Despedindo-se de Peter Pan escrita por Evangeline


Capítulo 5
V - Elizabeth


Notas iniciais do capítulo

Boa Leitura, Gengibre. :D



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Ela estava calada. Estava muito calada. Desde que começamos a ter contato com Mark, eu a sentia mais leve que antes, porém cada dia mais distante. Ia fazer um mês que eu estava lá, e não conseguia mais tirar brincadeiras com ela. Com o tempo eu passei a dormir no quarto de Mark, o que me era completamente estranho.

Me parecia errado.

Quando eu a encontrava naquela escrivaninha da biblioteca, no segundo andar, ela nunca estava disposta. Eu voltei a pensar em ir embora. Pensar sobre como ele deveria desejar que eu fosse, e estava cansando de ser falsa ao me tratar bem.

Ou era o que eu pensava. Mark dizia que Mary sempre fora uma menina muito quieta e calada, e que a única pessoa que despertava seu lado divertido era o avô deles. Eu lembrava de que ela havia falado sobre a morte do avô. Eu só não sabia que tinha sido uma perda tão difícil.

Estar mais uma vez naquele universo masculino era no mínimo estranho. Mark falava de mulheres, falava de bebidas e de festas. Claro que me era muito divertido, o tempo passava banalmente rápido com ele. Mostrava-me revistas de mulheres, revistas de carros, revistas de motos. Ele era um total inútil tentando ser alguém, mas era uma boa pessoa.

Todas as noites, deitado no chão do quarto de Mark, eu pensava em Elizabeth. Percebi que havia algo errado quando comecei a pensar em Mary. Comecei a imaginar como ela estava furiosa, como queria se livrar de mim logo. Por mais que me parecesse errado estar tão próximo de Mark, me parecia mais errado ainda incomodar tanto uma garota fantástica que tinha um futuro genial pela frente.

Na noite que fazia um mês que eu estava lá, decidi visitar a biblioteca. Era uma sensação estranha, pois há dois dias eu não ia lá. Aquela casa era um mausoléu durante a noite. Uma mansão para quatro pessoas era quase deprimente. Ou melhor: totalmente deprimente.

Entrei sem fazer barulho e vi um abajur aceso no segundo andar. Subi as escadas o mais silenciosamente possível e encontrei Mary dormindo sob um livro, debruçada por cima da mesa. Tive vontade de rir com a cena, mas ao invés disso apenas fiquei olhando para ela.

Um turbilhão de pensamentos sobre Elizabeth me invadia, quanto mais tempo eu passava preso naquela casa, mais eu queria me livrar daquela garota. Eu imaginava como os Meninos estavam sem mim, se haviam sido pegos. Eram uns inúteis.

– Peter? – Ouvi a voz sonolenta e baixa de Mary chamar.

– Oi... – Sussurrei, achando que talvez ela voltasse a dormir.

– Desde quando está aí? – Perguntou levantando devagar e coçando o olho.

– Cheguei quase agora. – Respondi, ainda falando baixo. Ela fechou o livro e guardou numa gaveta, só então levantando.

– Está procurando alguma coisa? – Ela perguntou depois de algum tempo, me encarando de um jeito estranho. Parecia com sono e com frio, talvez triste, talvez decepcionada.

– Eu não sei. – Falei, tentando ser sincero, ela se encostou no corrimão que a separava de uma queda ao térreo e suspirou, passando as duas mãos no rosto.

– Eu também não... – Admitiu como se fosse algo extremamente difícil de fazer.

Era uma ocasião estranha para mim. Mary estava com uma saia comprida e estampada, uma camisa e um casaco, mas eu não sabia distinguir as cores, pois o ambiente estava escuro demais. O abajur da escrivaninha ainda estava aceso, mas longe demais para realmente iluminá-la. Usava o cabelo solto, talvez fosse a primeira vez que eu a via com os cabelos soltos. Eram ondulados, castanhos claros e não tinha franja, era apenas dividido no meio.

– Peter... – Ela falou num tom triste, talvez até sofrido. Eu me aproximei dela e a abracei. Eu não entendia a razão, mas precisava abraça-la, e ela tinha cheiro de baunilha. Retribuiu o abraço com certa urgência passamos algum tempo abraçados daquela maneira. – Por que você quer ir embora? – Perguntou ali, com a cabeça escondida por trás do cabelo, mergulhada em meu peito.

Eu suspirei completamente confuso.

– Tenho coisas a fazer... Gente que depende de mim e...

– Tem uma vida lá fora. – Ela me interrompeu e saiu do meu abraço, me olhando nos olhos. – Não precisa de eufemismo, Peter... – Falou segurando uma mão na outra diante do corpo.

– