Desalmados escrita por Pedro Couto


Capítulo 5
Capítulo 5




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Os primeiros pássaros começaram a piar assim que o sol começou a raiar, a luz iluminou aos poucos o quarto de Cortez e ele, enfurecido, resmungou para si próprio algo indecifrável. Era sábado e nada o faria sair daquela cama antes do meio dia. Levantou-se devagar, pisando no chão frio de seu quarto que estava a uma temperatura gélida de 17°C em vigor do seu potente ar-condicionado de última geração, foi até as cortinas e puxou-as até o último centímetro que pôde. Ele queria o máximo de escuridão, fingir que ainda estava de noite. Sua cama o chamava como o canto de uma sereia chama e atrai o marinheiro, e ele aos poucos cedeu ao seu chamado, juntando-se à ela e deitando-se, entrando novamente no mundo de Morfeu.

Não se passaram muitos minutos em outra dimensão para que ele fosse acordado novamente. Alguém batia na porta.

– Quem é? Que saco, ninguém pode dormir nessa casa! - disse, Cortez, frustrado.
– Sou eu filho. - disse uma voz feminina.
– Mãe... - levantou-se as pressas da cama e arrumou um pouco o rosto para ficar mais apresentável. - Me desculpa mãe, eu não queria te ofender.
– Eu sei, querido. Sei que você gosta de dormir até mais tarde nos finais de semana, mas seu pai quer falar com você.

Sentados à mesa estavam o pai de Daniele, o pai de Cortez e a própria Daniele. Cortez já sabia no que aquilo ia resultar, Paulo - o pai de Daniele - olhou para Cortez com um olhar de ódio e repulsa, quase condenando-o à fogueira da inquisição. O garoto já entendera o recado, Daniele era a protegida do papai. Cortez sentou-se à mesa com o coração querendo saltar para fora e os olhos querendo sair das órbitas.

– Bom, Anderson, já somos amigos há muito tempo, desde que nossos filhos eram pequenos, mas agora venho falar com você de um assunto sério. Não faz nem uma semana que comecei a usar essas redes sociais e adicionei minha filha para poder ver o que ela posta, mas, felizmente entrei em um dos perfis dos amigos dela e dei de cara com isto. - O pai de Daniele, um homem magro de nariz fino e cabelo negro como a cor de seus olhos pegou um celular de geração nova e mostrou o vídeo para o pai de Cortez.

Ele assistiu atentamente o vídeo, presenciando cada momento e a cada segundo que o vídeo passava a expressão de Anderson mudava mais e mais. Em alguns pontos ele olhou para todos sentados na mesa e sentiu que deveria parar de assistir o vídeo, mas, para entender o que o pai da garota estava falando ele precisaria assistir o vídeo até o fim. A cena mostrava Cortez e Daniele sentados no assento, conversando e lentamente aproximando o rosto um do outro até que encontraram-se num beijo apaixonado. O vídeo encerrou-se no momento em que Cortez terminou seu beijo com Daniele.

– Eu... Eu não sei o que dizer. - Anderson estava desconcertado. - Hormônios? - brincou, esboçando um sorriso improvisado.
– Hormônios?! Hormônios o cacete! Minha filha tem 14 anos, é muito nova para este tipo de coisa. Se você acha mesmo que eu vou tolerar isto como um pai ridículo que nem você e ainda brincar, então você não me conhece em nada!
– Calma, Paulo, nossos filhos estão passando por um momento difícil em que eles amadurecem, você precisa entender... Eles estão começando a sentirem desejos amorosos um pelo outro e... - Anderson foi bruscamente interrompido quando Paulo levantou-se da cadeira em que se sentava e com um olhar enfurecido proferiu o que seria uma sentença para Cortez. - Eu espero que você tome providências para manter a boca do seu filho longe da de minha filha! É isso ou eu tiro-a do colégio e faço com que os dois nunca mais se vejam.

