Crônicas da Alabarda - A Primeira Ceia escrita por Gabriel Galvão


Capítulo 5
A Morte como anfíbios


Notas iniciais do capítulo

A história segue, mais mistérios são evocados e o contorno de tudo que se passa ao redor de Ava Turner começa a se apresentar. A partir daqui sou guiado apenas pelo acaso, pois não tenho um plano de como a aventura deva seguir, portanto estarei profundamente grato em receber sugestões do que devo explorar, quais personagens, que fatos, do que a história carece e por assim vai. Obrigado, de qualquer forma, por ter chegado até esse capítulo. Espero que signifique que está disposto a prosseguir mais um pouco comigo nessa saga inédita até para mim.



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Era um lugar mais antigo que a própria percepção do tempo. Não pertencia a datas ou estações do ano, por mais que pudesse ser catalogada dessa forma. Era uma cachoeira resguardada pelo segredo das trilhas não desvendadas, dos caminhos não óbvios e sem faixas de pedestre. Sua mãe conseguia transpassar aqueles obstáculos impostos pelo bom humor da natureza em desafiar os seres vivos a superarem-na. Mais que isso, lograva sucesso em seu trajeto com uma boa-aventurança digna de criaturas que transcendem a humanidade por si só.

Sim, aquela mulher era um anjo. Ava era só um anfíbio murcho, um girino descoberto quase fenecendo fora da água doce.

Essa diferença essencial na definição de espécie entre Ava e ela facilitou em primeiro momento a então criança a apreender a informação de que era adotada.

Mais um estalo fortíssimo do bastonete de metal usado para apontar milimetricamente dados nas imagens que eram projetadas sobre o fundo branco conseguiu capturar a atenção coletiva. Era um método apreciado por Abernardt. Peça com carinho e seja silenciado pela procissão de murmúrios. Bata uma vara na parede e rapidamente todos corrigem a postura na cadeira com uma velocidade talentosíssima.

Filho de húngaros naturalizados belgas, Abernardt fez parte de um carismático grupo de estudantes que comprou a ideia jovial de viajar pelo mundo conhecendo suas histórias e suas esquivanças. Isso arrecadou sua pós-graduação em História, mas infelizmente a viagem não saíra tão bem quanto poderia se esperar. A princípio a cativante e púbere ideia de partir na caçamba de caronas, sem fazer uso de grandes quantidades monetárias lhes apresentou o que de mais rico alguns países poderiam ofertar, o que só se é encontrado nas áreas mais carentes onde a especulação imobiliária ou qualquer outra justificativa sórdida ainda não haviam se apoderado da cultura íntegra e que de tão imensa era incapaz de ser comportada por prédios de vidro de última geração. Eram elefantes dourados como o broche que sempre levava em sua bolsa, eram plantas que se abriam em triângulos descobertas na Arábia. Infelizmente, eventos interromperam a idílica jornada, tragando todos para o mundo sóbrio novamente. A sequência de eventos levou Abernardt a ser professor naquela universidade meio interiorana, que até lhe agradava.

Dorothy levantou a mão.

– Professor, qual deveria ser o significado da Grã Bretanha nas guerras napoleônicas então?

– Boa pergunta, como eu disse a alguns minutos atrás, mas talvez não tenha sido claro – Não perdia a chance de deixar alguns de seus alunos encabulados com um desconforto ou outro – Para analisarmos claramente isso, precisamos pensar no processo revolucionário que revogou o status de monarquia para ambas as nações. É fácil apontar atitudes precipitadas da nação inglesa sem observar de fato a importância posterior de suas decisões quando... Senhorita Turner?

Ava não deu qualquer sinal significativo de vida.

– Senhorita Morgan, gostaria que lembrasse sua amiga de que não possuo o menor de receio de usar do meu bastão como um projétil visando à cabeça dos desavisados.

– Professor, eu não tenho muito a ver com isso – Dorothy se defendia enquanto vergastava a amiga com o dedo.

Repentinamente a loira se levantou, sacou os folhetos recebidos no início da aula e com um leve gesto para o discente, saiu da sala, espantando a todos.

– Aquilo foi um dedo do meio? – Abernardt sugeriu um riso, mas não obteve resposta.

