O Tempo que Leva escrita por Bruna Guissi


Capítulo 9
Deixar Para Trás


Notas iniciais do capítulo

Uh! Aí vai o nono minha gente!
Boa leitura!
Regina Let's Go – CPM 22



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/590196/chapter/9

Acordei de uma noite mal dormida. Sem música, sem rádio, sem despertador. E dessa vez estava sozinha na cama.

O dia anterior fora exaustivo; saí do hospital já passava do meio dia. Ian ligou para o trabalho e avisou que não iria. Quando falei que faria o mesmo ele não deixou.

–Não precisa perder o dia, está começando a cozinhar agora. – falou, com o rosto cansado – Se alguma coisa acontecer... – a voz dele fraquejou – Eu te aviso.

Voltei para casa e comi muito pouco. Toda a tensão daquela manhã fora surrada em massas macias no restaurante à noite, coisa que não passou despercebida por Marion. Quando fui bater claras em cozimento para fazer o merengue, ele mandou que eu descansasse um pouco.

Expliquei o que estava acontecendo e ele compreendeu totalmente. Sempre gostei desse homem, mas nunca como ontem. Ele me ensinou a preparar chás relaxantes que aprendera a fazer numa viagem para a China, dizendo que poderiam ajudar tanto a mim como a mãe de Ian. Abracei-o e agradeci, segurando uma lágrima.

Passei o resto da noite e parte da madrugada sem notícias e sem conseguir dormir. Ian ligou-me às duas da manhã para dizer que ela estava bem, e que até acordara por alguns minutos. Suspirei de alívio.

Então aqui estamos, o trapo que estou, Jusiete insistindo para que eu não me preocupe, e Sapulinho (mais novo morador da minha pessoa) inquieto no estômago. Sapulinho deixou-me enjoada demais para sequer tomar café.

Fui para o banheiro passar uma água no corpo, para ver se me sentia melhor, e quando saí do chuveiro meu celular tocou.

–Avalon? – perguntei confusa ao atender ao telefone – Não esperava que fosse ligar tão cedo.

–Ah, me desculpe, é que foi o tempo que achei. – explicou – Vamos almoçar? – perguntou, e pude ouvir Eileen no fundo dizer algo sobre ajudar a cozinhar – Verdade, nós vamos aí ajudar a cozinhar. – ofereceu.

Dei uma risada cansada.

–Tudo bem podem vir. Tragam alguma coisa para beber, por favor. – respondi, deixando o telefone no alto-falante para colocar uma roupa confortável.

–Pode ser refrigerante, não é? – perguntou rindo.

–Pode! – disse revirando os olhos – E eu não bebo o tempo todo! – reclamei, antes que desligassem a ligação. Revirei os olhos.

Fui para a cozinha e abri a geladeira, separando uma carne para preparar. Peguei arroz, temperos e feijão na despensa e coloquei tudo em cima da pia. Olhei a hora no celular; dez e quinze. Resolvi que podia esperar um pouco até começar a cozinhar.

Fui para a sala e deitei no sofá; parecia um saco de batata jogado em cima dele, sem forças para viver no momento. Estava cansada demais depois do dia anterior, e não ajudava nada amanhã ser meu aniversário.

Vinte e um anos. Respirei fundo.

Pelos Cosmos, vinte e um anos! Quem se casa com essa idade? Uma sensação de alívio percorreu meu corpo.

A vida tem dessas coisas, eu acho; faz você perder alguma coisa para só perceber que ganhou algo quando já o tem. Liberdade.

Pulei do sofá, empurrando o sono para longe. Voltei para a cozinha para começar a preparar a comida.

Em dez minutos, quando eu já havia temperado a carne e tirado o feijão de molho, ouvi o interfone tocar. Mandei que Hélio deixasse as meninas subirem.

Como sempre, entraram sem bater; Eileen colocando o jaleco dela em um dos ganchos na parede do corredor, e Avalon jogando sua bolsa no chão. Tiraram os sapatos e vieram para a cozinha com duas garrafas de refrigerante e uma torta holandesa, exibindo as compras.

–Torta em cima, e um dos refrigerante no freezer em baixo. – mandei, virando para a comida. Comecei a refogar o arroz.

–Como estão as coisas, Mika? – perguntou Eileen, agora sentada junto com Avalon numa cadeira alta do balcão. Virei para responder, mas parei porque ela fez uma cara de espanto – Você dormiu essa noite? – perguntou preocupada, sendo acompanhada por Avalon.

