadril, quando de repente me dei conta do que era, foi como seu eu perdesse a cabeça. Não queria parar de dançar. Não queria me afastar.

Não aguento pensar que posso ter perdido nossa intimidade, nossa amizade, nosso vínculo de confiança. Ele sempre foi tão mais do que apenas um irmão. Ele é minha alma gêmea, meu oxigênio, a razão pela qual espero com ansiedade pelo momento de acordar todos os dia. Sempre soube que o amava mais do que a qualquer pessoa no mundo - e não apenas de jeito fraternal, como me sinto em relação a Mouse ou até mesmo Ammon. Mesmo assim, nunca me passou pela cabeça que pudesse haver um passo a mais…

Mas sei que é ridículo, absurdo demais até pensar nisso. Nós não somos assim. Somos apenas um irmão e uma irmã gêmeos que por acaso também são os melhores amigos um do outro. É assim que sempre foi entre nós dois. Não posso perder isso. Eu já perdi coisas demais, gente demais. Não posso perder isso, justo isso, ou não vou sobreviver.

As meninas não entendem o meu estado e com o tempo param de perguntar. Maisie oferece carona mas agradeço - não é caminho para ela.

No fim do dia Francie está me infernizando de novo por causa de Nico DiMarco. Ela parece achar que estou deprimida e que arranjar um namorado vai me ajudar a sair do fundo do poço. Talvez esteja certa. Talvez eu precise de uma distração. E que melhor maneira poderia haver de mostrar a Theo que o que aconteceu outro dia foi apenas um acidente, apenas um momento de diversão? Se ele me ver conversando com outras pessoas - principalmente as do sexo masculino - vai ficar satisfeito pela minha melhora. Nico é uma gracinha. Seu cabelo e seus olhos são escuros e sua pele tem o tom perfeito de um bronzeado. Ele tem a mesma altura que a minha, o que torna Theo mais alto do que ele. Embora Francie esteja totalmente por fora quando diz que os dois estão no mesmo nível. Não estão mesmo. Theo tem uma perseverança feroz, uma sutileza psicológica incrível, é a pessoa mais generosa e carinhosa que conheço. Theo tem alma, da qual eu compartilho uma parte. Nico pode ser da mesma idade, mas é apenas um menino em comparação. Mas acho que a ideia de sair com ele não é totalmente repulsiva.

Depois da última campainha, quando estamos cruzando o pátio em direção aos portões ele se aproxima de nós. Que estava esperando por nós, é o óbvio. Francie dá um gritinho abafado e uma cotovelada tão forte nas minhas costelas que por um momento chego a perder o fôlego, e então muda de rumo. Nico está vindo na minha direção. Eu paro no lugar, a respiração começando a ficar ritmada, o peito subindo e descendo rápido demais. Sinto suor pingar das minhas mãos e de repente me sinto presa com todas aquelas pessoas à minha volta. Olho para os lados e encontro um corredor vazio. Caminho para lá sem olhar para trás e me apoio na enorme janela aberta, inspirando o vento fresco.

— Angeline? - Uma voz desconhecida chama pelo meu nome. Não preciso virar para saber quem é. Abro os olhos e lentamente me viro de frente para Nico.

— Ele tirou a gravata, embora isso seja o bastante para ficar de castigo depois da aula, por ter sido dentro dos portões da escola.

— Oi! - Seu sorriso aumenta. Ele fala muito bem, é muito seguro de si: vem fazendo isso há anos. - Como é que vai? Não tenho uma oportunidade de falar com você há séculos! - Ele dá um passo na minha direção e instintivamente eu dou outro para trás, me chocando na parede, e levantando uma das mãos de modo discreto.

Ele percebe e se afasta, sorrindo mas claramente confuso. Quanto tempo mais até ele perceber que sou perturbada? Nico levanta as mãos em rendição e ri. Estranhamente vê-lo fazer isso me deixa mais tranquila e consigo relaxar.

— Você está com pressa - pergunta ele, ignorando o que acontece - ou tem tempo para tomar uma Coca no Smileys?

