Oceano escrita por Mateu Jordan


Capítulo 13
Ritual do Pôr-do-Sol




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Depois que percebi que nem Riba, nem Lylha estavam mais ao meu lado, fiz menção de abrir os olhos, mas a luz vinda da minha frente estava se tornando tão forte que meu cérebro protestava contra a minha ação.

Eu não fazia ideia do que era aquilo.

Queria chamar por Riba e Lylha, mas todos estavam me observando, eu tinha certeza. Fiquei quieta, fechando a boca ao extremo e os olhos também. Queria que aquilo acabasse logo, parecia que meu corpo iria despencar a qualquer momento.

Senti minha pele se arrepiar mais, senti o estômago revirar, e pela primeira vez na vida senti uma falta de ar crescendo em meu peito.

Eu queria abrir os olhos para acabar com aquele momento que parecia infinito, mas meus olhos não me obedeciam, eu não tinha mais oxigênio.

Eu agora já transpirava, e minha boca tentava dar ar aos pulmões, mas tudo foi em vão. Quanto mais força eu fazia, mais o ar não vinha.

Levei minhas mãos a garganta para respirar, tentei de algum modo fazer com que parasse de procurar por ar. Eu estava ficando desesperada.

Quando mexi minhas mãos no pescoço, senti algumas escamas tocar minha pele. Retrai minhas mãos um pouco, mas logo procurei pelas escamas novamente. Pareciam camadas oscilando, e ao passar os dedos por elas, percebi que tinham um espaço dividindo cada uma. Aquilo parecia ser brânquias de peixes.

Minha mente talvez estivesse delirando, ou eu estava recebendo um aviso. Seria essa a “benção” do meu pai? Ganhar brânquias para não respirar oxigênio, a não ser do mar.

É claro.

As brânquias são os órgãos responsáveis pela respiração dos peixes. Eles respiram de baixo d’água, ou seja, eu preciso me afundar no mar.

Minhas pernas oscilaram e caíram na água, fazendo-a espirrar no meu rosto. As gotículas de água que bateram em mim pareciam ar puro de verdade. Minhas brânquias balançavam loucamente pedindo mais. Coloquei as mãos dentro da água tentando tatear algo para agarrar, mas eu já estava ficando mais desesperada ainda.

Só tive força para dar um impulso e mergulhar na imensidão do mar.

*****

Minhas brânquias se aliviaram ao se entupir do que mais queria. Meus ossos e todo o meu corpo pareciam finalmente agradecerem por aquilo. Senti todos os meus nervos entrando em transe, ou melhor, relaxando. Eu não podia me sentir melhor que aquilo, eu já estava no limite da felicidade.

Com certeza aquela luz muito forte estava vindo do sol. Deixei isso de lado.

Não conseguia ouvir nada, mas sabia que tudo estava bem. Olhei para minhas mãos tentando achar alguma escama de peixe ou algo parecido, mas não encontrei nada. Apenas sabia que eu havia ganhado brânquias e que eu podia ficar aqui embaixo o quanto eu quisesse. Liberdade.

Tentei balançar uma perna de cada vez para poder nadar mais para o fundo, mas elas simplesmente não estavam mais lá. Era como se tivesse algo faltando, mas mesmo assim eu sentia-as. Eu fiquei espantada, olhei para trás e vi.

Minha cauda era linda. Eu agora eu seria uma sereia. Agora eu era uma. Balancei-a como nadadeiras de um peixe, e elas refletiam na água azul ali do mar.

Sorri, pois eram diferentes do que eu imaginava. Para mim elas sempre eram como o fundo do oceano, uma cor mais escura e sem brilho, mas as minhas não, elas eram de uma cor prateada fosco, mas que emitia brilho mesmo assim. Era tão linda que não conseguia parar de olhar, então comecei a prestar mais atenção nela. Encolhi-me junto as minhas pernas – que não estavam mais ali, mas que eu sentia algo no local onde ela estavam.

Olhei-a bem. A princípio ela parecia oscilar entre prateado e um azul claro, mas na água do mar não dá para distinguir uma cor definitiva, e não importava, o importante é que com elas eu conseguia ser mais livre. Mais rápida.

