Oceano escrita por Mateu Jordan


Capítulo 12
Corpos oscilando




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Depois do meu sonho, o sono se esvai como ar saindo de uma bexiga. Quero levantar, mas ainda lá fora está tudo escuro. Logan dorme feito um saco de areia, não ronca, nem se mexe, só dorme, como se ter sonhos fosse algo inalcançável.

Viro-me e observo a escuridão. Eu estava certa sobre quando abrisse os olhos, veria sombras dançando nas paredes do meu quarto. Eu vejo-as agora. Vejo-as dançando em uma sincronia que só um cérebro atormentado poderia imaginar. Estou perdida nas drogas que é a indecisão.

O dia vai amanhecendo bem devagar, como se a noite gostasse de me ver ruindo aos poucos. Não quero olhar para ninguém daqui. Sinto raiva e medo do meu pai, mas depois de todos esses anos, eu sei que ele nunca foi um homem mal comigo. O mesmo que me afeta agora, afetou ele no passado. A indecisão é como veneno nas veias.

Quando vejo os primeiros raios de sol, pulo da cama e vou para o banheiro me lavar. Tomo o melhor banho da minha vida e lavo bem o rosto tentando cobrir as olheiras e o inchaço pelo choro. Não chorei muito, a indecisão não deixou, mas as vezes algumas lágrimas diferentes das outras caiam sobre o céu escuro que era meu rosto.

– Leona? – Ouço a voz da minha mãe me chamar. Como queria abraça-la, mas não iria fazer isso, não quero que ela desconfie de nada. – Está ai?

– Sim, mãe – Tento fazer uma voz rouca como se tivesse acabado de acordar. – Já vou sair.

Ensaio algumas das palavras que precisarei dizer hoje: “Obrigada” “Obrigada por tudo” “Amo você também”. Estou nervosa para não demonstrar medo quando dize-las, mas quero estar agradecida quando vierem me dar parabéns.

Finalmente tenho 17 anos, e tudo está mudado.

Antes, queria fazer 17 anos para comemorar com meus amigos da minha cidade com festa e bebida, mas diferente de antes, agora eu só quero voltar para a minha casa. Para Oceano.

Sei que ainda é difícil aceitar a ideia de que para eu ficar no Oceano, tenho que fingir minha própria morte a meus pais, mas é mais doloroso saber que se eu for embora com minha família, eu não poderei mais ver sereianos novamente. E tem Riba também.

Desde ontem, passei algum tempo pensando em como ele é misterioso comigo. Sei que é para me dar mais vontade de ficar com ele, do que para não me explicar nada. E eu gosto disso. Gosto do jeito como ele sabe mexer comigo. Eu gosto dele.

Saio do banheiro subitamente, e em frente a ele, Logan e meus pais me esperam com um bolo e três chapeuzinhos de aniversário em forma de cone. Não consigo me concentrar para ver o desenho dos chapéus, mas isso é o que menos importa. Sorrio tanto que meus dentes parecem quererem saltar para fora.

O bolo parece delicioso, e eu quero experimenta-lo logo. Abraço-o cada um e digo as mesmas coisas ensaiadas que treinei no banheiro. Nenhum soa falta, até porque nenhuma daquelas palavras foram falsas. Eu realmente estou agradecida por tudo. Por tudo que fizeram por mim.

Minha mãe vai até a cozinha e nós a seguimos. Meus pais parecem não estar distantes um do outro nunca. Nunca vi também uma briga feia entre eles, só algumas discussões normais de casais apaixonados e com problemas do dia-a-dia.

Mas eu sei que a partir de hoje, eu irei analisa-los como nunca havia feito antes.

Lá, então, ela corta o bolo e coloca em pratinhos de porcelanato e nos empanturramos de bolo e refrigerante, antes mesmo das 10 horas da manhã. Enquanto comemos, minha mãe me pergunta o que quero de presente de aniversário.

Penso nisso só agora. Minha cabeça deu tantas voltas que eu não sei mais para que lado eu estava indo.