Está agindo como um velho amigo que não vê há anos, apesar do fato de não termos trocado mais do que algumas palavras hoje. E, realmente, ele não perde tempo.

— Tenho que pegar meus irmãos menores na escola - respondo, sincera.

— Olha, eu vou ser direto então. Tudo bem? - Ele põe a mochila entre os pês, para indicar que a conversa agora é para valer, e afasta os cachos dos olhos. - Você é uma menina muito legal e sempre tive uma simpatia especial por você. Não achei que fosse recíproca, por isso não disse nada até agora. Então...será que podemos ser mais do que isso? O que eu estou querendo dizer é...de repente a gente poderia se conhecer um pouco melhor, entende?

Ele começa a tagarelar, nervoso.

Eu me sentiria muito honrado se você me permitisse te levar para jantar uma hora dessas. Será que existe a mais remota possibilidade de eu te convencer a fazer isso?

É, o cara tem lábia. Finjo refletir por um momento. Seu sorriso não vacila.Estou impressionada.

— A-acho que sim…

O sorriso fica mais largo.

— Isso é ótimo. Maravilha. Na sexta estaria bem para você?

— Sim, perfeito.

— Legal. Que tipo de comida você prefere? Japonesa, italiana, mexicana, árabe?

Não consigo deixar de rir.

— Uma pizza estaria de bom tamanho.

Seus olhos se iluminam.

— Eu conheço um restaurante ótimo, que serve a melhor comida italiana do bairro. Passo de carro para te pegar às oito, que tal?

Estou prestes a argumentar que seria mais fácil se nos encontrássemos lá, mas então me ocorre que sair sozinha à noite ainda mais esse horário me colocaria numa situação perigosa. Que garantia eu teria de não teria um surto no meio do metrô?

— Tudo bem. Sexta, às noite da noite. - Sorrio.

Ele inclina a cabeça, mexendo na mochila e tira uma caneta e um pedaço de papel.

— Anota o seu endereço aqui!

Anoto tudo, assim como meu telefone celular e fixo e entrego a ele. Ao fazer isso, ele segura meus dedos por um momento e olha para mim. Inspiro fundo com o toque, mas como é muito sutil consigo manter os batimentos cardíacos estáveis. Como que esperando por uma autorização ele envolve toda a minha mão com a sua, observando minha reação. Mantenho a calma e então Nico abre mais um dos seus sorrisos de alta voltagem.

— Mal posso esperar.

Consigo dar um sorriso sincero dessa vez e digo:

— Eu também.










À noite, enquanto sento à mesa da cozinha e ajudo Mouse e Willa com o dever de casa, minha memória não para de voltar à conversa, ao clima de paquera, ao jeito como ele sorria para mim. Não é muito - não chega nem perto de ser o suficiente para preencher o vazio abissal dentro de mim -, mas já é alguma coisa. É sempre bom ser apreciada. É sempre bom ser desejada. Mesmo que seja pelo cara errado.

Sem querer, dei toda as respostas para Mouse e Willa. Cheguei dez minutos atrasada para pegá-los, e quando Mouse exigiu saber o motivo, caí na asneira de contar que tinha ficado conversando com um rapaz na escola. Achei que a coisa ia morrer aí, mas tinha esquecido que Mouse já está com quase nove anos. Ange arranjou um namorado, um namorado, um namoradooo!, ele veio cantarolando pela rua afora até chegarmos em casa.

Willa pareceu preocupada.

— Isso quer dizer que você vai embora?

— Não, é claro que não. Porque eu iria? - Dei uma risada, tentando tranquilizá-la. - Só quer dizer que eu vou ter um amigo, e que vou me encontrar com ele de vez em quando.

— Como papai?

— Não! Nada a ver com o os encontros do papai. Só vou sair com ele uma ou duas vezes, e será quando Theo estiver em casa para tomar conta de vocês.

— Ange arranjou um namorado! - anuncia Mouse quando Ammon bate a porta, dando início a uma incursão relâmpago pela cozinha, à procura de biscoitos.

— Ótimo. Espero que vocês tenham um monte de filhos e sejam muito felizes.

