Crônicas da Alabarda - A Primeira Ceia escrita por Gabriel Galvão


Capítulo 6
A Morte como uma amiga




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Teve de pensar com exatidão. Não sabia quais eram as aulas da garota, então precisou se armar de um bom planejamento para em momento algum ficar sozinha nos desencontros entre as aulas. Em Ciências Sociais, ficou o tempo toda acompanhada de seu amigo Arturo, que por uma raridade, estava presente naquele dia.

– O que houve? Você está pálida e tremendo. Nada a ver com seu jeito de sempre.

– Acho que estou resfriada - Repetiu mais umas três vezes essa resposta pronta durante o resto do dia. O que exponenciava sua preocupação era estar num prédio da instituição que conhecia pouco, mas conseguiu se virar sem maiores atribulações.

Não se desprendeu de Arturo e posteriormente de Dorothy em momento algum, acompanhando-os no ônibus. Se desfazendo sem qualquer pena da pose contemplativa e sútil que sempre expunha, Ava chamava muita atenção. Aproveitou a jornada longa que o ônibus faria até deixá-la em casa e começou a traçar planos, esquemas, estratégias.

Era isso ou morrer. Apertava entre os dedos o spray de pimenta que carregava na bolsa desde que lera a notícia no jornal que a levou a considerar a possibilidade de ela ser alvo de alguém ou algo. Esse raciocínio porém qualificava outros questionamentos mais tenebrosos que Ava sequer tinha coragem de elaborar. Como por exemplo, e isso a acometeu momentaneamente na aula de Literatura: "Se tudo isso está acontecendo, a pessoa da foice não era um mero lunático. Era qualquer coisa mais".

Saltando na rodoviária, pegou outro ônibus em dois pulos e remexeu seus papéis. Tinha feito anotações dispersas sobre os eventos recentes. Antes isso era uma estratégia para os estudos, mas agora era um mecanismo para a sobrevivência. Nunca se perca dos detalhes, essa foi a lição mais imprescindível que a jovem loira descobriu em seus períodos de direito.

– Por que, por que, por que - Murmurou inconscientemente quando Arturo desceu, os olhos apertados demonstrando a preocupação que sentia por ela (a barba mal feita e os alargadores denunciando também que não era um homem de muita preocupação, seja estética ou pessoal).

– Talvez você devesse tentar trancar algumas aulas. Você decidiu fazer todas que podia esse período e isto está acabando contigo - Foi a dica que soube dar perante aquela figura abatida no corpo de sua amiga.

– Obrigada - Ava mordeu os lábios e se segurou para que as lágrimas de cansaço e medo só viessem após ele estar fora de vista. Chorou silenciosamente, o corpo trêmulo, distorcido, pés inquietos e um suor mais gélido que o clima daquela cidade inglesa.

O alto-falante do veículo apitou enquanto uma mensagem era pronunciada pelo motorista logo a frente: Senhores passageiros, devido a uma recente obra na estrada feita de última hora, vamos precisar fazer uma pequena curva pela segunda avenida após o túnel. Lamentamos o equívoco.

O plural era curioso em tal situação. A única pessoa que poderia se lamentar por isso naquela circunstância era o motorista, mais ninguém. O cobrador estava num sono profundo demais para qualquer reclamação. Mas hoje, coincidentemente, foi uma utilização sortuda. Ava lamentava tanto quanto os deuses poderiam ao ver as desgraças humanas, os veados ao verem seus filhotes devorados por leões de porte médio, dos quais seria possível escapar. Era a lamentação inerente do ser ao se deparar com uma situação sem solução, sem volta no tempo. Desespero. Temor.

O ônibus poderia deixá-la logo na porta de casa se tivesse prosseguido pela rua do túnel. Não o fazendo, sua única opção era saltar na praça a três quadras da vila que morava. Fazendo isso, seria simples sair correndo e chegar em casa. Lá seria seguro, com certeza. Deixaria todas as luzes acessas.

Infelizmente, a baixinha, com luvas de borracha e macacão, cabelos negros lambidos e olhos penetrantes como os de uma besta já a esperava no ponto de ônibus.

O Sol já se punha, mas não por completo, conferindo uma coloração macambúzia de violeta ao céu. Enquanto o firmamento se transformava devastadoramente rápido, Ava e Margô estavam sentadas em dois banquinhos da praça, jogando seus corpos de um lado para o outro.

– Então, como me achou? - Ava perguntou, curiosa e ainda claudicante.

– Peguei o mesmo ônibus que você ontem. Descobri onde você morava. Deduzi que após fugir de mim daquele jeito iria se preparar para sair no primeiro auto-móvel que te aparecesse pela frente. Quero dizer, duvido que você se interessasse em seguir pelo bosque tão cedo.