Refaço os passos que fiz em todas as calçadas e em todas as lojas que eu passei na frente, pois quero escolher algo que faça-me lembrar de como fui feliz no instante em que me deixei levar pela água depois que Riba me jogou no mar. Nunca fui mais feliz e nunca senti esse bem-estar que eu senti lá dentro. Eu quero algo que me faça sentir com os dedos as ondas da maré, e saborear o pensamento que foi estar perdendo o trauma e ganhando uma casa.

– Eu sei o que quero de presente, mamãe – Digo.

*****

Depois de uma hora, estamos dentro da Pierre D’lasque, uma joelharia bem fina perto de Venice Beach, na praia onde estávamos indo com mais frequência nesses 5 primeiros dias de férias.

Lá dentro um mar de joias nos cercam como uma casa de diamantes. Joias de todas as cores e formatos refletem na luz artificial do local. O ar-condicionado apita e depois silencia, tudo está tão quieto como as profundezas do oceano. E eu gosto de não ouvir os barulhos dos carros.

Uma atendente com um batom vermelho forte nos atende, e nos mostra os modelos que eu quero.

Quando disse para minha mãe na mesa de casa que queria algo que me lembrasse o mar, ela estranhou completamente, mas se não fosse assim, eu não poderia comprar algo que me lembrasse do Oceano. Então, dei a desculpa de que queria começar com uma coisa diferente no meu tratamento do trauma. Queria sentir as ondas nos dedos para me acostumar com essa ideia, mas na verdade queria sentir-se em casa. Com Riba.

Saímos da loja com uma corrente nova no meu pescoço. No pingente a única onda desenhada não tinha cor, mas na minha cabeça ela era de todas as cores possíveis e cristalinas. Eu gosto do contorno do desenho. Meus dedos viajam por mares e marés. E eu sinto a presença disso.

Meus pais teimam em me fazer ficar depois que acabamos de almoçar e estávamos indo em direção à praia, mas eu disse que quero muito terminar Orgulho e Preconceito logo, assim ficarei o resto das férias livres dele. Minha mãe ficou chateada, mas meu pai – ou quase pai – me deixa ir mesmo assim. Sei que minha mãe vai me perdoar um dia, como eu perdoo-a por mentir sobre quem eu sempre fui.

Caminho em direção ao parque típico desses últimos dias. Ao passar pelo lago não sinto nada, olho meu reflexo na água e sorrio, meu instinto era pular e me acabar nadando, mas com certeza essa não é a melhor hora possível, e os gansos que ficam nas bordas do lago esperando algum turista bobo dar-lhes comida, não iriam gostar nada disso.

Chego ao bosque e sento-me no lugar de sempre. Não consigo me concentrar muito na história, afinal, a história que estou vivendo é muito mais interessante para mim, e dessa história eu não quero perder nem uma palavra.

Ouço então, o farfalhar que indica que Riba está me esperando como prometido.

*****

– Você merece muito mais do que só parabéns, Leona – Riba me diz, depois de pegar minhas mãos para me parabenizar pelo meu aniversário – Agora vamos... e eu tenho um presente para você.

– O que é?! – Solto essa frase com tanto entusiasmo que Riba parece sorrir em meio aquelas enormes árvores negras.

– Calma, garota – Ele me diz. – Ainda não é a hora.

Caminhamos lado a lado agora, diferente da última vez. Quando passamos pelo círculo onde o sol pode emitir seus raios amarelos, eu olho para Riba, e me deslumbro com sua beleza e suas asas. Ele me olha também, e sorri.

Caminhamos na escuridão de novo, e depois de algum tempo, vejo uma luz fraca surgindo. Dessa vez não tive medo, dessa vez eu não iria desmaiar. Dessa vez eu iria me sentir em casa.

*****

A tarde foi passando, e cada vez mais eu via sereianos chegar do céu e da água.

Ainda quando eu via uma sereia ou um tritão emergir da água, meu coração batia mais rápido, e era tão deslumbrante que acho que estava babando. Riba não pareceu perceber isso, então não perguntei nada. Ele ficou do meu lado o tempo todo.

