Desalmados escrita por Pedro Couto


Capítulo 4
Capítulo 4




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A noite foi longa para Túlio e Daniele. Do lado de fora da casa não foi difícil ouvir constantemente o barulho de passos proveniente de seres diversos, desde animais comuns até o de pessoas, talvez zumbis, talvez não. O som do assoalho se dobrando para acomodar o peso de algo sobre ele era um rangido característico de madeira sem apoio por baixo, e a noite foi cercada desses barulhos que rodearam a mente de ambos dentro do buraco.

Túlio estava no fundo do buraco, literalmente, em qualquer lugar onde colocasse os dedos sentia algo úmido, como se a terra estivesse sendo infiltrada por água, depois de muito tempo, quando conseguiu adormecer, seus sonhos foram corroídos por pesadelos. A fina membrana que bloqueava o bom do ruim rompeu-se, dando passagem à sonhos e pensamentos que ele desejaria nunca ter tido. Em um destes, viu-se acordando, o sol batia em seu rosto forte e pouco depois as tábuas que protegiam-lhe dentro do buraco foram sendo retiradas, e logo ele pensou que seria Cortez a fazê-lo, no entanto, o que ele viu foi na verdade uma grupo de zumbis enfurecidos, que rapidamente arrancaram-o de dentro do buraco e começaram a dilacerá-lo vivo, sem chances de se defender. No meio deste grupo ele viu Cortez e Daniele, zumbificados, seus olhos leitosos e sem vida, porém, enfurecidos, sedentos... Famintos. Quando o último suspiro de vida escapava de sua garganta, ele acordava, assustado e logo voltava à dormir.

Daniele também foi envolvida com imagens doentias e corrompidas, sua mente criava jogos sádicos que nem mesmo ela reconhecia. Em sua mente Cortez aproximava-se de si, eles estavam em um local sem muita visibilidade, ela não prestou atenção no cenário, apenas no olhar de Cortez. Ele era vivido como era no tempo do colégio, sua boca aproximava-se da dele até que as duas encontravam-se, num beijo apaixonado, no entanto, depois de alguns instantes ele desaparecia, como se seu corpo fosse feito de areia e fosse brutalmente soprado. Ela era deixada sozinha naquele cenário envolto em neblina, e então ao seu redor surgiam olhos, ela era cercada e então as silhuetas dos olhos ganhavam corpos até tornarem-se cadáveres ambulantes que iam em sua direção, ela tentava se defender, mas no fim sucumbia contra a horda.

O sol erguia-se lentamente, iluminando o interior da casa e embrenhando-se no meio das frestas das tábuas do assoalho, chegando até Túlio e Daniele. Seus rostos iluminados pelo sol nascente eram então despertados, mas a partir dali suas consciências tornariam-se ativas e questões rondariam a mente de ambos. Será que Cortez estava vivo? Se não estivesse, como sairiam dali? Estavam presos dentro daquele buraco e apenas alguém do lado de fora poderia retirá-los. Durante à noite, será que ele não foi levado ou mesmo comido vivo pelos apodrecidos?

No primeiro andar, o rosto de Cortez se mexia quanto mais a luz do sol queimava seu rosto. Pouco tempo demorou para que acordasse. Abriu os olhos, olhou ao redor e viu os restos de uma guerra há pouco tempo travada entre ele e a morte. Suas roupas estavam totalmente sujas, embebidas de sangue e seu rosto estava seco, o sangue que outrora manchou o seu rosto, agora mais parecia uma tatuagem tribal, manchando seu rosto. Fez esforço para levantar-se, ele havia machucado a perna esquerda há alguns dias atrás e ainda sentia as dores. Suas pernas bambas, seus braços sem força, seu corpo dolorido, sua visão embaçada... A luz chamou-lhe à atenção, levantou-se e encostou-se na borda da janela, apreciando a vista e observando que, apesar de tudo que ocorrera ali naquela madrugada não havia atingido em nada a mãe natureza... Forte e escultural como sempre, nada a afetava. Nem mesmo eles.