–Ah! – falei, entendendo. Respirei fundo, esfregando os olhos. Deviam ter olheiras grotescas ali para que se notasse de longe – O dia ontem foi... tenso. – expliquei, sem dar detalhes – E acabei não dormindo bem. – voltei para o fogão.

Eileen virou para encarar Avalon, para saber se sabia de alguma coisa. Ela deu de ombros, sem entender.

–Mikaela, o que aconteceu? – insistiu com o rosto preocupado. Senti como se carregasse quilos e quilos de preocupação nos ombros.

–Conheci a mãe dele ontem. – disse ainda de costas, mas pude perceber que elas não entenderam – Ela tem câncer. – então Avalon soltou um “Mas que merda” com o rosto tristonho.

–Não aconteceu nada com ela, não é? – perguntou Eileen, fazendo sombra aos pesadelos de ontem. Acenei que não.

–Ela teve um pequeno surto da frequência cardíaca, e nós estávamos lá. – expliquei, agora encostando-me na pia – E ela só melhorou de madrugada. Passei a noite em claro.

Eu encarava os dedões do pé, exausta. Tinha ficado com tanto medo que algo acontecesse com Regina justo quando acabara de conhecê-la. Uma mulher tão doce.

–Mas ela está bem agora? Não teve mais nenhum surto? – perguntou Avalon. Fiz que sim com a cabeça.

Voltei para o fogão para começar a fritar alguns bifes.

–Mas não sabia que ia conhecer a mãe dele. – comentou Eileen, agora menos tensa – Como foi? Bom, antes dela passar mal? – quis saber.

Expliquei o que acontecera no hospital; como a mãe dele fora gentil e o que tinha me contado sobre Ian.

–Ela disse que ele era tímido. – falei sorrindo, sem acreditar ou desacreditar completamente na informação. Dava para vê-lo como uma criança sorridente, mas de poucos amigos. Ele era assim até hoje.

Como se eu o conhecesse muito bem! Mas a verdade é que parecia que sim. E quando estava com ele, parecia que era possível resolver as coisas. Assim, como se só bastasse tentar.

Terminei de cozinhar e logo nos servimos de grandes porções de comida. Sempre amei comer, mas comer com companhia é muito melhor. Devoramos tudo o que podíamos em duas horas, sobrando o equivalente a nada.

As meninas me ajudaram com a limpeza, e assim que deu uma hora elas já haviam saído para voltar a trabalhar. Decidi que hoje era dia de nadar.

Saí logo depois de casa, com as roupas confortáveis, chinelos e a bolsa com coisas para tomar um banho. A chuva havia dado uma trégua, mas não fazia muito sol hoje, de qualquer jeito.

Toda vez que mergulho na piscina sinto um alívio enorme. Chegou a hora de extravasar! E foi isso mesmo que eu fiz. Quase um quilômetro e meio de exercício para sair da piscina toda mole e exausta.

Fui para o chuveiro no ritual de relaxamento de sempre, deixando a academia perto das duas e quarenta, caminhando de volta para o apartamento. Não percebi quando ele havia aparecido na calçada, mas lá estava ele.

Phelipe. E acompanhado. Não consegui segurar um sorriso sádico. Tudo bem, agora as coisas estão resolvidas. Posso ser simpática com ele. Posso fingir, pelo menos.

Quando se aproximou distraidamente com a mulher de cabelos castanhos lisos de mãos dadas, entrei no caminho deles, com um sorriso simpático no rosto.

–Oi! – disse calmamente. Começou a bater um vento gelado nos meus cabelos molhados, mas ignorei o frio – Phelipe, como vai você?

Ele ficou alguns segundos me olhando de boca aberta, e a mulher com ele esperou que ele falasse algo. Não o fez. Ela assumiu o dever.

–Olá! – respondeu simpática. Então Phelipe pareceu sair do transe de surpresa e começou a falar:

–Ah, desculpe-me! – disse todo educado – Isobel, essa é Mikaela, Mikaela, minha namorada, Isobel. – não consegui conter o sorriso de satisfação sádico.

–Prazer. – falei, estendendo a mão, e ela fez o mesmo, com um sorriso simpático no rosto.

–Mikaela é uma amiga de infância. – explicou Phelipe. HAHAHAHAHAHAHA AI, QUE MENTIROSO! Mas não o desmenti. Acenei com a cabeça, como que concordando.