Quando Lylha e Mar chegaram, eles me abraçaram e me desejaram parabéns bem felizes. Eu me sinti muito bem. Lylha era sempre tão legal comigo, e depois que chegou, ela não saiu do meu lado, como Riba. Mar ia e vinha para falar com outros sereianos. Eu percebi também que não importava o tipo de sereiano, seja ele aquático ou aéreo, todos se davam bem e em harmonia.

*****

Quando era umas 17 horas da tarte, faltando pouco mais de 1 hora para o pôr-do-sol e para o Ritual acontecer, Coral emergiu da água, acompanhada por Gringo e Warthia – que ainda era tão estranha imagina-la como uma sereia. Não olhei-os muito, pois meu dia estava ótimo para ser jogado pelo ar com Coral.

Aos poucos, vários sereianos aéreos foram descendo das nuvens e eu amei aquilo também. Nenhum vestia camisa, e a primeira mulher entre eles que eu vi, só vinha com um tope de cor palha e uma saia branca. Ela era tão linda quanto os demais irmãos. Haviam poucas mulheres entre eles, mas mesmo assim existiam.

Meu coração apitava como uma bomba prestes a explodir. Porque todos aqueles sereianos estavam vindo aqui? O Ritual era meu. Será que era obrigatória a presença de outros sereianos?

Não pude deixar de perguntar isso a Riba, e ele me respondeu da melhor maneira possível.

– Eles estão aqui porque sempre fizeram isso, desde que o primeiro sereiano fora proclamado no Oceano. Eles também estão aqui para dar as boas-vindas a você depois do Ritual. E você devia se sentir muito calma por isso. Todos vão estar ao seu lado, no que der e vier.

Eu sorri para ele, ele sempre me tratara da melhor maneira possível, e me ajudara nos momentos difíceis. Eu gosto dele. Mas gostaria ainda mais se ele parasse de querer cuidar de mim do jeito errado. Não quero um guardião, quero o Riba de verdade.

*****

Depois de alguns minutos percebi uma mulher emergindo as águas, mas quando emergiu não percebi nenhuma cauda de sereia ou algo do tipo. Ela apenas emergiu e estava vindo na minha direção. Na minha direção.

Ela tinha a pele roxeada e seus cabelos eram do mesmo tom, um pouco mais escuros talvez. Ela vestia uma blusa que na verdade parecia um xale, pois não havia a parte de baixo do braço. Ela não vestia qualquer outra coisa por baixo para tampar os seios para não se expor. Ela parecia não ligar.

Ela também vestia um short amarelo, um pouco mais claro que o xale, e o short era tão curto que dava para ver muito mais que só as pernas roxeadas e lisas. Ela tinha uma estrela do mar vermelho-laranja nos cabelos, e ela era bonita. Na verdade parecia exótica, e muito difícil de se lidar se ela não gostasse de você.

Ela caminhou silenciosamente até mim, e andava de uma forma reta, como se tivesse acostumada a andar aqui. E eu tinha certeza que estava acostumada mesmo.

– Você que é a Leona? – Ela parou na minha frente, e eu me levantei para encara-la nos olhos. Nenhum dos outros fez o mesmo, e eu achei um pouco estranho, mas não liguei.

– Sim – Eu disse, num tom quase igual ao dela. Sem emoção.

– Então bem-vinda – Ela sorriu para mim e aproximou sua mão de mim para aperta-la. Esse gesto me pegou de surpresa, e seu sorriso também. Mas mesmo com a surpresa nos olhos, eu fiz o que tinha que ser feito. Nossas mãos se apertaram, e ela sorriu mais. – Sou Alma. Não sou uma sereia ou alguma coisa que lembre um peixe – Ela riu – Sou parte mulher, parte água-viva... e não se preocupe, quando estou humana não solto veneno.

Eu fiquei paralisada, mesmo ela não me lançando veneno algum. Seu rosto era de alguém feliz e sincero, mas eu não sabia o porquê ela estava me falando aquilo, não é algo que chega a alguém que você não conhece e fala na mesma hora. Mas mesmo assim, arrumei algo para falar no meu oceano de pensamentos.

