Oceano escrita por Mateu Jordan


Capítulo 22
O mundo é só meu




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A única coisa que me lembro do dia anterior é que eu havia bebido muito.

Passei o sábado todo meio acordada, meio dormindo. Não senti grandes emoções, e as poucas que senti, meu cérebro protestou e me enviou outros pensamentos. Eu agradecia silenciosamente sempre. Meus pais também não me incomodaram mais, e eu tive paz. Paz.

No domingo acordei logo cedo. O sol ainda estava nascendo, e os poucos pássaros corajosos cantavam sobre os galhos da enorme árvore que fica do lado de fora da minha casa, em frente a minha janela. É bom ter uma árvore grande em frente a seu quarto. O sol tem que percorrer vários caminhos até conseguir fazer seu quarto ficar claro. Gosto disso.

Mas mesmo com a árvore ali, vejo os raios de sol já aparecendo na cortina bege da janela. Sei que hoje será um dia extremamente ensolarado.

Levanto, faço minhas necessidades higiénicas e desço para tomar café.

Sinto o cheiro de café desde a escada. Meu estômago está mais feroz que uma maré forte em um mar gelado. Engulo em seco e tiro esses pensamentos da cabeça.

– Bom dia, Leo - Minha mãe não se vira para me ver, mas por algum motivo ela me reconhece. É estranho dividir a casa com alguém e não ver a pessoa por mais de um dia inteiro. É intrigante.

– Oi - Respondo. Minha boca está seca e logo me sirvo com um pouco de café.

Meu mar está agitado hoje.

Sinto que a barreira entre eu e minha mãe desde a viagem não vai cair tão cedo. Pesco algo para comer, mesmo já estando querendo sair dali.

– Dormiu bastante ontem. - Ela fala. Soa mais como uma dúvida de porque fiz isso, do que uma afirmação. Apenas digo que estava cansada e começo a comer.

Depois que percebo que ela não irá continuar a conversa, eu falo:

– Você sabe de algo. Eu sei.

– O que está falando, Leo? - Percebo que não soa como alguém que parece perdido em uma conversa. Eu conheço-a.

Paro de comer e tomo um longo gole do café. Preciso molhar minha boca, ela está constantemente seca pelo nervosismo.

– Sobre tudo, mãe. Eu sei que você sabe. Sei que Logan nunca desmaiou, e sei porque papai estava mal e daquele jeito que parecia estar em transe.

– Eu não sei do que está falando..

– Você não quer saber, essa é a verdade... olha... eu simplesmente me arrependo de ter vindo embora de lá tão desesperadamente por sua culpa. Você nunca me contou nada... nada sobre mim...

– Seu pai... - Ela começa, mas ainda não está olhando para mim. Acho que não está fazendo isso por medo de entregar o nervosismo que também deve estar sentindo. Somos parecidas, pelo menos.

– Te ameaçou? - Completo a frase para ela.

– Como você sabe? — Ela agora parece realmente espantada. Toquei num ponto mais sensível do que eu já havia tocado. - Como...

– Você devia perguntar isso ao meu verdadeiro pai.

– Não fale bobagens, Leona - Ela diz - Hugo é seu verdadeiro pai.

– Mentira! - Berro. Berro mesmo. - Eu não sou uma humana, e você sabia disso e simplesmente... me teve.

Se tivéssemos vizinhos próximos, talvez eles pensassem que vivem ao lado de loucos. E quem disse que não somos?

Minha mãe quebra um prato. Ela apenas joga-o no chão e me olha tristemente. Não sei o que ela está sentindo nesse momento, não sei se seu coração está sorrindo ou chorando. E tenho medo por isso.

– Não quero mais nenhuma palavra sobre isso aqui! - Ela fala agitadamente, como se precisasse desabafar isso de uma vez por todas.

– Não quer porque sabe o que eu sou! - Digo. Eu também preciso desabafar. - Sabe que eu não estava lendo nenhum livro, sabe que eu não conheci nenhuma amiga de Los Angeles, você sabe de alguma coisa, eu sei...

Eu queria tirar a resposta da boca dela. Não tinha outra forma.

Meus pais haviam mudado comigo por caso do meu jeito. Meu jeito mudou, não fico mais presa em pensamentos, agora sou livre.

– Não temos que falar disso... - Ela fala, colocando a mão na testa e fazendo uma careta - Seu pai vai ficar mais bravo ainda...

– Temos que falar disso sim - Eu afirmo - É a minha vida. Minha família. Meu futuro.

– EU ESTOU CANSADA DISSO! - Ela agora está gritando. Meus ouvidos protestam, mas meu peito está um túmulo. Não sei se ele esta aqui comigo ainda, ou se já se foi como a água do mar. Meus olhos se enchem de lágrimas quando os da minha mãe fazem a mesma coisa. Estou com falta de ar.

– Seu pai me atormenta desde quando você nasceu... - Ela diz por fim. Fim. Eu sei que ela não irá falar mais nada, e eu não forço a barra.

Levanto da mesa calmamente, indo em direção ao meu quarto para ler. Mas paro em frente a porta, quase que involuntariamente e penso em quais são minhas opções. Eu posso sair e ficar nesse sol quente, ou posso ver o sol refletido no reservatório cristalino perto daqui. A segunda opção me parece mais apropriada para o meu tipo de pessoa. Sei que vou preocupar mais minha mãe, mesmo ela tendo me dado liberdade ontem de não ter perguntado onde eu fora, mas eu resolvi não me privar de mais nada.