Os dois levantaram-se e saíram da casa. Daniele passou o tempo todo com o rosto baixo, escondendo as lágrimas que desciam de seus olhos. Anderson observou seu filho por alguns instantes com uma cara séria e sua mãe retirou-se da sala, quando ela saiu ele aliviou a tensão no rosto e sorriu abertamente. Cortez jamais se sentiu tão confuso como naquele momento, depois de tudo que o pai de Daniele havia dito ele estava rindo como se aquilo fosse algo normal. Era algo normal.

– Eu quero lhe parabenizar, mesmo que não deva. Mesmo que o pai de Daniele ache isto errado, eu sinto que vocês dois sempre foram muito ligados, vocês dois tem algum vínculo que segue desde que eram crianças. Não desista dela, invista nisso. - disse. - Se você realmente a ama, nunca desista dela. Eu fiz isso uma vez, mas, soube concertar meus erros e olhe onde estamos.
– Ahm... Pai, eu... - engoliu em seco - Tudo bem então? A Daniele vai sair do colégio?
– Não filho. Nem você e nem a Daniele. Irei esperar que Paulo se acalme e irei conversar com ele melhor, garanto que conseguirei fazê-lo ceder.
– Tudo bem, pai. Fico feliz que você compreenda.

* * * * *

Os olhos de Cortez estavam vermelhos como sangue, as veias dos olhos saltavam para fora e seus olhos ardiam como se ele não piscasse há horas, ele não havia dormido por mais de 10 horas e estava ativo, montando guarda ao lado da piscina. Aquele lugar era um achado, conseguiram encontrá-lo com relativa facilidade e limpo de zumbis ou qualquer outro problema, provavelmente aconteceria algo errado. Cortez sentia isso em sua espinha, todo o seu ser estava contorcendo-se por dentro para que ele elaborasse algo, não sabia o que fazer, sabia que deveria proteger aquele lugar com unhas e dentes.

O grupo vestia as mesmas roupas imundas que já usavam há meses, quando chegaram na casa não encontraram água corrente para poderem tomar banho e limpar - tentar - as roupas já encardidas. Durante toda a madrugada, Túlio procurou o problema com a água, tentar estabelecer a corrente funcional era sua meta própria. A noite foi cercada de silêncio e a madrugada estava fria e úmida, foram horas até que Túlio conseguiu finalmente uma corrente de água de verdade.

Daniele permanecia dormindo, bons sonhos perambulavam por sua mente de tal forma que seu rosto esboçava um leve sorriso. O sol ainda não ameaçava surgir, e quando Túlio se deu conta, viu Cortez sentado na estiradeira em frente à piscina. Os olhos de Cortez estavam vermelhos como os de um infectado e quase fechados, sua boca estava entre-aberta e seus músculos estavam travados na mesma posição, ele estava sentado com os braços cruzados e os olhos fixos no portão da casa, como se soubesse em seu subconsciente que apareceria algo ali alguma hora.

– Cara você precisa dormir. Isso não é saudável, você vai acabar ficando doente e a gente não vai ter para onde ir se for muito sério. - disse repousando uma de suas mãos em seu ombro direito.

Como se despertasse de um transe, Cortez tremeu instantâneamente, despertando de seu estado vegetativo.

– Eu... Eu sei, Túlio. Não quero deixar que nada aconteça com a Daniele, mesmo que isso me faça morrer. - ele bocejou e piscou seus olhos várias vezes tentando mantê-los abertos.
– Vai pra cama eu assumo a guarda daqui. Pode ficar tranquilo.
– Tudo bem, mas, vê se não deixa passar nada.

Cortez levantou-se da cadeira e seguiu em direção a cama de um dos quartos, qualquer uma lhe servia e entrou no que Daniele estava dormindo. Ela havia tomado posse de toda a cama de casal do quarto, Cortez cambaleou até um dos lados da cama e afastou as pernas dela para longe, abrindo um espaço para que ele deitasse. Cortez sentiu seu corpo afundar na cama, sua cabeça encostou no travesseiro e a sensação foi ótima, era como se ele tivesse feito exercícios por vários dias e enfim pudesse parar. Seus músculos começaram a relaxar, sua mente foi se desligando aos poucos e então ele adormeceu.

