O pulverizar dos deuses escrita por 0 Ilimitado


Capítulo 1
O pulverizar dos deuses




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Há muito tempo descobri que o mundo não perdoa. E até deuses estão sujeitos ao sofrimento, o suor que escorreu pelas minhas entranhas, transmutando minha espinha em vidro, transformou meu instinto heroico em exílio.

Diferente de todos os seres humanos, simplesmente não peguei minha mala e saí, o martelo tão pesado como o fardo cotidiano se tornou foice em pele de carneiro quando descobri o resultado das minhas ações. Sim, eu a matei.

Heróis não falham, heróis são perfeitos. Hipocrisia! Maldita hipocrisia! Todavia, falhas custam vidas, e em uma trilha sem leis, deuses são vigaristas. Enjaulam vilões, promovem a justiça como uma velha amiga, contudo quando o tabuleiro vira o jogo, ninguém quer ser acorrentado pelas truculentas correntes da justiça.

Consequentemente, quando nasce um herói já premeditam dez vilões, desordeiros da lei.

Infelizmente, há vilões que te superaram um dia, arrancarão sua carcaça, e te farão de paspalho. A deusa dos mortos, Hela, mordaz, vil e pérfida, aliada ao meu “irmão” Loki, arquitetaram o melhor plano visto a anos.

Os mortos são fortes, conhecem o gosto que o sepulcro traz, por detrás de suas asas, há um odor putrefato que atraem serpentes, Hela montou um exército deles, armados com a sordidez.

A invasão foi implacável, asgardianos mortos pelas sarjetas, crianças e mulheres empaladas, estacas exibindo a parte mais podre e fétida que os monstros podem chegar. Os pensamentos estridentes remoeram meu cérebro, corri desolado para cima da legião de mortos, fui consumido por toda a podridão, fraco e débil, ela apareceu, com Jane Foster nos braços. Cego, decapitado pelos meus sentimentos coléricos, cercado por esqueletos imperdoáveis, armei-me do meu martelo, e através de um raio certeiro e fúnebre... Não percebi que atingi minha amada e não a deusa dos mortos.

Ajoelhado, vi-a cair como uma pena no chão esburacado, ludibriado por Loki, amaldiçoado pela eternidade. Cerrei os dentes, e por um lapso no tempo não senti mais as espadas de madeira adentrando meu corpo, por um momento desejei ser um daqueles mortos. Quando sai voando desamparado, rasgando os céus com uma rajada de fúria, cai na desgraça do meu ser, e tive certeza, que ela se foi levando consigo um pedaço de minha alma maculada.

Asgard se tornou trono dos infiéis. A solitude tornou-se flagelamento, e a visão daquela mulher diante de mim culminou no meu enlouquecimento.

Na icônica Montanha Wundagore, através da depravação daquele ambiente sagrado, acomodei-me entre as vísceras de um local não muito hospitalar para considerados heróis. O título não mais me pertencia. Até o mais alto rei é destronado um dia.

Foram três meses de perpétua angústia. Imaginei o pavor que um ser humano adquire em um corredor da morte, imutável. Flashes contínuos e desordenados passavam diante dos meus olhos, aquela seria minha pena, outorgada por todos os criminosos que pus atrás das grades que regem a humanidade.

Culpei-me amargamente, lembrei de toda a infidelidade e filhos adulterinos por Madripoor, lembrei das doses tomadas no Bar Princesa e todos os óvulos fecundados.

Não há salvação para um condenado que condenou-se.

Com mulheres encostadas no meu peito, em um passado não tão distante, rebobinei claramente as palavras saudosistas que faziam aos seus maridos, dizendo a saudade que sentiam enquanto eles se aventuravam pela Terra Selvagem em busca de honra e espólios.

Alimentei minha imaginação através de livros, envolvi todo tipo de loucura nutrindo um pouco mais a minha. Percorri a Estação de King's Cross, cruzei a Floresta Proibida e morri trancafiado na Prisão de Azkaban, esse é o poder dos livros, levar-te ao desespero que goteja de suas mãos.

Houve um dia, de perfeita agonia. Saí da montanha, e pela cratera que eu mesmo abri, observei a imensidão habitual. Pássaros gelados em sintonia com o vento, tornados ao longe onde certamente alguns poderosos testavam seus potenciais. Com uma visão objetiva e ampla enxerguei três integrantes de uma mesma família, sendo atacados, um vigarista, vestindo roupas quentes roubadas provavelmente de um integrante comum.

Por alguns segundos consegui fitar todo o maltrato, a jovem garota chorando com o depravado utilizando suas mãos para atos obscenos, o pai e a mãe jogados ao lado, desesperados, chorando, agonizados e cortantes. Omiti-me, voltei para dentro da montanha, parecia ouvir os gritos daquela menina, fechei os olhos e tentei vencer o instinto protetor, porém os apelos se intensificaram e tive que voar até lá, peguei meu martelo, e apenas com uma calça rasgada e manchada de bebida, transpareci o ar e pousei ao lado dos indefesos.

Um homem com ausência de alguns dentes, cabelo bagunçado e olhos esbugalhados, obliterados pela catarata. Abriu um sorriso de rato, posicionou-se, preparando-se para um ataque, pobre homem, não sabia que diante dele estava um deus. Um asgardiano sem fé.

