Crônicas da Alabarda - A Primeira Ceia escrita por Gabriel Galvão


Capítulo 3
A Morte como uma suspeita




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Acordar foi como repetir o processo de morrer. Transpor todas as camadas do sono que trancafiavam Ava em seu subconsciente não fora só um suplício esforçado, mas também uma automutilação. Ao retirar a menina do território onírico onde não se fazia necessário lidar com a verdade, sua mente estaria lançando-a num novo mundo desarrazoado e inclemente.

Sua manhã ocorreu sem mais espantos além do exaspero do próprio acordar. Escovou os dentes, tomou banho, hidratou a pele com uma formosura que faria qualquer um acreditar que se ensaiava para um futuro espectador. As parcas memórias que tinha a levavam a questionar em que momento havia retornado para casa. Só lembrava imagens tênues de sua última aula sobre ética, não passando disso. Sua inquietação ia progressivamente perturbando-a mais e mais. Fez um chá de eucalipto e sentou-se no sofá recostado na janela alta. Admirou o micromundo confortável que era aquela sala deixada apenas para ela e sentiu vontade de ouvir uma música. Antes que pudesse mexer em seus aparelhos de som, no entanto, a campainha reabasteceu sua percepção da realidade, atentando para as coisas ao redor.

Antoness não ocultou o alívio ao perceber a porta se abrindo.

– Ava! Que bom ver você! – Antoness praticamente se amarrou internamente para não abraçá-la. Tentavam evitar contato físico, mesmo que não confessassem isso um para o outro, desde a última vez – Por onde esteve ontem?

– Desculpa? – A moça não teve reação outra que não erguer as sobrancelhas ao ponto delas quase levitarem. Isso amedrontou Antoness ao máximo.

– Mil perdões! Não queria ser invasivo! – Jogou o tronco para baixo numa reverência de escusa – É que é muito raro não ver você em casa de manhã.

– Antoness... – Ava massageou a têmpora, seu entendimento dos arredores se camuflando e desbotando ao mesmo tempo – Hoje é quinta, por que está aqui? – O entregador de correspondências vinha apenas na quarta e na sexta. Raramente na segunda também. Nos dias ímpares frequentava um curso de fotografia de média qualidade.

A conversa estava ligeiramente consumindo os dois e inexplicavelmente cansando-os.

– Ava, talvez tenha se confundido. Hoje é sexta.

Não ousou duvidar das palavras do colega. Adentrou com urgência na casa sem se dar a explicações com Antoness. Pegou o celular dentro de sua bolsa e analisou o dia que marcava.

18 de Maio. Clima ameno. Sexta-Feira. 10h21min.

Cambaleando, a mulher se aproximou do amigo e lhe entregou as moedas esperadas pelo serviço.

– Ava, você definitivamente não está bem. Por acaso saiu ontem? Está de ressaca? Se quiser, eu posso preparar um suco de abacate que acaba com qualquer resquício de álcool ou...

– Antoness, você está trabalhando. Obrigado, mas não precisa – Ava pegou o jornal, tentando aos tropeços e maneios voltar ao seu estado natural de suntuosidade mística. Mesmo essa tentativa não teve sequer a oportunidade de se estabilizar. A manchete do periódico em suas mãos iniciou um sutil, mas evidente rasgo em seu equilíbrio emocional. Escorregou pela lateral da porta e caiu de joelhos na soleira.

Antoness ofereceu apoio espantado pela queda, quando viu o principal evento noticiado e reconheceu o motivo da instabilidade da Ava.

– Você não ficou sabendo? Foi algo inesperado. Parece uma coisa de romance policial. Algo que surgiria num livro do Sidney Sheldon ou numa aventura do Sherlock Homes. Pelo fato de ter sido nos arredores da sua universidade, isso deve causar um desconforto que eu não posso sequer imaginar. Um afogamento tão cruel...

Ava escutou as palavras do amigo com parcimônia, e folheou o jornal. Nas palavras definitivas que escapavam dos engodos de uma coluna extensa utilizando de falas falsamente sensibilizadas – a jovem aprendeu a observar um texto pulando essas tentativas de comprar a comoção do leitor e envolvê-lo em camadas de sentimentos arbitrariamente selecionados pelo redator – pode entender o que as investigações convocadas nas últimas vinte e quatro horas haviam inculcado. O jovem Christovan Dehouse, cor de pele mestiça, um metro e setenta e nove, cerca de setenta e oito quilos, piercing no lábio, natural de Croydon, fora assassinado por overdose de estimulantes e drogas de suspensão dos sentidos seguida de afogamento.

Nas palavras exatas, supõe-se que mesmo após o consumo das drogas – Christovan já tinha passagem na polícia por porte proibido de maconha, o que meramente lhe acarretou em serviços comunitários – o aluno da universidade não tinha alcançado óbito, mas ao ter seu corpo lançado nas águas do rio Luce nas proximidades da instituição, ficou incapacitado de reabsorver oxigênio. Alienados de suas funções, os alvéolos pulmonares entraram em delírio e o corpo perdeu todas as forças, até mesmo a necessária para se debater e sair da rasa água do rio.

Tudo confluiu para o psicológico de Ava. Cada memória, até a do som das suas gotas de suor suscitadas por um tipo inaudito e insuportável de desespero. Os falsos estudantes. O prenúncio de um ataque. Uma figura que faria insetos caírem mortos diante de sua respiração. A cruz negra que se alastrou pela jugular de Christovan.

– Meu deus! – Dorothy agarrou Ava com todas as forças, deixando os olhos frementes se desfazerem nela – Que bom que está bem! Você não apareceu ontem! Não deu notícia!

