Pelos Olhos do Gavião escrita por Mayor Hundred


Capítulo 2
Caro Vapor




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/583656/chapter/2

— Clint? CLINT? — Natasha gritava no ponto eletrônico ao seu ouvido. Incomodava, mas nada era comparável a dor que sentia. Como tinha errado aquele salto?

— Ai. Estou bem, continuem sem mim — resmungou, meio gemendo de dor. Levantou-se devagar e se encostou na parede por um segundo, respirando fundo. Mantenha a dor longe, Clint, você é um maldito Vingador.

Mancou até a saída do lugar e teve que usar uma flecha explosiva na fechadura. Podia arrombá-la sem problemas, mas não tinha paciência e nem disposição física. Quando caminhou para fora daquela instalação de saúde abandonada, achou irônico notar que deveria receber cuidados médicos.

O lugar era quase um cenário de terror, pôsteres de saúde velhos grampeados com rostos sorridentes, cadeiras de rodas caídas, agulhas e macas desgastadas jogadas sem cuidados. Caminhou até o pátio desolado, que já crescia um pouco de vegetação entre o concreto, e encontrou alguém caído. Chutou-o da maneira mais sutil que o gesto permitia, tentando despertá-lo.

— Por favor, não esteja morto. — Não queria mais uma má notícia, mas sequer poderia imaginar que veria aquele rosto.

Parecia estar lá nos seus quarenta e poucos, mas Clint lembrava ser um ou dois anos mais velho que ele. Estava sujo, sem camisa, descalço e com os olhos vermelhos. As feridas em seu braço eram testemunhas chorosas de tentativas de fuga para uma realidade artificial. Demorou algum tempo para que o homem deitado reconhecesse o Arqueiro.

— Clint? Que merda você tá fazendo aqui? — A voz rouca provocada pelo despertar não era nada parecida com o que lembrava, mas aquilo era só mais uma prova que aquele homem era apenas um fantasma daquele que conheceu.

— Jesse. Faz tanto tempo. — Não tempo. Uma vida.

— Eu te vi na televisão um dia desses. Falei pra todo mundo, “olhem lá, é o velho Clint”. Você é um Vingador agora, não é? Punho de Ferro. — Por que sempre me confundem com o Punho de Ferro?, pensou. Foi obrigado a mostrar um meio sorriso ao velho amigo.

— Gavião Arqueiro, cara. — Estendeu o braço em auxílio, mas parecia que Jesse não queria ou simplesmente não estava disposto a levantar. Observou-o com curiosidade.

— Tá muito frio — comentou Jesse, abraçando a si mesmo, numa tentativa de conseguir algum calor. Clint sentiu-se mal por estar vestindo aquele estúpido uniforme. Correr, saltar sobre prédios e depois cair não lhe dava espaço para sentir frio, mas gostaria de oferecer uma peça de roupa para o amigo.

— O que você tava fazendo aqui? — Em resposta, recebeu um longo tempo de silêncio a sós com os olhos vermelhos de Jesse. Faziam um pedido mudo por socorro. Ele abriu a boca uma ou duas vezes, mas não emitiu som algum, sempre desistia da resposta que ia dar.

— Tentando fugir, irmão. — Imediatamente Barton pensou que era um problema com a polícia, algo que ele mesmo já havia tido, mas não demorou muito para perceber que não se tratava disso. — Ser beijado por Deus. — Mostrou o braço cheio de furos para ilustrar. — Tentando encontrar amor próprio. Só um pouco. Só por uma noite.

O Gavião sentiu uma lágrima clamar por uma dança, e teve que ficar parado, em completo silêncio, e até fechar os olhos por um segundo ou dois, para não deixá-la sair. Doía ver um amigo daquele jeito.

— Eu sinto muito, J. — Abaixou-se, mas Jesse se afastou quando ele tentou o tocar. Não era medo, ou mesmo um reflexo. Só vergonha.

— Clint, chega. Eu sei. Você é meu parceiro, quantas carteiras a gente já bateu por aí? — Mostrou um sorriso de soslaio que não soou nem um pouco verdadeiro. — Só fez escolhas melhores que as minhas.

— Pára com isso, cara. Eu tenho dinheiro agora. Posso te ajudar. — Levantou o dedo, mas não era o médio. Mostrava o comprometimento que havia feito. — Olha aqui, eu me casei. Bobbi vai te adorar. — Não era bem verdade, mas o que importava? Não poderia simplesmente deixar um amigo ali, no fundo do poço.

— Você não tá entendendo, Barton. — Jesse finalmente se levantou, e sorriu. Desta vez um sorriso verdadeiro, mas que mostrava mais tristeza do que qualquer outra coisa. — Eu não quero melhorar.