*****

Me surpreendo quando vejo o chão do reservatório. Não tem mais latinhas e garrafas espalhadas pela areia. E está tão deserto quanto um buraco sem fim. Caminho até a pequena ponte de madeira e sento-me lá.

Ainda consigo ver um ou outra latinha e garrafa espalhadas pelo local, mas tirando isso, está bem limpo. Ouço os carros passando por detrás do reservatório mas não consigo vê-los. Meu coração pesa quando coloco os pés na água. Posso sentir Oceano, mas não consigo vê-lo.

Como achei, o sol está refletindo na água, e por um momento paro para olha-lo melhor. Raios vazam de sua borda e vem em direção aos meus olhos. É melhor olha-lo refletido. Esse é o truque. Ele é tão amarelo e forte como a gasolina, e eu não posso ignorar essa semelhança entre eles.

Não consigo mais chorar, depois que sai de casa meus olhos secaram no sol forte que imaginei que faria, e agora meus cabelos pretos e quase encaracolados estão quentes. Toco-os e retiro a mão rapidamente. Meus olhos estão meio fechados e abertos também. Acho que não foi boa ideia vir aqui.

Por um momento meus dedos batem nos pingentes que meus pais e Riba me deram. Simultaneamente penso em tudo que vivi. Fiz 17 anos, e por mais estranho que pareça, acho que foi a coisa que menos aproveitei na semana passada. E imaginar que antes de conhecer Oceano, essa era a minha prioridade de diversão.

Sorrio sem querer. Sem querer porque pensei em Riba.

Lembro-me bem do dia em que pensei que ele fosse algum tipo de psicopata. É bem estranho isso agora. Que tipo de pessoa usaria asas em um bosque? Mas como nós somos ignorantes demais para acreditar naquilo que os olhos nos mostram, colocamos coisas na cabeça tão estranhas que no futuro faz com que pareçamos idiotas. E é hilário.

Meu coração aperta quando lembro de como Riba é. Ainda percebo que falta um pouco de ar dentro de mim, e isso me dói mais ainda. Quero de alguma forma abraça-lo e senti-lo. Eu preciso disso.

Meus pés se mexem na água e eu tenho uma vontade louca agora. Quero tirar Riba da cabeça e resolvo então mergulhar no reservatório. Antes de fazer isso, certifico-me de que não há ninguém por perto. Tirando algumas galinhas no quintal do vizinho, ninguém mais está me observando, mesmo que agora eu sinta uma vontade enorme de ter os olhares dos sereianos para mim. Respiro e mergulho.

*****

Uma leve música chega aos meus ouvidos assim que meu corpo é engolido pela água doce do reservatório. Em minha mente ele era bem menor e bem mais sujo, mas percebo que mesmo assim não consigo ver o fundo do local. O cheiro é de flores aquáticas, e algumas espécies de peixes pequenos passam por mim. Mas esses são mais lentos, não estão acostumados às correntezas como na água salgada.

Sorrio e vou afundando mais meu corpo, até perceber que minhas pernas estão ainda no mesmo lugar de sempre, mas que agora não vejo-as mais. Vejo agora uma linda cauda prateado-fosco, mas tão linda que fazem meus olhos brilharem.

Meu cabelo balança na água enquanto nado, e que agora já consigo enxergar algumas algas no fundo do reservatório. Mais para o fundo, a cor da água passa de um azul-bebê para um verde-água, e está ficando com um cheiro mais de... casa.

A onda no meu pescoço bate nas asas de Riba e eu gosto. Sei que elas sempre vão me acompanhar, assim como cada gota de água acompanha a outra, e assim vou criar minha própria imensidão por dentro, como o oceano.

Nado mais e mais, e isso vai me relaxando. De pouco em pouco eu perco os pensamentos que são levados juntos com os peixes, e meu coração de ferro volta a vida à tona. Sorrio e mesmo assim nem uma gota entra na minha boca. Gosto de conseguir ficar com a boca aberta e os olhos abertos aqui, e mesmo assim não acontecer nada. Dá uma sensação de liberdade e de que o mundo é só meu.

Consigo ouvir a música até agora, e ela é bem melodiosa, como se já tivessem a cantado muitas e muitas vezes. Amo esse som, mesmo escutando pouco a voz e a letra. E mesmo não escutando a voz muito bem, percebo que minha audição está bem melhor desde o dia em que fui proclamada por Poseidon, e isso me ajuda muito debaixo d'água.

Penso um pouco.

De onde está vindo esse som e por quê não ouvia nenhuma música em Oceano?

Meu coração bate velozmente, mas não estou com medo, estou curiosa. Nado em direção a onde acho que está vindo o som e meus olhos não piscam mais.

Quando estou chegando perto do final do outro lado do reservatório, vejo uma forma de caverna subaquática, onde imagino eu, mora os polvos e mais alguns tipos de espécies de animais, mas o que mais me incomoda é que dentro dessa caverna, um brilho forte está saindo da entrada dela, e eu continuo nadando na direção da música, que também parece vir de lá. Tem algo lá, isso eu sei.

Mas antes de evoluir nessa descoberta, meu coração cai. Cai como o que eu acabei de ouvir. Alguma coisa pulou lá da superfície para aqui dentro. E eu não faço ideia do que seja.


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