Mesmo que tivesse saído mais cedo, como devido aos acontecimentos recentes várias aulas tiveram de ser temporariamente deslocadas, Ava vagou perdida pelo prédio de ciências até encontrar o refeitório próximo e conseguir uma xícara de chocolate quente. Sentada na cadeira, esperando ventos improváveis lhe alcançarem e darem alguma vontade de se levantar, Dorothy surgiu e se acomodou ao seu lado.

– Começa a explicar – Inquiriu.

– Que? Estou com muito sono. Sai de tarde ontem.

– Com a Lizbeth? – Fora Dorothy que apresentara as duas, então se sentia no papel de padroeira do relacionamento incipiente.

– Não, com uns caras que não via há uns meses. Precisava beber um pouco.

– Sabia que a OMS considera simplesmente beber todo fim de semana já como caráter de alcoólatra? – Dorothy Morgan era a inquestionável imperadora dos fatos ligeiramente pertinentes.

– Segundo a OMS eu estou completamente na merda pelo visto.

Dorothy ficou calada por um instante, olhou para os lados conjecturando se ficar ali seria mesmo bom para ambas. Quando a amiga lançava palavras de baixo calão, denegrindo sua elegância natural com rispidez óbvia, às coisas não estavam bem.

– Veja, eu não vou te fazer nenhuma pergunta – Falava já no meio do ato de se levantar – Mas saiba que eu estou aqui. Aquelas paradas de amiga e tudo mais. Não sei se isso tudo tem a ver com os policiais por aí, com o estresse da sua dissertação ou algo mais. Mas tenta não esquecer, o que acontece muito quando ficamos suspensas da razão devido aos sentimentos de fúria imediatos, de quem esteve contigo quando você teve problemas com seu pai.

A estocada de Ava com o olhar foi um alerta vermelho. Interrompeu-se e partiu, rememorando os dias inauditos no qual socorreu a jovem em sua casa quando conflitos paternos bateram sua porta. Lembrando-se do fascínio de promessas que aquela amizade ainda como semente prolongava com o Sol preguiçoso de verão que se demorava em ir, abanando aquela cidade que raramente conhecia algo mais quente que o morno. Nesse aspecto, Ava era vulcânica.

Um bom tempo passou até Ava admitir para si mesma, por mais que suas pernas doessem de tanto carregar peso na consciência, que os assentos metálicos não tinham qualquer atributo curativo que fosse lhe retirar do estado macambúzio de medo aflito no qual se encontram aqueles que aguardam no corredor da cadeira elétrica. Aguardava em todos os seus dias por uma nova aparição do ser encapuzado, de faixas vermelhas no pescoço de algum corpo em processo de putrefação ou mesmo das grandes massas cinzentas espectrais mascaradas que vira uma vez, comportando todas essas anormalidades no mesmo conjunto de incompreensões que a perseguiam até no sono.

Ergueu-se e olho para as pessoas ao seu redor, encarando videogames portáteis, o último videoclipe daquela cantora pop que descaradamente surrupiava a batia de um musical dos anos setenta, os inspetores fumando um péssimo cigarro que ainda compravam por hábito e vendiam para os estudantes por preços caridosos. Olhou sem ver muito longe, como se fosse uma fotografia em ambiente fechado e de pouca profundidade, ferramenta cinematográfica utilizada no intento de dar enfoque em algo. Talvez alguma expressão facial que denunciava as camadas de um seus personagens. Esses closes, porém não tinham a mesma eficiência para a retina de Ava. Não via nada que não fosse à ignorância daqueles que nunca sentiram o gosto da morte em si roçando suas papilas gustativas, a ponta da língua enojada insistindo em regurgitar tudo que estivesse podre, até o próprio sangue.

São era o sentido daquelas vidas, tão fragmentadas em casualidades temporais e momentos frugais, uma vastidão de momentos vagos e insignificantes aglutinados pela mesma ausência de contemplação dos seres humanos irrisórios. Era por essa carência de sensibilidade que tanta coisa angustiantemente colorida e perfidamente isenta de valores engrandecedores poderia ser qualificada. A mediocridade não exige muito. Ava poderia escrever nas paredes descascando-as com as próprias unhas essas perguntas que surgiam em letras garrafais, na expectativa de ao menos encontrar não uma resposta mágica, mas um interlocutor que compartilhasse de seu desespero.

Qual era o sentido da vida se não indelevelmente ser lembrado da mortalidade que vinha com ela? O que é vida sem a espera da morte?

