Crônicas da Alabarda - A Primeira Ceia escrita por Gabriel Galvão


Capítulo 4
A Morte como uma novidade




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Os alarmes teriam tocado em 0.02 segundos após detectado qualquer movimento pelos radares de infravermelho. A mais sublime tecnologia contra furtos. Felizmente para alguns, toda a evolução tecnológica segue em duas mãos, como num espelho perfeito da biologia. Enquanto os meios de prevenção são refinados ao extremo, também os organismos que almejam a invasão irão se aprimorar continuamente, atravessando cada nova barreira instaurada com uma broca nova. Um progresso não ocorria sem estar inalienavelmente associado ao outro.

Portanto, da mesma forma que os sistemas de alarme tinham se tornado mais sofisticados, também se tornaram os equipamentos que tramam inutilizar os mesmos alarmes. Na hora que Joseph Grandir saiu pelo basculante do banheiro de uma lanchonete que ficava ao lado do banco econômico de conveniências onde um caixa eletrônico estava aberto e vazio, o disparo em vibrações gritantes estava ocorrendo. Não sabendo como desestabilizar o sistema que projetava os infravermelhos, Joseph usou o artifício de atacar o projetor de som do próprio alarme, tornando-o inaudível. Ainda assim, tinha consciência de que guardas especializados do banco seriam alertados por aparelhos pessoais sobre o roubo, no entanto já seria tarde demais para qualquer atitude.

Atravessando um beco próximo e jogando a bolsa cilíndrica com o material roubado para o outro lado, estudou o ambiente. Se lançou com uma perna para uma lata de lixo de plástico pegando impulso para segurar-se na escadaria suspensa de uma saída de incêndio. Desafortunadamente, a escadaria estava despregada de seu suporte e caiu junto com ele no chão, produzindo um estardalhaço sonoro que seria tão preocupante quanto qualquer apito de furto.

Sem tempo disponível para maiores devaneios, pegou a escada já solta pelo chão e apoiou no muro, escalando-a se jogando para o outro lado, mas rapidamente fora acometido pelo espanto. A bolsa sumira. Desesperado pelo roubo de seu roubo olhou para os lados em frenesi, quando encontrou na adrenalina uma figura que reconheceu como feminina através das curvas da silhueta e do rabo de cavalo, carregando sua bolsa. O mesmo indivíduo atraiu-o com um movimento de dedos para si, adentrando através de uma rua num largo.

Para Joseph, gatuno de nível médio que recebia dinheiro para construir metade dos principais equipamentos com os quais trabalhava de suborno envolvendo policiais da província, fazer barulho num espaço que o deixava tão visível e vulnerável quanto um largo era absolutamente perigoso. Planejava transcorrer a transação que fosse exigida no maior sigilo.

Percorreu com um passo furtivo desnecessário a frágil distância que o punha longe da garota com sua bolsa. Foi chegando perto, a parca luz das lâmpadas da cidade lhe apresentando a vermelhidão carmesim de toda aquela mulher, queimando com lubricidade, quase o fogo do horror em forma de gente.

– Acho que isso é seu – Segurava a bolsa com o dedo indicador para cima – Se interessa?

– Por favor, me devolva – Joseph fora sugestivamente atropelado pela visão libidinosa daquela mulher ardente, a presença cálida lhe derretendo os lábios com os quais poderia falar – É importante para mim.

– Para que? Salvar sua irmã doente? – A mulher sugeriu, palavras que interromperam qualquer pensamento de Joseph – Ao menos é isso que você alega para os policiais quando é preso, estou certa? Até falsificou os documentos de uma menina em coma qualquer num hospital público.

– Ela não é uma menina qualquer, é minha irmã! – Joseph argumentou precipitado, atormentado pelas ideias de como ela poderia ter aquela informação.

– Só porque você conhecia o irmão dela que morreu? Era seu amigo? – A mulher deixou a bolsa cair e começou a se aproximar com uma fluidez nos passos da mais digna imperatriz. A nobreza de seu caminhar tornava qualquer distância miserável – Não era um dos gatunos cheios de cocaína do seu grupo, era? – O silêncio apavorado de Joseph foi a resposta – Oh, deus! Pobre garotinha! – Pôs a mão sobre a têmpora e lamentou de forma afetada – Não tem nem mesmo o verdadeiro, nem o dissimulado que usou de sua imagem.

Joseph caiu no chão, o sentimento de autopreservação estourando em si, mas retraído por um pavor tão primordial e imediato que o frenesi de seu corpo só fez desmontá-lo em urina.