“Tem caroço nesse angu.” Jusiete, me deixa curtir com a cara dele, só um pouco. Por favor.

–Ah! Ele me falou de você. – disse de modo amável – Como estudaram juntos e tudo mais. – Ai moça, o que mais ele andou te falando?

–Mas que coisa! – respondi com uma cara de surpresa – Fazia tempo que não falava com Phelipe, havíamos tido uns problemas, mas pelo visto você já superou! – falei de modo cínico para ele, fazendo-o engolir em seco – Isso é muito bom. – acrescentei, agora sem cinismo. E era mesmo.

Que me deixasse em paz, Oh, Cosmos!

–Mas então, o que fazem por aqui? – perguntei simpaticamente. Foi a tal de Isobel que respondeu.

–Viemos comemorar nosso aniversário de dois meses num restaurante aqui perto! – o sorriso no meu rosto congelou – Só temos o horário do almoço, então estamos aqui. – disse simpaticamente, dando de ombros como quem diz “Acontece!”.

–Dois meses? – consegui perguntar, sentindo agora que Phelipe estava quieto demais. O sorriso no meu rosto era cruel – Deve ser uma relação tão firme. – Senti o sarcasmo sendo destilado na minha língua. Ela não pareceu perceber – Parabéns! – e estiquei os braços para cima, como se comemorasse.

–Muito obrigada! – respondeu amavelmente.

–Bom eu preciso ir andando. – anunciei depois de um pequeno silêncio constrangedor – Boa sorte. – desejei à garota – Espero que tenha mais sorte que eu com – e eu quis dizer Phelipe, ou talvez “ESTE GRANDE FILHO DA PUTA”, mas me contive com – relacionamentos. – Phelipe me olhou brevemente com o rosto assustado.

E passei a caminhar furiosamente para meu apartamento.

Em muitas vezes procurei tentar achar
Onde eu errei em coisas que nem têm porquê
Naquela vez te perguntei,
Você não soube responder
O que eu tinha feito pra você

Era... Inacreditável! Eu não consigo acreditar. Depois de todo esse tempo, e só depois que ELE termina comigo, dizendo que sou indiferente, é que eu vou descobrir que ele me traía há DOIS MESES. DOIS MESES.

E EU TRANSANDO EXCLUSIVAMENTE COM AQUELE BROXA, POR QUEM EU FUI CAPAZ DE ME APAIXONAR. ADOLESCENTES NÃO PRESTAM MESMO. NÃO CONFIE NO SEU JULGAMENTO SE VOCÊ TIVER MENOS DE 19 ANOS. VOCÊ SÓ VAI FAZER MERDINHAS.

Cômico. Hilário.

Um absurdo! Entrei no apartamento rugindo. Não consegui segurar a risada escandalosa de nervoso. Como pude gostar de um traste como ele?

Meu Deus!

Joguei-me no sofá, meio rindo meio chorando. Não, eu não sinto nada por ele agora, mas eu senti! E ele foi capaz de fazer isso comigo! Depois de dois anos de namoro e três de noivado!

Agarrei uma almofada do sofá para gritar. Todo esse tempo perdido, todo esse sentimento desperdiçado.

Tentei respirar fundo; uma, duas, três vezes. Mas a decepção era grande demais.

“Não vale a pena.”...

Agora como eu vou saber
Tem hora que é melhor esquecer
Esperar o dia amanhecer
Pra ver o que a gente vai fazer

Levantei do sofá e fui para o quarto, deitar um pouco. Iria trabalhar hoje a noite de qualquer jeito, e preciso mesmo descansar. Antes de apagar mandei um mensagem no celular de Ian, perguntando como estavam as coisas e se sua mãe estava melhor.

Só acordei às quatro horas, obviamente já atrasa.

Merda! – exclamei em voz alta, pulando da cama. Corri para a cômoda para pegar as roupas, me vestindo com pressa.

Não preciso usar o uniforme nos dias em que cozinho, o que é ótimo; o máximo que pedem são roupas boas e sapatos fechados, então não precisei de muito. Coloquei a calça preta social de sempre, optando por uma regata branca de cetim ao invés da camisa, e um tênis preto confortável.

Peguei minhas coisas e saí correndo de casa, meio descabelada. Ao entrar no vagão eu olhei para o reflexo na janela. Procurei um elástico bom na bolsa e prendi firmemente o cabelo, deixando apenas alguns fios da franja soltos.