Tal aprofundamento intelectual foi inopinadamente interrompido por uma sensação viscosa em seu braço. O deslizamento grudento, quase como óleo, do andar de um sapo. Antes sequer de gritar, ouvira muitos outros urros de espanto e asco vindo mais a frente, quando numa reprodução inacreditável de um episódio bíblico, viu-se frente a uma população invocada de sapos dando pulos e acrobacias ameaçadoras enquanto se aproximavam. Lançou o sapo em seu braço para longe, mas não soube o que fazer com a mão esquerda que agora compartilhava da viscosidade da pele do anfíbio. Antes de ser tragada pela corrida de espécie, uma mão astuta lhe agarrou pelo colarinho e sem muitas dificuldades jogou-a para dentro de uma sala de aula inutilizada.

Pelo retângulo de vidro diáfano foi possível ver os sapos prosseguindo pelo corredor. Ava estava sem reação, mas a menina que a puxou, dona de um cabelo negro oleoso todo jogado para baixo sem cuidado, mas completamente liso e vestida com um macacão jeans nada convencional e luvas amarelas fez sinal de silêncio.

– Shiu! Eles escutam o medo! – Depois de um instante no qual manteve seu olhar profundamente branco e ligeiramente psicótico sobre Ava, devorando-a, desatou em um riso cheio de sotaque – Estou brincando! Calma, eles não mordem. Sequer tem dentes – Pegou um pano úmido no bolso do macacão e limpou as partes corrompidas de Ava – Esses pequenos fugiram faz uns vinte minutos do laboratório. Hoje era dia de dissecação do pessoal novato do primeiro período na aula de anatomia. Algum desastrado besta como uma porta os deixou soltos. Tão até dizendo que na verdade ele foi pago por alguém lá, um vegetariano de estudos sociais, num protesto. Vou te dizer que eu até concordo.

A fala da menina, tão baixinha que até sugeria uma idade mai singela do que deveria ter de fato, era tão carregada de sotaque que desarmou Ava completamente. Tentando retornar a sua compostura rotineira levantou-se ajeitando a saia.

– Somos agora prisioneiras dessa sala enquanto nos protegemos de uma reprodução moderna de uma praga do Egito.

– Somos sim – A menina se aproximou, vergando o corpo pra frente em gesticulações que realmente lembravam as de um sapo – Mas o pessoal já está resolvendo tudo. Ajudei a chamar o controle de animais – Foi lentamente se aproximando do rosto de Ava, mas a mulher fez-se de sonsa quanto a isso.

– O que estava fazendo nessa sala, sozinha? E com luvas de borracha?

– As luvas eu só pus agora a pouco para ajudar, mas não gastei muito tempo nisso. Já foi dada uma ligação, agora vou deixar os sapos se divertirem um pouco e ouvir as pessoas gritarem de pavor.

Ava estava envergonhada da forma selvagem e idiota com a qual se apavorara com os sapos e jogara um para longe com a repulsa de alguém se acha mais limpo que o festival de bactérias em todo o seu tecido epitelial alega.

– Antes eu estava comendo – Apontou para uma bandeja cheia de embalagens e guardanapos que confirmavam a fala, além de acrescentar a ela a imagem de um apetite voraz. Não parava de chegar mais perto, mas Ava não queria ser rude e se jogar para trás. Não sabia como entender aquela aproximação e começara a enrubescer – É o tipo de coisa boa para se fazer sozinha, não acha? Adoro ficar sozinha – Encostou o dedo no pescoço de Ava e seguiu como uma linha horizontal pelo seu pomo de Adão quase imperceptível.

Mesmo querendo ocultar isso, alguma coisa havia impressionado súbita e completamente a baixinha. As ligeiras e pontuais mudanças em seu rosto atestam a favor dessa afirmação.

– Então é verdade. Mas por quê...? Depois de tanto tempo... – Conflitava sozinha.

Apavorada pela repentina possibilidade que a acometeu, Ava saiu correndo da sala, sem se preocupar com sapos ou quaisquer outros anfíbios menores que ela mesma. Saiu correndo e foi para embora, qualquer lugar fosse esse. Não olhou para trás.

Quem quer que fosse, havia chegado até ela. Alguma coisa macabra e fétida fazia cócegas em suas entranhas com a ponta dos dedos gélidos. Algo que ela não entendia. E se havia algo que Ava odiava era ser vítima de uma situação que não conseguia compreender.


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