Eu conseguia ver o contorno das minhas pernas até o joelho. Depois disso, só conseguia ver a parte de baixo da cauda. A coxa e o osso central do joelho pareciam queria sair de um tecido. Pareciam querer avisar que ainda eu tinha as pernas caso quisesse usa-las.

Na parte onde devia estar a panturrilha e depois do joelho desaparecera, ou a cauda não conseguia marcar. Não entendo nada de como é ter uma cauda, só sei que se eu relasse a mão na minha coxa, eu sentia um tecido grosso cobrindo-a. Era instigante.

Nadei por um tempo observando-a e depois tentei fazer manobras difíceis e complicadas. Era tão bom estar livre e conseguir fazer o que quiser, sem nenhuma gravidade te impedindo.

Os peixes passavam por mim como raios de luz, eram tão rápidos que eu não conseguia distinguir suas cores. Era tudo tão alucinante e engraçado que meu sorriso não conseguia sair da boca. E eu não queria deixa-lo ir.

Fiquei nadando alguns minutos que mais pareceram segundos, e foi então que minha ficha caiu e eu lembrei que precisava voltar para a superfície, onde vários sereianos do Oceano me esperavam ansiosamente.

Olhei para cima vendo o céu azul. Tudo parecia ser azul daqui, e tudo me deixava calma também. Eu só tinha um pensamento na cabeça: queria que isso nunca tivesse fim.

*****

Depois de alguns segundos nostálgicos emergi na superfície, e antes de poder enxugar os olhos e tirar o cabelo molhado da frente dos olhos, eu ouvi os “vivas” e as palmas indicando o fim do Ritual que me consagrou uma filha de Poseidon. Meu sorriso já estava estampado no rosto a muito tempo.

Olhei para todo mundo em volta, as criaturas aquáticas inumanas já haviam ido embora, agora eu só via sereianos, e muito deles estavam vindo em minha direção, mergulhando e emergindo do meu lado. Todos tinham brânquias como eu, e eu fiquei satisfeita com isso.

Lylha e Mar estavam ao meu lado me abraçando e dizendo: “parabéns, irmãzinha” “eu sabia que você seria filha de Poseidon” “Vamos poder explorar o oceano todo agora”. Eu sorria de volta e concordava, não sabia algo melhor para responder.

Muitos passaram e me deram um abraço ou as mãos, menos Coral e seus dois escravos – é o que pareciam, pelo menos, Gringo e Warthia -, mas eu não me importei, afinal, eu estava muito feliz para tirar o sorriso do rosto.

Ao longe, vários sereianos aéreos gritaram: BEM-VINDA-FILHA-DE-POSEIDON, e subiam ao céu em direção as mais diversas nuvens brancas como gelo. Eu sorri para eles e acenei. Eu estava gostando disso.

Ao longe apenas três anjos ficaram parados. Um era um menino de cabelos longos e pretos como os de Coral, mas não tinha a feição tão rígida, outra era uma menina só de tope e saia, tentando levar o terceiro anjo embora. Riba. Ele me olhava, parecia relutante, mas nossos olhares se encontraram e eu soube que tinha alguma pitada de tristeza em seu olhar. Eu esqueci completamente dele enquanto todos aqueles sereianos aquáticos vinham me dar os parabéns. Eu pensei que ele não ligaria, mas ele foi a única pessoa – tirando minha família – a me dar um presente.

Toquei o pingente de asas que ele havia me dado, e senti os contornos delas. Sorri para ele, e ele pareceu sorrir de volta. Ele parecia mais alto na pouca luz que o sol ainda nos dava aqui na praia, e eu não queria parar de olha-lo.

A menina então parou de puxa-lo e me olhou de forma acusatória. Seus cabelos eram pretos e bem curtos, e ela tinha um colar apertado no pescoço, com uma onda nele balançando ao vento.

Ela então alçou voo e o outro anjo de cabelos longos também. Logo só Riba estava lá no chão, mas foi por pouco tempo, ele não me disse tchau, nem abanou a mão, e nem sorriu de novo. Eu havia esquecido de comemorar com ele, e eu pediria desculpas depois.