Cortez olhou com o rabo do olho para os corpos atrás de si, o odor também chamava a sua atenção, mas o que lhe fez pensar mais foi o fato de que no começo de tudo essas pessoas lutaram tanto quanto ele. Talvez não tanto quanto ele, mas lutaram mesmo assim. Eles tentaram, e saber que todas as tentativas foram em vão e que agora eles estavam definitivamente mortos preocupava Cortez. As mãos dele estavam manchadas com o sangue dos infectados, pessoas inocentes que outrora foram pessoas comuns. Médicos, advogados, comerciantes, pedreiros, enfermeiros, engenheiros, vagabundos... O que quer que fossem, eram pessoas, vivas. Mas agora... Agora estavam mortas. Mortas de verdade. Se um dia a praga fosse contida, se ele estivesse vivo junto com Daniele e Túlio até lá, o que seriam dos três? Será que os humanos conseguiriam um dia restabelecer o padrão de vida que tinham antes da pandemia? Perturbador, alarmante.

Depois de alguns minutos pensando e observando o horizonte, Cortez lembrou-se de que tinha trabalho a fazer. Túlio e Daniele ainda estavam debaixo do buraco e precisavam ser resgatados. Rapidamente atravessou o monte de corpos no chão e desceu as escadas. O som dos passos alertou os dois, fazendo-os ficarem em completo silêncio. Cortez pegou uma das pás e começou a retirar os pregos das tábuas.

– Tem alguém aí!? - gritaram - Cortez?
– Sou eu, calma. - disse.

Seus braços latejavam, seus músculos faziam movimentos involuntários, sua perna esquerda ameaçava fraquejar, mas a todo instante ele repetia para si próprio: "Vamos lá, vamos!". Demorou alguns instantes para que pudesse retirar os pregos das tábuas e quando começou a retirar ambas, começou a ver o rosto de Daniele, e então viu o de Túlio. Daniele estava com o rosto sujo de terra, mas nada que tirasse a beleza de seu sorriso e de seu olhar. Ele olhou para ela com ternura e amor, e ela retribuiu. Puxou-a com rapidez para fora do buraco e fez o mesmo com Túlio, levantando-o rapidamente. Abraçou-o, como se não o visse há muito tempo.

– Túlio, meu amigo... - seu rosto lacrimejava aos poucos. - Pensei que não veria mais você.
– Ué, pensa que vai se livrar fácil assim de mim? Tolinho... - respondeu Túlio rindo.

O olhar de Cortez então virou-se para Daniele, ele não teve tempo de formular nenhuma frase, nem mesmo um cumprimento, o máximo que conseguiu fazer foi puxá-la para próximo de si, colando o corpo dos dois, olhou para seus olhos por alguns instantes e seu rosto começou a aproximar-se do dela até que seus lábios uniram-se, beijando-se. Os dois trocaram carinhos como um casal apaixonado de um filme romântico, liberando uma paixão reprimida por anos de sofrimento e angústia, tanto antes como depois do apocalipse.

– Cortez... - disse Daniele, deixando escorrer uma lágrima de seus olhos.
– Não chore... Sobre o que eu disse noite passada, eu... Eu não queria dizer aquilo, eu pensei que... Me desculpe. - e baixou o rosto.
– Você me ama? - disse ela, levantando o seu rosto cabisbaixo.
– E-Eu... - esboçou um sorriso. - Eu sempre amei você.

Os dois beijaram-se novamente, firmando a união que possuíam ali.

– Parabéns! - aplaudiu, Túlio. - Finalmente os dois pombinhos se declararam.

Os dois, abraçados olharam para Túlio, sorrindo.

– Muito bem, não temos tempo a perder. Precisamos sair daqui, temos que encontrar um lugar melhor e precisamos de mantimentos, armas melhores, enfim... Precisamos de tudo. - disse Cortez.
– É verdade. Não vamos conseguir ficar aqui, nem que limpássemos e fortificássemos o lugar ainda teríamos problemas com as hordas de zumbis que surgem todas as noites. - respondeu Túlio.
– Então para onde vamos? Não me digam que estão pensando em sair por aí com o pouco que temos e andar pela estrada procurando um abrigo que nem sequer sabemos se vamos encontrar? - retrucou Daniele. Ela olhou para os dois e percebeu que eles realmente pensavam em fazer isso. - Vocês estão ficando doidos! Malucos! Perderam o juízo! Não é possível que queiram mesmo fazer isso...
– Entendo sua preocupação, mas, se ficarmos aqui iremos sofrer a mesma coisa que acabamos de passar. Temos que arriscar.