Ava tentou entrecortes explicar que havia dormido um dia inteiro, convalescença da qual nenhum chá conseguiu tirá-la. Por tal motivo não estava na aula de história dos direitos quando policiais adentraram no departamento criminal pedindo depoimentos e afirmando que um assassinato tinha se concretizado no Luce. Alguns até teriam rido pela ideia de se afogar num rio raso como o Luce, uma extensão do rio Wandle. O gracejo findaria prematuramente. O delegado responsável, senhor Instance, teve o prazer de mostrar fotografias da cena do crime, fazendo até um dos alunos vomitar. Uma pura confusão burlesca.

– Eles têm algum suspeito já? Se o rapaz estava envolvido com drogas, pode se tratar de alguma rixa entre facções - Ava calculadamente sondou as circunstâncias com aquela pergunta.

– Suposição muito épica, não? Creio que seja algo menos magnífico. Não é novidade que algumas pessoas aproveitam a profundidade do bosque para injetarem ou algo parecido, mas agora foi posto para a mídia a questão de grupos de adolescentes ociosos que perdem seu tempo por aqui.

– Adolescentes ociosos? Só falta às reportagens tornarem isso em algum mecanismo estúpido para reforçar a proposta surreal de tornar o ensino superior obrigatório a não ser em caso de apresentar algum ofício. Querem ilegalizar pessoas que não contribuam para o país com serviços que o próprio parlamento decide.

– Isso porque o conceito de “contribuição” é bem complicadinho. Não é como se a pessoa que tem um ateliê e pintasse fosse menos útil para aqueles a sua volta do que um mecânico qualquer.

Aproveitando o terreno leve que aquela discussão promoveu, Ava lançou a pergunta que queria.

– Como eu posso ver essas fotos?

Logo se arrependeu de não ter elaborado melhor a frase, pois a pergunta soara objetiva e muito suspeita. Felizmente Dorothy a conhecia bem demais, estando além de inquisições baratas.

– Ainda tem policiais pela universidade. Tem uma foto em péssima qualidade que vazou para a internet e os jornais se aproveitaram, mas as do delegado Instance são muito mais estarrecedoras.

Perscrutando uma trilha de entrevistas, Ava se direcionou até a recepcionista do departamento de direitos para descobrir onde estaria seu professor de história dos direitos, interrogado por Instance, sem revelar seus interesses. Ao encontrar o docente, indagou-o sobre o delegado com a desculpa de que alguém a havia falado para ir ter com ele já que teria percorrido a estrada do bosque até o ponto de ônibus, podendo ter visto algo.

– Você viu algo? – O professor, afiado, perguntou.

– Acho que vi uma pessoa anteontem. Não tenho certeza se foi o estudante morto.

– Ele não era estudante – Corrigiu-a.

– Certo. O indivíduo morto. Na verdade a pessoa era loira e tinha um gorro... – Lançando mão dessa pergunta, Ava poderia de quebra chegar até Instance e saber o paradeiro do segundo personagem, podendo então alcançar conclusões mais interessantes e palpáveis para ela sobre o insólito ocorrido gravado em sua mente junto a uma sensação indelével de aflição.

Ao receber aquele depoimento, Ava foi rapidamente encaminhada ao delegado que tinha provisoriamente transformado em escritório uma sala pequena no prédio da biblioteca. O tão famigerado Instance era um homem de barba rala, olhos avoados e pequenos traços amarrotados em seu paletó que denunciavam tanto o fato de ser solteiro como o fato de não parar em casa. Provavelmente usava aquela mesma roupa ontem, e no dia anterior também.

– Bom dia? – Instance falou cordial enquanto brincava com um lápis preso no espaço entre o lábio superior e o nariz.

– Caro delegado, minha estudante veio até mim acreditando que tem algumas informações convenientes.

Logo Instance se desprendeu da posição largada e se amontoou tão rápido porém com elegância sobre sua cadeira giratória que impressionou Ava.

– Qual seria o seu nome, estudante? Posso te chamar de cupom dourado? – Já vaticinava que a menina lhe traria algo bom.

O docente se retirou para lhes dar liberdade. Após falar brevemente sobre o garoto loiro, de forma a também não se entregar em demasia, Ava esperava que o delegado propusesse uma verificação das fotos especiais do corpo. No entanto, ele não fez isso. Ava teria de, na pior possibilidade, pedir por elas e fazê-lo criar novas suposições. Ou talvez estivesse simplesmente problematizando demais e ele nada duvidaria. Nada mais normal do que querer ver as fotos, não?

A previsão de Ava se concretizou e quando Instance explicou que o menino loiro e um terceiro eram os principais suspeitos, pois andavam em grupo segundo as informações dadas por parentes próximos além de estarem ambos desaparecidos, também se levantou já abrindo a porta com gentileza para a estudante. Ela não teve escolha se não ir direto ao ponto.

– Eu gostaria muito de ver as fotos do corpo.

Um brilho torpe pululou por um quarto de segundo no olhar de Instance, mas foi o suficiente para trancafiar Ava na cadeira e deixá-la tensa. Dissimulando um jeito displicente, pegou as fotos de uma gaveta trancada na escrivaninha em que seus papéis estavam espalhados e mostrou a cada uma das fotos. Os olhos derretidos ainda estavam lá e era o principal elemento que denunciava para a polícia o prospecto de um homicídio. Mas o que realmente esperava ver, não encontrou. A cruz negra, plantada na carne do sujeito pela lâmina de ébano do encapuzado macabro – do qual, pensando agora, Ava não vira o rosto – não estava ali. Era apenas um jovem de blusa regada caído sobre o leito da água, o semblante de sua morte similar a uma embalagem qualquer depositada no mato, poluindo e enojando toda a vida que atentasse para aquilo. Uma embalagem vazia que demoraria para se decompor no ambiente.


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