– Me falaram que existia uma mulher-água-viva, e eu achei super fantástico – Eu sorri mais.

– Todos falam dos sereianos diferentes – Eu parei de sorrir. Acho que ela não gostou de saber disso. – E não se preocupe – Ela riu – Eu não ligo para isso.

– Ah... Que susto – Aliviei.

– Agora – Ela disse – Qualquer problema com a Coral, me chame por favor – Ela piscou para mim – Não é a única que não gosta dela.

Lylha sorriu e abaixou a cabeça, mas Alma pareceu não se importar. Elas devem se conhecer e fazer planos maldosos para acabar com Coral, nas horas vagas.

– Bom – Ela disse – Boa sorte. Daqui a alguns minutos você será proclamada pelo seu pai... Parabéns, inclusive.

Ela sorriu e foi em direção a alguns sereianos aquáticos que estavam ali a mais tempo. Percebi que eles pareciam ser os Rebeldes do Oceano, pelas suas roupas e seus modos de falar e rir.

Depois que Alma foi embora, Riba virou para mim, sorriu e disse:

– Acho que já está fazendo as pessoas gostarem de você pela escolha de inimiga, parabéns.

– Não quero ter inimigos, Riba – Eu disse na defensiva – Mas não quero que brinquem comigo.

– Nem sempre precisamos querer não fazer inimigos e temos um. – Ele diz sério, olhando para o mar. – É tão normal quanto fazer um amigo.

– Eu sei, mas...

– Olha – Disse ele – Esquece isso... – Ele mexe no bolso e tira algo de dentro. Percebo que é algum pingente. Meu coração dispara, não pelo fato de ganhar um presente qualquer, mas sim pelo fato de ganhar um presente de Riba.

– Foi eu que fiz – Ele me entrega o pingente – Não sei se vai gostar, mas se não gostar...

Olho para o pingente e meu peito se desfaz em vários líquidos diferentes de sentimentos. Duas asas estão presas por uma cordinha de palha. Sei que foi feito por ele no momento em que eu coloquei as mãos.

As duas asas são bem leves e o branco me faz suspirar. Relo os dedos em volta das asas e consigo sentir a voltinha de cada uma. O pingente vai me fazer lembrar de Riba, e eu amo-o por isso.

Peço para ele colocá-lo em volta do meu pescoço, e então ele repara no meu pingente de prata com uma onda da mesma cor. Ele me olha e oscila.

– Eu amei isso – Eu digo a ele – Você é perfeito.

Ele então para de oscilar e coloca o pingente ao redor do meu pescoço. Seu toque faz com que eu me sinta mais em casa ainda, mas então o momento acaba, e sinto que uma telha da minha casa está quebrada. Só ele pode consertar.

*****

Depois de alguns minutos, vejo que o sol está se pondo atrás do mar. Meu corpo me instrui a se levantar e caminhar até a areia molhada. Aproveito o momento para perceber como meus olhos não se dilatam quando chego perto da água. Estou me completando.

Quando a água cristalina está com um tom de alaranjado pelo sol. Lylha e Riba vem até mim e me carregam pelos braços até onde as pequenas ondas cobrem minha panturrilha.

Lylha manda eu fechar os olhos e esperar.

Antes de fecha-los, vejo todos os sereianos olhando-nos, e lá mais para frente, no mar selvagem, vários seres que não são humanos estão observando a cena. Sei que terei tempo para descobrir quem são eles, e então agora eu só relaxo.

Meus olhos se fecham, mas consigo ver a claridade laranja do sol. Meus pés oscilam e minha pele se arrepia. Sei que não é por medo da água, e sim por excitação do momento.

Sinto um brilho um pouco mais à frente de mim. Sei que o Ritual do Pôr-do-Sol começou. Ouço os gemidos de espanto dos outros, mas não abro os olhos para ver.

Todo meu corpo oscila agora, e eu percebo que nem Riba e nem Lylha estão ao meu lado mais.


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