– Você me seguiu? E que sorte que você deu de ter uma obra na estrada, não? - Ava falou num tom que não sugerisse nada, mas sabia que Margô Assamble tinha dedo naquilo. Sua perseguição não era tão simplória como seria a de humanos normais - Acho que me prometeu dar algumas explicações sobre o que está ocorrendo comigo, Margô. Desculpa a cobrança, mas eu preciso disso urgentemente. Ando muito apavorada com as possibilidades.

Margô encarou-a com sutileza, sondando suas reações da mesma forma que Ava era especialista em fazê-lo. Porém, o traço infantil de Margô tornava aquilo bem mais desconcertante.

A jovem demorou mais um tempo olhando para a despedida glamourosa que o Sol exibia em sua luxúria.

– A ida do Sol sempre me deixa meio boba, sabe? Uma luz tão grande, indo para debaixo da terra. As cores esmorecendo. Parece que o mundo vai acabar. Não gosto muito dessa sensação. A noite sempre me vem como um mau presságio.

– Margô, por favor - Ava tentava não se estressar, ser delicada, não tanto por medo (aquela menina não lhe inspirava qualquer medo no final das contas) quanto pelo receio de acabar não recebendo as respostas que procurava.

Suas súplicas não perpetuaram por muito tempo. Logo que o Sol foi embora de vez, uma luz foi brotando, gentil e pura de uma forma que qualquer lanterna ou aparelho eletrônico não seria capaz de reproduzir. Uma luminescência equivalente a uma estrela vinha do peito de Margô. A garota se lançou para o alto e saiu do balanço. Chegou bem perto de Ava, sem nenhuma sutileza ou vergonha, embaraçando Ava novamente.

O mais penetrante no rosto de Margô era como seus olhos grandes e imensos pareciam nunca mudar muito sua expressão. Ligeiras sugestões aqui e ali, mas nada realmente considerável. Era um rosto integralmente trancafiado. Tirou um pedaço do macacão jeans que usava e apresentou um fragmento de seus seio esquerdo, onde residia seu coração. A carne emergia vermelha como só, uma labareda incontestável de energia tão evidente que não era omitida nem pelas camadas de roupa que a cobriam.

– Você consegue ver, não consegue? - Margô perguntou e Ava concordou com a cabeça. Era possível não observar aquilo e ser completamente capturado pela singularidade da luz? - Isso fala por si só. Ava, o que estou prestes a te dizer é perigoso. Mesmo que no fundo você não estivesse envolvida, o simples fato de ser conhecedora dos fatos que posso te confidenciar a seguir já seria o suficiente para te destacar para outras pessoas que podem não ter tão amistosas quanto eu. Ciente disso, ainda quer prosseguir?

Ava montou sua pose altiva que sempre armava perante as simulações de debate que eram promovidas nas aulas de dialética. Sabia usar um discurso como ninguém, e tinha um exímio cuidado com as palavras que evocava. Era uma política nata.

– A oração "mesmo que você não estivesse envolvida" já garante que eu estou envolvida. E quanto a isso não posso escapar, imagino. Independe de qualquer decisão que eu possa vir a tomar, é preciso saber no que estou sendo inserida para poder lidar com esse futuro no qual podem me aparecer pessoas não tão amistosas. Quero saber onde me meti.

Margô, em um segundo extremamente rápido de desarmamento, olhou para o lado, apreensiva. Não queria falar aquelas coisas, não queria comprometer Ava. Mas ela sabia ainda melhor do que a loira, não havia escolha a ser feita.

– Ava, eu e você fomos convidadas pela morte a sermos suas assessoras. Não imagino como ela tenha aparecido para você. Toma uma forma diferente a cada ocasião. A questão é que antes de você, faz cem anos que ela não convoca ninguém para tal missão.

Se mantendo firme perante tal anunciação, Ava continuou:

– Essa luz no seu peito é uma marca disso?

Margô apontou para Ava com seus dedos resguardados por luvas de borracha. Ava percebeu uma luz cálida cegando sua visão para a parte debaixo do seu corpo. Uma energia azul que lutava para sair dela e ir para o mundo.

– Esse é o Estribo da Vida. É o que prende a existência de cada ser humano à terra. É algo como alma, espírito. Usamos ela como instrumento para assessorar a morte, auxiliá-la nos trampos, entende? Somos ceifadoras da morte com a missão de matar pessoas cujo tempo de vida está no fim. As coisas que você verá a partir de hoje serão amedrontadoras, horripilantes. Eu lamento muito por você ter acabado desse jeito, mas vamos dar um jeito. Vou te ensinar tudo que sei. A partir de hoje, peço do fundo do coração que me tenha como uma amiga.

Margô então jogou para Ava, que pegou no ar, a lata de spray de pimenta que em primeiro momento ela tentou usar para inutilizar os olhos gigantes da recém-amigada. A lata estava completamente amassada, praticamente inutilizada, pela força com a qual Assemble apertou no ato de desarmar Ava.

– Podemos ser amigas, sim - Ava respirou fundo, aplicando o máximo de racionalidade que podia - E eu vou aceitar sua oferta. Me ensine tudo que sabe.


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