Dez para cinco saltei para rua, caminhando mais um pouco para chegar ao restaurante. Entrei pelos fundos, e encontrei Marion a minha espera.

–Quase não chega. – disse de maneira risonha com aquele sotaque francês – Vamos, pegue seu avental de cozinha e vamos trabalhar!

Apenas acenei com a cabeça, obedecendo-o. Deixei minha bolsa no armário e coloquei o grande avental de botões branco e o chapéu, sentindo-me melhor do que estava a tarde.

Não me importa mais não tem como voltar
É, eu não vou mais me importar

Não vou deixar esse assunto me atrapalhar. Não mais.

Fui para a cozinha, determinada a fazer meu trabalho direito. E eu estava indo muito bem; tudo estava ótimo, mas por algum motivo existem seres cósmicos regendo o universo que são MUITO SÁDICOS.

Perto das nove dez e meia, o gerente veio me chamar. Segurei um calafrio que correu minha espinha. Ele nunca tem nada para falar comigo. Não pode ser coisa boa.

–Mikaela, um cliente está procurando pelo Chef responsável pelo Salmão ao Molho de Maracujá. – então abri um sorriso.

–Ele parecia feliz? – perguntei, ansiosa. O gerente deu de ombros.

–Parecia surpreso, na verdade. Ele está te esperando ali no bar. – disse, virando-se e voltando para o salão.

Estufei o peito e saí em direção ao bar, esperando saber o que o cliente achara da comida. Mal posso acreditar!

E nem deveria mesmo. Quando estava a dois metros do balcão, pousei os olhos em algo absurdamente desagradável. Phelipe. Tive que conter um rugido.

Fiz menção de dar as costas e voltar para a cozinha, mas a desgraça loira já tinha me visto. Fiquei parada encarando-o sem esconder meu desprezo.

Ele se aproximou, com uma expressão de arrependimento, desculpas e desespero no rosto. Queria escarrar nele.

O que faz aqui? – perguntei com a voz cortante, trancando o maxilar ao terminar de falar. Os olhos dele estavam agitados, e me encaravam com uma súplica.

–Mikaela, deixe-me explicar... – mas ouvir a voz dele foi demais para mim.

Eu não quero que me explique nada. – falei interrompendo, a voz cortando como aço novo – Eu quero que você morra, ou saia daqui. Como te matar me faria perder o emprego, vou ter que me contentar com sua ausência. – falei, cuspindo as palavras. Meus olhos estavam bem abertos, a fim de enxergar completamente o grande saco de merda que ele era.

Como pude me apaixonar por isso? Ele não esperava tamanho repúdio, mas não pareceu desestimulado. Na verdade, voltou a falar.

–Deixe-me explicar! – pediu, dando um passo para frente, e eu fazendo o mesmo para trás. O restaurante não tinha tanto movimento hoje, mas um ou outro cliente notou a tensão no ar – Durante nosso noivado... – tentou ele, mas não conseguiu terminar.

Dei um tapa bem dado na cara dele. Chegou até a estalar. Ele parecia chocado.

–Vai dizer que, por causa da minha indiferença, você estava confuso, em dúvida sobre seus sentimentos, – ridicularizei, adivinhando o que diria – e que não soube o que fazer quando conheceu aquela mulher, não é? – ele de algum modo arranjou CRETINISSE o suficiente para acenar.

Parecia uma criança confessando um crime. Soltei uma risada histérica, já me esquecendo de que estava no trabalho.

Como pode ser tão cínico?! – perguntei, jogando ácido com as palavras sobre ele – Como pode vir aqui e achar que uma palavra sua vai mudar minha opinião de que você É O MAIOR MERDA QUE EU JÁ CONHECI?! – falei, já gritando com ele. Ele tentou manter a compostura, a fim de afastar olhares alheios. FODA-SE QUE OLHEM! – Ela nem sabe que fomos noivos! – acusei. Então uma luz me desceu dos céus, e eu olhei para ele, ainda mais incrédula do que poderia ficar – Ela nem sabe que você tinha alguém na época! – e comecei a rir descontroladamente.

–Mikaela, por favor. – suplicou ele, então me virei para olhá-lo, sem acreditar que ele ainda estava ali – Quer pelo menos tentar ficar bem com você.

Qualquer coisa faz sua ideia mudar
A gente ainda pode se entender

–HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA! – Meu escândalo alcançou o restaurante todo. Por um momento fiquei só respirando com dificuldade, todo o ódio me tirando o ar de respirar – Você é um cretino... – sussurrei. Coloquei a mão na testa, sentindo uma dor de cabeça descomunal.