Túlio estava alerta, olhando sempre para todas as ruas que davam no cruzamento em frente à casa. Haviam alguns carros batidos no meio da rua e as casas em frente estavam em geral arrombadas, coisa que Cortez provavelmente não tinha percebido. As pessoas que moravam ali deveriam ter saído as pressas, ou então haviam saqueadores que rondavam essas bandas.. No muro de uma das casas estava pixado em vermelho a frase: "Deus me esqueceu, ele vai esquecer você também.".

* * * * *

Daniele acabara de acordar, seu rosto estava amassado pela costura do travesseiro. Levantou-se calmamente, ainda sonolenta e olhou para seu amante, ele parecia dormir tranquilamente e aquilo o faria voltar a ativa novamente. Daniele não sabia se já tinham água corrente, então levantou-se e foi em direção ao banheiro, chegando lá abriu uma das torneiras e verificou a água da maneira que pôde, para ela estava em bom estado para tomar um bom banho. As roupas que Daniele vestiam estavam rasgando-se e impregnadas pelo sangue e fedor dos infectados, suas meias estavam ficando pretas pela sujeira, o seu rosto estava sujo e seu cabelo duro e desidratado como se não lavasse a anos, o que era quase verdade. O fato era que eles três não tomavam banhos normais há meses, apenas limpavam-se com lenços umedecidos. Ela despiu-se, deixando a mostra seu corpo escultural e entrou no box, abriu o chuveiro e sentiu a água pingando lentamente no seu rosto, ela percorria seu corpo transparente, mas, chegando no chão ela se tornava amarelada, suja.

O barulho do chuveiro era suficientemente alto para Túlio ouvir e averiguar que seu trabalho na madrugada havia dado bons resultados. Ele cheirou suas roupas e suas axilas, o cheiro era tenebroso. O pedido que ele mais fazia todos os dias era ter um abrigo decente e que se parecesse com as casas de antigamente, e agora tendo este abrigo ele sentia-se em casa, confortável novamente. Ele não poderia tomar um banho naquele momento, pois apesar de existirem outros três chuveiros disponíveis, dois nos banheiros e um chuveiro ao lado da piscina, Túlio estava de vigia e sair dali seria um peso na consciência com relação à Cortez.

Foi então que, pensando um pouco, Túlio teve a grande ideia, como se uma lâmpada acendesse sobre sua cabeça. Deixou o facão em cima da cadeira e andando em direção ao chuveiro da piscina ele começou a tirar suas roupas, uma checagem rápida nos arredores e estava tudo bem. Ligou o chuveiro e sentiu uma das sensações mais maravilhosas depois de todo o terror que passaram. A água estava morna, uma temperatura perfeita para tomar um banho.

Daniele desligou o registro, aguardando alguns instantes enquanto a água descia sobre seu corpo e relaxava seus músculos. Ela saiu do chuveiro e percebeu que não havia toalhas limpas dentro do banheiro, a única opção era sair nua e ir até algum dos quartos procurando por uma toalha limpa. Olhou ao redor, verificando se não havia ninguém para flagrá-la e saiu rapidamente do banheiro, dando passos firmes tentando não acordar Cortez e não chamar a atenção de Túlio e torcendo para não escorregar e cair no chão. Vasculhou os guarda-roupas de todos os quartos e não encontrou nada. Teve a ideia de ir até a despensa, sabia que lá encontraria alguma coisa que pudesse secá-la. O local onde Túlio estava era entre os quartos e a despensa, mas, Daniele resolveu arriscar-se e passar por ali, tentando ser o mais rápida possível para que Túlio não visse nada. Com um pouco de nervosismo e receio, ela chegou até a esquina do corredor e, mostrando apenas a sua cabeça, verificou o que Túlio estava fazendo e onde estava. Assim que olhou, teve visão dele no chuveiro da piscina, tomando banho. Sentiu-se envergonhada por ter visto aquilo, mas ao mesmo tempo passou alguns instantes observando o corpo de Túlio que, apesar de não ser o mais bem definido, tinha traços e músculos robustos o suficiente para despertar a atração de uma mulher. Quase como num transe ao ver Túlio, Daniele despertou e rapidamente atravessou o campo de visão, correndo direto para a despensa.