Na hora do jantar, Mouse já está com outras coisas na cabeça - a pelada que os amigos jogam a altos e provocantes brados bem na frente da casa enquanto ele está preso na cozinha, sendo obrigado por Theo a comer vagem e recitar a tabuada. Willa está estudando “materiais” na escola e quer saber do que tudo é feito: os pratos, os talheres, a jarra d’água. Ammon, entediado, está num desses estados de espírito mais perigosos, provocando todo mundo para ver o circo pegar fogo, enquanto assiste tranquilamente de fora, rindo do caos que criou ao redor.

— Sete vezes quatro? - Theo pega o garfo de Mouse e espeta duas vagens antes de devolvê-lo. Mouse dá uma olhada e faz uma careta.

— Vamos lá. Sete vezes quatro?

— Porque você colocou duas vagens no meu garfo? Assim eu vou engasgar! detesto vagem! - exclama Mouse, zangado.

— Do que a vagem é feita? - pergunta Willa.

— Cocô de cobra. - informa Ammon.

Willa solta o garfo e encara o prato, hororrizada.

— Sete vezes um, sete. - Continua Theo, oobstinado. - Sete vezes dois…?

— Eu também detesto vagem! - Protesta Willa.

Pela primeira vez na vida, não sinto vontade de ajudar.Theo me dirigiu exatamente cinco palavras desde que chegou há duas horas: Eles já fizeram o dever?. E isso tem se repetido já faz dias e dias.

— Mouse, você tem que saber quanto é sete vezes dois. E só somar!

— Não posso comer tudo isso, você botou demais no meu prato!

— Ei, Mou - Ammon inclina a cabeça -, ouviu só esses gritos? Parece que o Jamie marcou mais um gol.

— E o pior é que eles estão jogando com a minha bola!

— Ammon, quer fazer o favro de deixar o Mouse em paz? - cobra Theo.

— Já acabei. - Willa empurra o prato para o mais longe possível, derrubando o copor d’água de Ammon.

— Ah, Willa, olha só o que você fez! - grita Ammon.

— Por que ela pode deixar a vagem no prato? - Mouse começa a berrar.

— Willa, come essa vagem! Mouse, se você não souber o quanto é sete vezes quatro, vai se dar mal na prova de amanhã. - Theo está começando a perder a calma. Sinto uma espécie de prazer cruel.

— Ange, eu tenho que comer vagem? - Willa recorre a mim em tom de lamúria.

— Pergunta a Theo, quem está servindo é ele.

— E isso é o que eu chamo de usar eufemismo demais. - comenta Ammon, rindo consigo mesmo.

— O patrão. - Sugiro.

— Ah, isso sim é ideal!

Theo dá um olhar que pergunta: Que mal eu te fiz? Mais uma vez, experimento um breve senso de satisfação (mesmo tendo consciência de que nada está certo).

— Willa, dá um jeito nessa merda, você molhou a mesa toda! - Protesta Ammon.

— Não posso!

— Para de bancar o bebezinho e pega a esponja!

— Theo, o Ammon falou um palavrão!

— Não vou mais comer. - Urra Mouse. - E também não vou mais estudar a tabuada.

— Quer levar ganhar um zero na prova de matemática? - Rebate Theo no mesmo tom.

— Não to nem aí! Não to nem aí!

— Theo, Ammon falou um palavrão! - uiva Willa, agora furiosa.

— Calem a boca! Que é que há com vocês hoje?! - Theo explode, ficando de pé bruscamente e empurrando a cadeira para trás.

Mouse, aproveitando a distração, salta da cadeira, pega as luvas de goleiro e sai correndo de casa. Willa abre um berreiro escandaloso, desde da cadeira e vai para o quarto batendo os pés. Ammon despeja trés pratos de vagens intactas na panela, dizendo:

— Assim vocês podem servir a mesma bosta amanhã.

Com um gemido, Theo segura a cabeça entre as mãos.

De repente, eu me sinto muito mal. Não sei o que estava tentando prova. Que Theo precisa de mim, talvez? Ou estava apenas me vingando do gelo que ele tem me dado? Vingar… Que sentimento horrível. Não posso sentir isso e nem quero. Vingança um dos muitos sentimentos que a igreja nos ensina a não cultivar. Seja como for, estou me sentindo péssima. Ele teria todo o direito de estar zangado comigo, mas em vez disso é tão generoso que sinto uma tristeza imensa.

Mordendo o lábio, Theo levanta a cadeira caída no chão e começa a recolher os pratos da mesa. Levantando para ajudá-lo e relembro Ammon que é a sua vez de lavar a louça e, sem pensar, toco a mão de Theo para chamar sua atenção - mas dessa vez, para minha surpresa, ele não se afasta.

— Pode deixar que cuidamo disso. - Digo, com delicadeza.

— Obrigado. - Ele não olha para mim e se vira para pegar a chaleira.

Ammon joga sem a menor cerimônia uma pilha de pratos na pia com estrépito. Tento lhe dar um de meus olhares de advertência, mas ele evita meus olhos, remexendo a louça com barulho na pia. Theo encosta o ombro na parede, esperando que a água ferva na chaleira, olhando pela janela escura. Decido ajudar Ammon com a louça.

— Quer dizer que você finalmente conseguiu arranjar um namorado? - pergunta Ammon, ferino, quando vou para o seu lado na pia. - Quem é o felizardo?

Sinto um aperto nas entranha. Por instinto meu olhar voa para Theo, que tira a mão nuca, a cabeça se virando bruscamente.

— Ele não é meu namorado - corrijo Ammon depressa. - É só...só um cara aí da escola que me convidou para...hum… - Fico em silêncio. Sei que Theo está me encarando.

— Para...hum...transar? - sugere Ammon.

— Não seja infantil. Ele me convidou para jantar fora.

— Uau...sem uma Coca no Smileys antes? Direto ao assunto, aos comes e bebes? - Ammon está adorando me ver morta de vergonha. - Que cara da escola tem dinheiro para fazer um convite desses a uma menina? Não me diga que é um dos seus professores!

— Não seja bobo. É um cara da última série chamado Nico. Você nem conhece.

— Nico DiMarco? - Mas é claro que Theo conhecer. Droga.

— É. - Me obrigo a enfrentar seu olhar atônico por cima da cabeça de Ammon. - Ele...ele me convidou para sair nessa sexta. Está tudo bem?

— Epa, você devia ter pedido permissão primeiro! - provoca Ammon. - Vai ter que chegar em casa dentro do horário, lembra? Taí, vou te dar a minha última camisinha…

— Já chega Ammon! - Falo num tom grosso e firme, batendo com um prato na bancada. - Vai buscar o Mouse na rua, e depois faz o dever de casa! - Agora sou eu quem está querendo perder a cabeça.

— Tudo bem. Me desculpe por respirar. - Ammon atira a escova de pratos na pia fazendo água espirrar, e sai a passos furiosos da cozinha.

Theo não saiu da sua posição à janela, os olhos profundamente perturbados.

— Nico? Você o conhece? Quer dizer, o cara é super...hum...sabe...como…

Mantenho a cabeça baixa, esfregando os pratos com força.

— Sei. Mas é só um jantar. Vamos ver o que acontece.

Theo dá um passo na minha direção, mas então muda de ideia e recua.

— Você...você está...tranquila? Digo. Fica bem perto dele?

— Sim. Ele me deixa calma. Não é como os outros garotos que já chegam invadindo o seu espaço.

— E você gosta...dele?

Sinto o rosto ficar vermelho e de repente a raiva volta à tona. Porque Theo sentiu tanta vontade de conversar comigo e começou com esse interrogatório, quando só concordei com o encontro por nossa causa - por causa dele?

— Para ser sincera, gosto sim. - Paro de esfregar os pratos e obrigo maus olhos a enfrentarem os seus. - Ele é um cara muito bacana e tranquilo. Mal posso esperar para sair com ele.


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Notas finais do capítulo

FALA SÉRIO, ESSA MÚSICA FOI ESCRITA E INSPIRADA PARA ESSES DOIS♥ Alguém já conhecia? E minha recomendação?