Vi que o gerente vinha em nossa direção.

Suma daqui. – mandei, mas ele permaneceu no lugar, ainda me olhando. Quando Gabriel chegou para ver o que estava acontecendo, comecei a andar na direção oposta, voltando à cozinha. Gabriel me parou.

–Mas o que está acontecendo aqui?! – perguntou ele, todo engomado nos seu uniforme.

–Nada. – respondi friamente – O senhor aqui quer pedir a conta. – e saí.

Voltei para a cozinha, deixando a porta bater atrás de mim. Marion olhou em minha direção, confuso.

–Marion, perdoe-me, mas eu não me sinto bem. – falei com a voz fraca, tirando o chapéu e indo para os fundos. Ele gritou alguma ordem na cozinha e veio atrás de mim.

–O que aconteceu, Mikaela?! Sabia que pode perder seu emprego por isso?! – ralhou ele, com um olhar preocupado – Não vai poder nem servir aqui!

Não consegui segurar um soluço. Que ódio!

Marion notou, então abrandou o tom de voz, sentando-se ao meu lado no banco.

–O que aconteceu? – perguntou calmamente, dando tapinhas nas minhas costas.

Respirei fundo.

–Descobri que cinco anos da minha vida foram uma mentira, um desperdício. – falei, limpando a boca do gosto amargo que ela tinha – Se importa se eu sair um pouco mais cedo hoje? Sei que não é um bom começo, mas...

–Pode sim. – disse me interrompendo – E você começou muito bem, mon apprenti. – adicionou gentilmente, com um sorriso amável no rosto.

–Obrigada. – disse sorrindo fracamente em resposta.

Peguei meu celular e disquei o número de Ian. Precisava vê-lo, falar com ele, ouvir a voz dele.

–Mika? – perguntou com a voz confusa – Tudo bem? – respirei fundo.

–Não muito, na verdade. – respondi, fazendo ele dar uma risada leve – Como vai sua mãe? – perguntei, lembrando-me que ele não respondera a mensagem.

–Ah, sim! Desculpe por não responder! – pediu ele – Eu estava no trabalho quando vi, e deixei para responder depois. No fim acabei esquecendo. – disse com a voz doce – Ela está bem. – respondeu – Perguntou de você.

Dei um sorriso fraco.

–Está tudo bem? – consegui a voz dele ficar repentinamente mais séria – Onde você está?

–Estou no restaurante. – respondi – Vou embora mais cedo, acabei passando mal. – não era mentira. Estava com uma náusea tão, mas tão forte, que se visse aquele crápula de novo, vomitaria nele.

–Estou indo para aí. – falou, e consegui ouvir ele jogando algumas coisas no chão.

–Não precisa! – disse, mas era como falar com uma porta – Eu vou pegar o metrô e-

–Não depois de passar mal, Mikaela, por favor. – disse, e pude ouvir um tintilar de chaves – Achei que fosse mais inteligente. – disse com a voz divertida.

Dei uma risada fraca.

–Isso é só uma desculpa sua para vir me ver. – alfinetei, e ele riu abertamente do outro lado da linha.

–Ah sim, porque fui quem passou mal e ligou para você. Verdade. – ri de novo, já me sentindo melhor do que antes – Chego em cinco minutos. – anunciou, e desligou o telefone.

Respirei fundo.

Tirei o avental e deixei nas estantes, pegando minhas coisas para sair. Agradeci Marion mais uma vez, e fui embora pela porta dos fundos. Encostei-me na parede, esperando Ian chegar.

Fazia um pouco de frio agora, mas algo suportável, se você não estivesse de moto. Tudo bem; mais uma desculpa para poder sentir o calor do corpo de Ian.

Só que as emoções não pararam por aí. Senti um puxão no braço me virar, só para que eu desse de cara com Phelipe. Minha garganta começou a queimar com o nojo dele.

–Me solta! – pedi, mas ele não o fez.

–Deixe-me falar. – exigiu, agora com uma expressão feroz no rosto – Que culpa tenho eu...

–Ah! Essa é boa! – interrompi, fazendo-o ficar mais nervoso.

–Está aprendendo a ser assim com quem? Aquele seu namoradinho? – perguntou de maneira ácida. Estrei meus olhos, dando um sorriso insolente para ele.