Alguns sereianos continuavam ali do meu lado, conversando entre si, muitos haviam deslizado sobre as águas, e estavam indo em direção a sede do Oceano. Lylha, Mar, Alma, e alguns outros estavam me esperando.

Lylha veio até mim muito rapidamente e eu soltei algumas perguntas que estavam entaladas na minha garganta. E quando comecei a falar, Riba já havia desaparecido, e eu o havia deixado.

– Você viu quando comecei a perder o fôlego? – Perguntei.

– Sim! – Ela sorria – Todo mundo viu essa cena. E você deve estar se perguntando porque não conseguia respirar como está fazendo agora, sem estar com as brânquias para fora d’água?

– É...

– É muito simples – Ela começou – Quando você já sentiu as brânquias, o Ritual do Pôr-do-Sol já havia começado e esse é sempre a primeira coisa que um sereiano aquático recebe do pai. As brânquias. Todo aquático tem, e esse é um dos maiores presentes, não acha?

“Quando as brânquias estão para fora d’água e você ainda está se transformando, elas não conseguem respirar. É como se o seu órgão que respira estivesse ligado nas brânquias mesmo fora d’água e ela não tem o que inalar. Mas fica tranquila, isso é mais ou menos um teste de Poseidon para nos ensinar a sobreviver. É como os sereianos aéreos recebem um teste de Éolo, eles não conseguem abrir os olhos até que relaxam e consigam ouvir o que está acontecendo, qual o barulho que o mar faz, e quantos graus está fazendo no momento. São testes que temos que nos concentrar para fazer.”

“E não quero dizer que os aéreos são mais protegidos, mas é bem mais difícil pensar quando não está respirando, do que quando não está vendo, não acha?”

– Não sei qual é mais difícil – Eu disse – Eu não conseguia abrir os olhos também, acho que foi o sol que estava no meu rosto...

– Espera – Ela disse – Se você não conseguiu abrir os olhos também, quer dizer que Poseidon estava te testando mais que uma vez. Você deve ser alguém especial...

Não queria me sentir mais especial que isso, porque afinal, eu já estava feliz. Pedi para Lylha esquecer isso, e continuei:

– Então você quer dizer que eu vou conseguir respirar normalmente como estou fazendo agora, mesmo que eu queira sair do mar, não é? – Pergunto.

– Sim, claro – Ela diz, balançando a mão – Você só precisa se concentrar para virar uma “humana” de novo. É só querer, que seu corpo volta ao normal.

“Outra coisa, quando você está na forma de sereiano, você consegue respirar mesmo que as brânquias estão para fora da água, se sua cauda ou o que for que você tem no lugar das pernas, você consegue respirar porque sua cauda faz parte do mar, entendeu?

– Sim – Eu digo – Tudo isso é um pouco complicado, mas com o tempo eu me acostumo, não é?

– Com certeza, Leo – Ela diz – Mas agora temos algumas coisas importantes para fazer, ok? – Lylha me diz, sorrindo – Você não pode se chamar Leona Parker aqui. Esse não é seu verdadeiro nome. Só quem sabe é Tritão, e estamos indo falar com ele agora.

Ela me puxa e desliza pela água. Quando eu vejo seu rosto embaixo d’água, quase me assusto.

Dou um pulo para trás, e ela ri – e dessa vez o mar parece estar barulhento. Eu consigo ouvir sua risada.

– Com o tempo, você vai ganhar algumas coisas que a água oferece. Não vai precisar cobrir com roupa nada aqui embaixo, afinal, com o tempo a água faz todo tipo de tecido se desfazer, e por isso toda a parte do seu corpo que você quiser cobrir, vai ser coberto por algas e veias que saltam da sua pele, como estas pelo meu rosto...

Lylha tem várias veias vermelho-vinho pelo rosto, eu consigo vê-las bem nitidamente, até que não são feias, mas é bem estranho para quem está acostumado a ver rostos sem nada de errado.

– A gente só tem essa aparência aqui dentro da água, ok? – Ela diz – E você ainda não tem nada, porque hoje é seu primeiro dia como sereiano, e por isso também está usando sua blusa de antes.

Olho e vejo que é verdade, eu não tinha reparado nisso antes. A pele do braço e das mãos está perfeita, mas reparando em Lylha de novo, vejo nadadeiras em suas mãos e braços, e isso é bem atraente para Lylha. Ela é uma linda sereiana.