Novamente vencido pelo pior inimigo da humanidade. Ela mesma. Clint tinha uma mira perfeita, as habilidades físicas de um atleta em seu auge, a velocidade de reação de uma bala e mesmo assim não era o mais poderoso dos super heróis. Hulk poderia terraplanar um estado e aguentar a explosão de uma bomba atômica. Thor era um deus nórdico. Capitão América era uma lenda viva. Entretanto, nenhum deles, e nem todos juntos, podiam salvar o mundo.

Como equipe, e solitariamente, poderiam derrotar super vilões. Poderiam vencer o crime. Mas nunca poderiam fazer com que as crianças deixem de passar frio. Que as pessoas não morram mais de fome. Nunca iriam impedir maridos que batem em esposas. Viciados que se perdem em ilusões.

E, ora, como poderiam? Apesar dos pesares, eram todos, sobretudo, humanos. Por mais que não gostassem de admitir. Mesmo os que não eram daquele planeta, ou mesmo daquela dimensão. Sofriam das mesmas imperfeições.

— Jesse, por favor. Me deixe ajudar. — Clint não se lembrava da última vez que implorou. Implorar nunca foi o seu estilo. Seu estilo era fingir que não ligava e fazer piadas. Mas salvar Jesse era mais do que salvar um amigo. Era manter uma parte de si.

— Depois que você foi embora, eu não tinha mais quem me protegesse, não tinha quem pensasse. Você era o cérebro e os músculos da dupla. — Pela primeira vez então, tocou-o no ombro e sentiu o Arqueiro quase desmontar com o peso. — Não é sua culpa. É minha. Você não sabe das coisas que eu tive que fazer, às vezes deixar ser espancado por um, só para não ser morto pelo outro. Coisas muito piores. Coisas que eu não posso esquecer, não importa quanta química esteja no meu corpo. Não importa quanta terapia eu faça, quantas vezes eu reze ou confesse. Eu não quero ser salvo. Estou além de qualquer salvação.

Clinton não foi capaz de segurar aquela lágrima solitária. Era uma atitude completamente racional. Quando o dano é muito grande, destrói-se por completo e substitui-se ao invés de perder tempo consertando. Contudo, como poderia ter tanto pragmatismo quando se tratava de uma vida?

— Quando eu era pequeno, minha avó me dizia que a gente precisava morrer feliz. Ou ao menos tentar. Que no último suspiro, tínhamos que nos livrar de tudo o que nos prende e encontrar felicidade. Porque a última sensação se transforma num espiral infinito que a gente vai viver depois da morte. — Por alguma razão, Jesse recitou tudo aquilo em um tom tão calmo que era quase mórbido.

Barton não sabia como responder e não conseguia encará-lo. Tiveram algum tempo para apreciar o silêncio e a beleza da desolação que aquele lugar exibia.

— Clint, faça algo por mim? — questionou, quebrando o silêncio que durou por longos minutos.

— O que você quiser.

— Não vá atrás de mim — pediu, levantou-se e deu as costas.

Pensou em desconsiderar o pedido. Mas no final, o que poderia fazer? Passou cerca de meia hora ali, sentado no chão e começava a sentir o frio cortar a sua pele. Apertou o ponto de comunicação em sua orelha.

— Tasha, você conseguiu a pista sobre o Pietro? — O silêncio foi tudo o que recebeu em resposta por um bom tempo.

— Não. — Conhecia Romanoff bem o bastante para saber que estava mentindo. — Por que você ainda está nessa merda de hospital? Precisa de ajuda? — Precisava.

— Não.

O táxi lhe cobrou uma fortuna para deixá-lo em casa, mas achou que não deveria reclamar. Não depois do que passou. Cumprimentou os agentes de segurança com um aceno e entrou com rapidez. Um cheiro gostoso estava no ar. Chá. Bobbi gostava de beber chá e ler. Tinha se dedicado à literatura depois que renunciou o seu cargo na S.H.I.E.L.D e largou o traje de Harpia. Dizia estar escrevendo um livro, mas não lhe revelou nada e toda a sua tentativa de espiar era frustrada.

Estava sentada no sofá, a televisão ligada no mudo; ajudava a não se sentir tão só, ela dizia. Lia um exemplar de Lolita, o seu livro favorito, pela enésima vez. Clint sentou-se à sua frente, em silêncio e a observou. Ela ergueu os olhos por cima do livro e o encarou. Voltou para a sua leitura por alguns instantes, talvez terminando o parágrafo e então deixou-o de lado.

— O que foi? — Por mais que ele tentasse, sabia que o seu marido não fazia o tipo “forte e quieto”. Era desajeitado, aventureiro e falava coisas erradas nas horas erradas. Características que a ajudavam a amá-lo.

— Nada. — Ficou parado por alguns segundos, observando-a. Avançou devagarinho, e a abraçou. Sentiu a textura dos cabelos loiros dela em seu rosto, e o seu aroma tão particular.

Ainda havia um pouquinho do seu rosto que ele ainda não havia beijado.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!