–Não, não, acho que é COM MEU AMANTE MESMO. – respondi de maneira sarcástica, fazendo-o recuar um pouco, finalmente soltando meus braços.

Ele ficou ali, me encarando, o que me só me fez ter mais raiva dele ainda.

–E eu passei dias me perguntando o que eu tinha feito. – me vi falando, com a voz incrivelmente magoada – E no final das contas você jogou a culpa em mim! – acusei. Ele engoliu em seco.

Em muitas vezes eu pensei em tentar falar
o que eu nem sei de coisas que eu já quis saber
(Mas eu nem te avisei)
Naquela vez te perguntei
Você não soube responder
O que eu tinha feito pra você

–Eu... sinto muito. – falou de cabeça baixa. Dei uma risada sarcástica, sentindo a voz ficar tremula.

Sente? – perguntei, fazendo-o contrair-se com o tom da minha voz – Eu confiava em você. – falei baixinho, sentindo alguma coisa dentro de mim se mexer – E você jogou essa confiança no lixo. Desprezou tudo o que sentia.

–Mikaela, – tentou, mas era minha vez de falar.

–Não. – falei, então percebi que estava calma. Calma e respirava com facilidade. Aquela criatura na minha frente era digna de pena, e tudo o que conseguia sentir era isso. Pena – Eu não quero mais que me procure. – falei, fazendo-o olhar para cima – Quero que suma da minha vida.

Agora como eu vou saber
Tem hora que é melhor esquecer
Esperar o dia amanhecer
Pra ver o que a gente vai fazer

Algo dentro de mim estava verdadeiramente aliviado; como se o que me prendesse a ele, o que me prendesse à situação miserável que eu estava não estivesse mais ali. E o que substituiu isso foi algo melhor, mais útil e muito mais saudável. Minha dignidade.

Ele pestanejou por uns instantes, até tentar:

–Mas e o que a gente teve? Nossa história?

Olhei para ele, como se tivesse de explicar algo muito difícil para uma criança obtusa.

–Pode até ter acontecido, e foi sim ridículo perceber a pessoa que você é só agora, mas já foi. – falei calmamente.

–Mas a gente pode se entender. – insistiu. Que criatura miserável era ele, mendigando algo que eu não podia dá-lo. Perdão.

Não me importa mais até quando voltar
É, eu não vou mais me importar
Qualquer coisa faz sua ideia mudar
Quem sabe a gente pode se entender
Daqui a pouco é tarde demais,
Mas isso é entre eu e você

–Na verdade, não dá mais. É tarde demais; você demorou demais. Poderia ter evitado tudo isso se tivesse dito que não me amava mais. – falei, e ele não conseguia parar de me olhar com aqueles olhos de súplica. Não faziam mais diferença alguma para mim.

–Então o que a gente teve não foi importante para você? – perguntou, agora um pouco nervoso.

Dei de ombros.

–Não mais.

Ouvi o ronco de uma moto atrás de mim, como se estivesse sendo ligada. Virei-me e vi Ian encarando a rua. Fui até ele, deixando o que quer que fosse miserável de mim para trás.

Ele olhou para mim com um sorriso que continha algo que me lembrava orgulho. Ofereceu a jaqueta extra que tinha para mim, e um capacete também.

–Sabia que ia esquecer de por uma blusa. – disse com a voz suave. Sorri abertamente para ele.

–O quanto ouviu? – perguntei, então ele ficou sério, mas sem deixar de me encarar com olhos doces.

Tudo. – admitiu. Dei de ombros. Ele fez igual.

–Posso conhecer sua casa, hoje? – pedi. Então ele deu aquele sorriso torto que eu adorava, depositando um beijo no meu rosto. Percebi que olhava para um ponto atrás da gente, e que respondeu numa voz um pouco mais alta do que precisava.

–Claro que pode conhecer minha casa. Mas acho sua cama muito mais confortável. – dei uma risada baixa.

Passei a jaqueta pelos ombros, deixando com que ele arrumasse o capacete em mim, soltando meu cabelo antes. Sorri para ele antes de subir na moto.

Ele arrancou com a moto, fazendo barulho e consegui sentir que nós dois ríamos. Dessa vez eu cedi e abracei o corpo dele inteiro, sentindo ele responder ao meu toque.

Era isso que eu queria.

Liberdade.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Aeee!
Espero que tenham gostado!
Não deixem de dividir um amor, uma opinião ou erros de digitação!
Um abraço!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Tempo que Leva" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.