Túlio fechou o registro e também sentiu falta de toalhas consigo, pensando igualmente como Daniele ele partiu em direção a despensa na esperança de encontrar alguma coisa. Quando ele chegou na cozinha, deu de cara com Daniele, despida. Ele a encarou por alguns segundos e ela se cobriu rapidamente com a toalha que havia achado, um gesto instantâneo. Os dois passaram dois ou três segundos olhando um para o outro até que Daniele desviou o olhar e tentou passar por Túlio, porém ele segurou seu braço com força, impedindo-a de passar e colou o corpo dela junto do dele. Por alguns instantes Túlio sentiu o maior dos desejos masculinos, algo que jamais sentiu por um homem, e fora sentir justamente com Daniele. Ele aproximou vagarosamente o seu rosto do dela e os lábios grossos de Túlio encontraram os de Daniele, num beijo carinhoso e repleto de traição.

Ao ser beijada, Daniele sentiu seu corpo amolecer, como se acabasse de ser anesteziada para uma cirurgia, e num movimento involuntário ela entrelaçou seus braços no pescoço do rapaz, aceitando o beijo. Túlio estava respirando mais ofegante, era visível seu desejo e mais do que rapidamente agarrou as pernas da moça e a fez ficar pendurada em seu tronco, os dois estavam incontrolavemente excitados, a adrenalina disparada em seus corpos pelo medo de serem pegos no meio daquela traição lhes fornecia um prazer inigualável.

Carregando-a para fora da despensa, Túlio deitou-a na mesa de granito que ficava no centro da cozinha e começou a beijar seu pescoço e logo desceu até o fim. Os dois entraram em êxtase e a partir dali não eram mais dos amigos, sobreviventes. Não havia mais um homossexual e a mulher que amava Cortez, haviam dois corpos fervendo, atracados um no outro, molhados e excitados. Os dois fizeram sexo sem que Cortez soubesse, a sensação lhes concedeu prazeres que não sentiam há muito tempo. Os dois percorreram todo o térreo da casa, parando finalmente na sala de estar. Foram vários minutos até que Túlio e Daniele finalmente se saciassem um do outro.

Daniele apanhou as roupas do chão e começou a vesti-las com rapidez, enquanto Túlio sentou-se no sofá de cor preta, ainda deixando algumas poucas gotas de água caírem sob o tecido do acolchoado.

– Túlio... - disse ela com uma expressão de arrependimento.
– Eu sei. Foi errado.
– Sim, nós não devíamos ter feito isso! O que estávamos pensando? Eu amo o Cortez e você é o melhor amigo dele!
– Calma, calma. Não precisamos pensar nisso, foi um momento de pura loucura! Foi culpa minha, você tentou sair e eu acabei beijando você. Me desculpe.
– Não precisa se desculpar, mas me prometa que nunca mais faremos isso e que Cortez nunca ficará sabendo, ok?
– Certo.

Logo ao lado, encostado na parede estava uma sombra física forte e claramente enfurecida, seus braços cruzados e olhos arregalados, a testa franzia e os dentes estavam trincados, mostrando sua revolta.

– Daniele, se eu te fizer uma pergunta sincera, você me responde?
– Claro, Túlio! O que é?
– Eu nunca tinha feito nada assim antes e queria saber se fiz direito... O que eu quero dizer é... - Túlio foi bruscamente interrompido por Daniele.
– Eu não vou responder isso, Túlio. Eu só quero esquecer isso...
– Entendi... Não foi minha intenção, eu...
– Tudo bem, só... Só esqueça tudo isso.

A noção de tempo de Túlio e Daniele havia se distorcido desde que os dois encontraram-se na despensa da enorme casa, a possibilidade de Cortez encontrá-los ali lhes dava temor e excitação por meio da adrenalina. Túlio levantou-se calmamente e pegou suas roupas no chuveiro da piscina, vestiu-se e retornou à sala.