Pensei em atacá-lo com o Mjölnir, mas seria irremediável, mais um vida iria embora. Soltei o martelo e com um soco preciso e atroz, que mesmo assim não o matou, derrubei-o. A família assustada, perlustrou meu corpo atlético e meus olhos vermelhos de sangue e decepção. Gritei amaldiçoado, “corram!”, não tardou muito e se perdiam no horizonte. Voltei a montanha, imaginando que aquele ato era apenas mais uma ação paliativa, no entanto, o vigor que antes me animalizava, surdia.

As semanas foram se passando, minha paciência por ficar estagnado se exauria, diante de uma fogueira efêmera, avistei meu pai, tomando forma com uma coloração amarela.

Odin, deus da sabedoria, da guerra e da morte. Não houve tempo para saudações, e ele disse rápido e ofegante, dispensando seu terno de guerra: “O palácio de Valaskjálf foi tomado, eles estão executando milhões de pessoas dia após dia, você precisa voltar, é a única salvação que nós temos... É o maior genocídio desde Nationalsozialistische...”, a transmissão durou pouco, entretanto valeu muito, minha comodidade começou a ser atormentada.

Com finalidade de espairecer, procurei um modo de entretenimento naquele pedaço esquecido da galáxia, encontrei um lago, o frio atrito e o inverno rigoroso isolou-o com uma densa camada de gelo sobre suas águas. Apenas toquei com o martelo a superfície, gradualmente rachados se tornaram voçorocas, e demonstraram o faustoso lago defronte minha personalidade, megera.

Entrei calmamente na água, nu. Os fluídos se fundiram a minha pele, meus poros se tornaram rasuras, esvaziei-me e boiei, uma criança que nunca brincou conhecendo os cafundós de um mundo aniquilador.

O degredo não foi um simples afastamento, foi a descoberta de um universo íntimo, convivi junto aos meus anseios, aos meus pensamentos mais destruidores, piores que Surtur, o deus do fogo. E confie, é bem difícil algo ser pior que um dos meus piores inimigos.

Consegui compreender que no âmago do fato o nosso maior inimigo não será o outro, mas sim nós mesmos, sabemos nossos pontos fracos, nossas debilidades e a palavra certa para nos desestruturar. Sabemos a dose certa para nos afogar.

Nem Tanarus consegue substituir a minha consciência. Nas águas pacíficas conectei-me ao criador do universo, atingi o nirvana, conheci Brahma e abracei Shiva, que destruiu meu eu interior para criar um Novo Thor. Sussurraram em meus ouvidos: “Você é Indra”, no início não entendi o que queria dizer, contudo tinha certeza que eu era um novo homem, e que o meu erro se tornou fortaleza.

Através da visão cósmica, escrutinei a tênue linha do universo, captei que todas as religiões, doutrinas, culturas, estão interligadas, e o que diferencia a visão de cada um é a perspectiva e as tendências. Minha tendência a autodestruição levou a minha cegueira, e para arrancar os tampões, soube que devia voltar, treinar-me e estar pronto para vencer a essência do mal. A ignorância.

Foi um mês de treino e meditação, renovei-me. Aprendi a controlar o meu corpo, e desloquei minha alma, aprendendo os verdadeiros valores de um deus. Varri as bibliotecas colossais. Sátira X do poeta romano Juvenal. Estendi no céu azul esplendor a minha filosofia de vida: “Mens sana in corpore sano”, "uma mente sã em um corpo são”.

Quanto te jogam aos lobos, volte liderando a matilha, não importa quem são, podem ser os seus pensamentos, seus maiores vilões, a verdadeira lição é transformar obstáculos e empecilhos em valores motrizes, um verídico combustível.

Nos dias desterrado, não posso dizer que alcancei o perdão, todavia compreendi que usaram do que guardavam em seus corações, e eu usei o que guardava no meu, posto em cheque, naqueles dias conturbados, não me diferenciava muito dos milenares monstros.

Aprendi novos raios, domei nuvens, conheci tornados e engoli ciclones. Na noite congelante corri pelos ares, queimei meus pés com o gelo necromante. No dia nublado aprendi métodos de luta, rodei o Mjölnir e diverti-me fazendo-o de bumerangue. O dia do juízo final se aproximava, e eu sabia que não bastaria apenas perseverança, seria necessário transcender, e aos poucos comecei a dominar essa habilidade. Transcender o próprio cerne.

Antes de abandonar minha antiga morada e voltar para o meu reino, ajoelhei-me, humilhando-me, fechei os olhos e elevei uma oração. “Jane Foster, estou voltando por você”.

Queria chorar, uma sagrada bênção descia sobre mim, pedindo para que me levantasse, dizendo: “Vá, meu filho”, naquele momento soube que meu pai havia acabado de ser executado. Não enchi-me de fúria, sabia no que aquilo resultaria, apenas levantei, transbordei-me de astúcia e voei, voei para longe, buscando o antigo templo que agora hibernava na escuridão de meu irmão e sua dama da morte. Estava disposto a vencer.

Afinal, nenhum herói pode abandonar seu posto, por mais difícil que o tempo se apresente.


FIM
25/11/14


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