– E você consegue só ouvir sereianos aqui embaixo, por isso é sempre tão relaxante quando você submerge na água. Ela é sua casa.

– Eu estou achando tudo muito tão interessante! – Percebo pela primeira vez a minha voz, e ela está igualzinha como sempre foi. Sorrio e nado ao lado de Lylha.

Lylha me olha e desvia o olhar, e logo em seguida, subitamente, me olha de novo, mas dessa vez ela olha para a minha cauda.

– Oh meu Deus – Ela parece feliz, bem feliz – Sua cauda brilha, isso quer dizer que você é especial para Poseidon. É por isso que ele te fez permanecer com os olhos fechados. Você de algum modo é especial para ele.

– E o que um sereiano precisa para ser especial para Poseidon? – Pergunto.

– Bom – Ela começa – Ou você já fez algo bom na sua vida, como ajudar a salvar o Oceano, ou ele está prevendo que você fará algo bom que irá ajudar a nós.

Reflito sobre tudo o que eu já fiz, com certeza eu nunca ajudei os sereianos. Engulo em seco. Isso quer dizer que Poseidon previu algo.

*****

Nadamos por entre o mar e eu vou observando outros sereianos que nunca havia visto antes. Todos pareciam conversar entre si, e algo de diferente me chamou a atenção. Alguns sereianos eram mais velhos e aparentavam isso.

Alguns tinham barba branca, outros a pele esverdeada enrugada. E sempre as caudas eram bem maiores, e as barbatanas e nadadeiras em volta do corpo também. Isso devia significar que eram mais velhos. Não perguntei isso para Lylha, eu estava nervosa com outros assuntos.

Vejo também alguns seres estranhos, vejo um casal de baleias passando ao longe, e vejo um polvo aqui, e outro perto dele. Alguns sereianos são diferentes, outros só tem a cabeça de humano, e todo o resto do corpo em forma de algum animal aquático. E eu vi até um sereiano camuflador. Só sei que quando o vi, ele tentou se camuflar na paisagem, mas virei a tempo de ver seus olhos.

Vejo Mar vindo em nossa direção, e ele me tira dos pensamentos. Diferente de Lylha, ele não tem as veias saltadas no corpo, só mais escamas nas mãos e nos braços. Os piercings continuam nos lugares de sempre, e seu cabelo está mais comprido, acho que a água os liberta também. Ele sorri e nos acompanha.

Como Lylha, ele para e fala sobre como minha cauda é diferente, e ele pergunta se Lylha já explicou sobre quem tem caudas brilhantes. Sigo meu impulso e pergunto o que está me encucando.

– Tem mais alguém que tem ou tinha alguma como a minha?

– Só mais uma sereiana tinha a cauda como a sua – Lylha diz.

– Quem?! – Eu pergunto ansiosamente.

– Odya – Lylha diz, timidamente – A mesma que morreu depois de avisar a Riba sobre você.

Meu coração é cortado ao meio, e sinto uma vontade imensa de abraçar Odya e dizer que sinto muito. Mas ela já se foi, e não tenho muito tempo para pensar nela agora.

Ao longe, e cada vez mais fundo, vejo uma construção bem branca e reluzente onde estamos indo em direção. Achei que cada vez que afundávamos mais no mar selvagem, a nossa visão iria ficando menos nítida, mas me enganei, conseguia ver bem a enorme construção que agora se avolumava na minha frente. Parei quando Lylha e Mar pararam.

– Bem-vinda Leona – Os dois disse em uníssono – A Oceano.

Sorri, e continue sorrindo mais.


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Notas finais do capítulo

OBS: PEÇO DESCULPAS SE OS CAPÍTULOS ESTÃO FICANDO MAIORES DE UMA HORA PARA OUTRA. É QUE QUERIA COLOCAR TUDO EM APENAS UM CAPÍTULO PARA NÃO FICAR MUITO DIVIDIDO E FACILITAR - DE ALGUMA FORMA - A LEITURA PARA VOCÊS.

QUALQUER RECLAMAÇÃO, SÓ ME CONTATAR. OBRIGADO.