– Mortais são curiosos. Vivem a ignorância mais plena e inquestionável de todas, mas possuem um instinto tão maduro que reconhecem a morte seja qual forma ela tome – Tudo foi proclamado com o mais voluptuoso sorriso vindo de uma mulher que orava por seu orgasmo, seu prazer infinito e que não lhe podia ser negado. Esticou aos mãos ao céu dando forma a suas preces e obteve numa rajada de luz vermelha uma espada de bainha coberta por uma capa de couro de crocodilo e uma lâmina com uma faixa enorme de rubi lhe decorando o gume – Deixo em você os dizeres do adeus, Joseph Grandir, vinte e nove anos, um metro e oitenta e quatro, pisciano. Acompanhe nesta longa jornada que vem a seguir seus pecados e se redima com aqueles com os quais você errou. Praticamente todos em sua vida, não? – Rindo, a mulher desferiu o golpe, rasgando um espectro vermelho sobre a noite profunda dos ingleses.

Ava acordou em passos. Amofinada pelo seu encontro anterior com o delegado Instance, sentia muitos receios respaldados por uma perceptível curiosidade. Sabia que algo estava acontecendo, os moinhos de um mistério estraçalhando cascalhos e retendo águas. Saiu sem os preparos costumeiros de aparência os quais fazia mais por costume que por luxúria. Como não era o dia de receber visitas de seu colega Antones, decidiu ir até a banca para averiguar o novo volume do jornal diário, esperando alguma notícia sobre o caso de sua universidade que chocara tantas pessoas por toda a cidade. Como muitos dos casos que diziam respeito ao Decorador de fitas vermelhas envolviam também quase-defuntos, indigentes e meliantes, a comoção causada não chegava aos pés da que se instalava no dia atual.

Comprando com uma moeda o jornal, sentou na cafeteria da esquina e pediu um pão amanteigado com cappuccino.

– Achei que ingleses só gostassem de chá e às cinco da tarde – Uma voz rouca projetou tais palavras.

Lizbeth apareceu por trás de Ava com seu jeito desembaraçado de se fazer presente. Primeiro de forma jocosa brincou de estar em efusão por ter recebido um bolo de Ava. A jovem Turner ficou tão abismada pela informação, afinal ela mesma sequer lembrava-se do compromisso, que se deteve a implorar perdão. Outras piadas vieram sobre hábitos dos ingleses (Ava) e dos italianos (Lizbeth). Novos comentários, muito convenientes, foram pululando sobre os casos recentes de homicídio, Lizbeth aproveitando para indagar sobre o prosseguimento de sua dissertação e se todos esses ocorridos lhe haviam beneficiado de alguma forma. Sorrateiramente foi sentando no banco ao lado, se tornando a companhia da amiga.

– Não tanto, entende? Eu não acho de verdade que tudo isso esteja relacionado. Até vi na internet uma teoria interessante de um estudioso que acredita que na verdade as fitas vermelhas sejam obra de um obsecado por cadáveres que esteja procurando casos de homicídio ou mesmo de...

Ava foi estacionada pelos próprios devaneios que nasciam enquanto lançava um discurso genérico. Abriu o jornal e descobriu a notícia anunciada na primeira capa sobre como o garoto loiro de gorro, um tal William Troy, foi encontrado morto em um fliperama onde parecia estar se escondendo devido a amizades com os filhos da família que administrava o espaço. O corpo estava jogado sobre uma piscina de bolinhas, pintando todas de vermelho com seu sangue. Na fotografia aterrorizante que o editor decidira mostrar por algum momento de delírio, acreditando que a opinião das comissões de censura governamentais eram irrelevantes, um detalhe específico derrubara tudo que Ava acreditava até o momento.

Anteriormente, bateria o pé para qualquer psicólogo afirmando que todo o evento que se desdobrara naquele dia no matagal fora obra de um lunático psicótico com uma foice, se aproveitando de qualquer fantasia carnavalesca. Também afirmaria com resolução que o mesmo deixou-a viver, e que devido a isso não tinha envolvimento com a morte do rapaz. Mas agora seu raciocínio já enamorava outras lógicas, muito menos racionais ou explicáveis. Porém, garantia com veemência para si de que no que quer que tivesse se envolvido por acidente, era algo de semblante muito maior do que poderia imaginar, e envolvia um grupo muito maior de pessoas. Quem sabe uma organização. Até agora era a teoria que mais lhe agradava e que mais contemplava o fato de mortes tão diferentes carregarem a mesma faixa vermelha delineada pela circunferência do pescoço, como um canto trancafiado na garganta.

Olhou novamente para a faixa vermelha no pescoço de William Troy, absolutamente diferente do estado no qual Chistovan Dehouse fora encontrado. Um estado no qual ela poderia estar se não tomasse cuidado a partir de agora.

Despediu-se de Lizbeth com um beijo apressado nos cachos morenos e foi até uma loja de posto de gasolina.

Comprou um spray de pimenta.


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