– Quer saber de uma coisa? - disse Daniele. - Não vou mais calçar essa meia, vou pô-la na lavanderia e ver se consigo ao menos deixá-la mais limpa. Vi uma caixa de amaciante e uma de sabão em pó, acho que consigo limpar ao menos as nossas roupas.
– Ótimo. Então temos materiais de limpeza? - disse Cortez, finalmente revelando-se. - Será que é só isso que temos de novidade? - Cortez estava irritado, suas sobrancelhas franzidas, seu olhar raivoso, a respiração inflada e o peito estufado lhe denunciavam. Olhou para os dois com raiva, naquele momento o grandalhão seria capaz de estourar a cabeça dos dois com as mãos.

– Cortez, não tínhamos te visto! Que bom que acordou, eu dei um jeito nos canos, temos água! Não quer tomar um banho? - perguntou, Túlio aproximando-se do amigo.

A pouco menos de 2 passos de distância, Cortez desferiu um único soco no rosto de Túlio, acertando em cheio sua bochecha e fazendo-o girar 180° graus no ar, derrubando-o em seguida.

– Cale a boca, porra! - gritou, balançando a mão direita para amenizar a dor do soco. - Filho da puta. Eu protegi vocês dois por todo esse tempo e agora vocês me fazem isso? Eu não acredito em você, Túlio... Sempre achei que você fosse meu amigo. - ele faz uma pausa breve para que as palavras entrem nos ouvidos de Túlio ainda surdos pelo soco de Cortez. - E você Daniele... Você... - seus olhos ameaçam inchar em lágrimas, mas rapidamente Cortez vira o rosto e fecha os olhos. - Você me traiu. Você e Túlio me traíram... Principalmente você.
– Cortez, eu... Nós não... - seus olhos encheram-se de lágrimas e logo ela despencou no chão aos prantos.
– Merda! Merda, merda, merda, merda, merda! Porra! - esbravejou - Estava tudo indo bem e vocês me fazem essa cagada? Porra!
– Eu não queria cara, eu... Foi um erro. - respondeu.
– Erro? - disse em tom baixo e macabro - Erro é o que eu cometi quando salvei vocês dois daquele buraco... Erro é o que eu cometi quando salvei você inúmeras vezes. Esse foi o erro.
– Cortez, eu... Eu não sei o que dizer. - o rosto de Daniele estava vermelho, as lágrimas molhavam o tapete de veludo.
– Pode chorar, não me importo... Vadia escrota.
– Qual é, Cortez? Seja racional, foi um erro... Já pedimos desculpas!
– Fique quieto, porra! Você é o pior do que todos aqui, mentiroso...
– Do que você está falando? - disse levantando-se e recuperando a noção do seu próprio corpo no espaço.
– Eu sei o que você é. Você não pensou que após tantos anos juntos eu não notaria os seus olhares de desdém para a maioria das garotas e a quantidade de flertes trocados com os rapazes, não é?

O olhar de Cortez e o que havia dito penetraram o corpo de Túlio como uma saraivada de tiros de uma metralhadora, dando uma pontada especial na sua cabeça, sentiu o seu mundo desabar. Tudo que havia escondido durante todos aqueles anos havia sido em vão, desnecessário, um fracasso do começo ao fim. Um choque percorreu o topo de sua espinha até a base, fazendo-o congelar involuntariamente.

– Não vai tentar disfarçar? É tão fácil assim abalar você?
– E-Eu... - Túlio estava mudo, seus pensamentos embaralhados não conseguiam organizar logicamente uma frase sequer.
– Você me enoja...
– Pelo menos eu não sou um grande covarde, alguém que esconde os sentimentos por uma garota por tanto tempo. - o raciocínio de Túlio aos poucos voltava ao estado normal.
– Parem com isso, vocês dois são amigos, não deveriam estar discutindo tanto por causa de uma bobagem! - gritou, Daniele, levantando-se e enxugando as lágrimas que escorriam pelo seu rosto. - Cortez... - ela olhou em seus olhos e aproximou-se dele. - Eu errei, Túlio também errou, mas nós não podemos brigar e nem nos separarmos assim, precisamos nos mantermos unidos. Você se lembra do que sempre repetíamos quando tudo isso começou e só tínhamos nós três para contar?