Daniele revirou os olhos e viu que não teria jeito de convencê-los, eles estavam certos de suas ideias e planos e isso não mudaria. Ela apenas assentiu com a cabeça.

Eram por volta de 07h30min quando eles saíram daquela pequena casa que um dia eles chamaram de abrigo, uma casa temporária que agora estava em ruínas.

– Nós não podemos deixar essa casa aí, se deixarmos esse monte de corpos aí é capaz que alguém se contamine ou vai saber o quê... - perguntou Túlio.
– Pode ser, podemos queimar a casa. - respondeu Cortez.

Cortez pegou um punhado de folhas de papel de seu caderno, galhos secos e fez uma fogueira dentro da casa. Quando o fogo ganhou força para se sustentar, Cortez se retirou da casa, fechando a porta uma última vez e juntando-se a seus colegas. O fogo começara a espalhar-se pelo assoalho até chegar nas paredes que incendiaram-se, transformando a casa e os corpos em um punhado de cinzas pouco à pouco.

Os três caminharam por horas, Cortez era o que estava sofrendo mais, seu esforço recente o levou a dores musculares potentes que não o deixaram até aquele ponto, pelas mesmas dores ele ficava cinco ou dez passos atrás de Túlio e Daniele. A caminhada foi longa, e o assunto era pouco, cada um andava em silêncio, não conversavam.

Ao longo de quatro horas de caminhada eles chegaram a uma cidade do interior que deveria estar na metade do caminho da evolução tecnológica, possuindo apenas um shopping center e poucas redes de mercado famosas. A procura não foi muito grande até que eles encontraram o local ideal para se instalarem, uma casa de primeiro andar. A pintura da casa estava nova, branco e marrom tabaco, possuia um design inovador para aquela cidade. A fachada no interior era em vidro temperado com películas leves, o portão era de aço; havia um jardim e um pequeno caminho de pedras que levava até a porta da casa e se dividia em outro caminho levando até a piscina da casa que ficava elevada no primeiro andar. O interior da casa era luxuoso, as paredes eram totalmente brancas e os azulejos também, mas, a mobília era de bom gosto. A TV de 50 polegadas presa a parede dava espaço para um móvel abaixo dela que continha um DVD, um Xbox 360 e um PS3. O sofá era preto e imitava uma textura de couro que suportava algumas revistas diversificadas, a sua frente um tapete felpudo bege e uma mesa oval . Acima da escada, no primeiro andar o piso se tornava um assoalho de madeira diagonal com uma pintura branca na parede, existia um corredor que dava em três quartos, uma suíte e dois normais.

O corredor era largo, cabendo duas pessoas lado a lado. Os três quartos estavam mobiliados de forma parecida, a suíte possuía uma cama de casal, uma TV de 40 polegadas e uma escrivaninha que servia de móvel para um computador de última geração, o segundo quarto a esquerda possuía a mesma mobília, apenas tendo um diferencial de cores brancas para azuis e uma cama de solteiro. O terceiro quarto ficava a direita e tinha toques femininos. Um grande floral japonês estendia-se pela parede pintada de branco, abaixo a cama e na frente a TV e a escrivaninha, uma cabeceira ao lado da cama e uma varanda que dava visão a piscina.

A piscina era grande, possuía um trampolim e um escorregador, azulejos de pedra formavam a decoração do piso da área da piscina e cadeiras de praia davam um toque mais chique, uma cerca de vidro azul marinho rodeava todo o espaço da piscina e abaixo desta, num cômodo fechado havia um pequeno salão de jogos que abrigava uma mesa de sinuca, um pebolim e uma mesa de pingue-pongue.

Cortez pegou seu facão e começou a checar todas as áreas da casa, certificando-se de que zumbis não haviam invadido e se apossado do local, Túlio checou a proteção da casa e verificou se ainda existia energia, para a sorte deles a casa possuía um gerador autônomo que funcionara todo este tempo. Daniele apenas guardou os mantimentos que lhes restavam na despensa da casa e verificou se a casa possuía mantimentos.

Enfim eles estavam num lugar protegido e em boa localização, ao redor da casa existia um pequeno mercado e a sua frente uma farmácia. Aquela casa era um achado incrível, um lugar para eles chamarem enfim de lar, uma nova esperança para recomeçar.


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