Por um momento a mente de Cortez retornou ao passado, lembrando-se do lema que eles prometeram levar por todo o resto do apocalipse, e assim seguiriam lutando e sobrevivendo, juntos. Lembrou-se de quando encontrou Daniele escondida dentro de seu guarda-roupa, enquanto três cambaleantes perambulavam dentro de sua casa em seu encalço. Lembrou-se de quando viu seu rosto iluminar-se quando ele abriu abruptamente as portas do guarda-roupas e tirá-la dali de dentro. Lembrou-se quando encontrou Túlio no meio da rua, fugindo de uma gangue de pistoleiros enlouquecidos. Tudo aquilo fez o Cortez original voltar à vida por alguns instantes, mas logo a dissolução dessas lembranças deu origem a imagens da relação traidora entre seus amigos, imagens dos dois deitados juntos... O Cortez original voltou à sua prisão mental novamente, acorrentado dentro do coração de Cortez pelo Cortez pós-tormento, pós-desgraça. Quando ele finalmente retornou à realidade, seus olhos encheram-se de ódio e como um animal enfurecido ele desferiu um tapa com as costas das mãos no rosto avermelhado de Daniele, fazendo-a cambalear para trás dois passos.

Cortez não olhou nos olhos dela quando deu-lhe o tapa, ela buscou forças para entender o que ele estava fazendo, mas tudo que sentiu foi uma enorme tristeza. Cortez virou-se para ela e caminhou em sua direção, ele empurrou-a no chão e continuou avançando em sua direção com sangue nos olhos. Dali, Daniele engatinhou para trás, mantendo o olhar fixo em Cortez, observando o monstro no qual ele estava se transformando aos poucos. O corpo de Cortez movimentava-se quase que automaticamente, as mãos buscavam ir de encontro ao corpo de Daniele. Ele queria matá-la. Ele ia matá-la.

Como um raio, Túlio jogou-se em cima do amigo desalmado, derrubando-o no chão e segurando-o com todas as forças que tinha. Ele segurou seus braços e forçou-os no chão, imobilizando-os, mas em questão de segundos Cortez conseguiu inverter a situação e a partir dali começou a inflingir golpes diretamente no rosto de seu amigo aterrorizado, não demorou muito para que de sua têmpora começasse a sair sangue e de sua boca espirrassem algumas gotas. Daniele levantou-se e pulou em cima de seu amante, sua força era desigual e ela não conseguiu tirá-lo de cima de Cortez, mas esmurrou-o com a força que pôde para fazê-lo parar.

– Cortez, pare! Pare! PARE! Você está louco, você vai matá-lo! - gritou.
– Eu sei o que estou fazendo, Daniele, agora pare de perturbar.
– CORTEZ! PARE!

Cortez desviou brevemente o olhar de Túlio para Daniele e, nesses poucos instantes de desatenção, a resposta de Túlio foi quase imediata. Dali ele usou toda a força de seu corpo para desferir um soco no queixo de Cortez, que o fez cair ao seu lado. Com a cabeça zonza e o corpo semi-dormente pela pancada próxima do cérebro, Cortez tentou levantar-se como um lutador de boxe depois de diversos rounds de tortura. Túlio subiu em cima dele, segurou-o pelo colarinho com a mão esquerda e com a direita deu-lhe mais quatro socos até que o Cortez possuído apagasse.

Os olhos de Cortez fecharam-se aos poucos, seu consciente tentou balbuciar algumas palavras, ininteligíveis até mesmo para ele. Soltou apenas um mero grunhido até que aos poucos cada parte de seu cérebro foi desligando-se até entrar em estado transitório entre o sonho e o real.


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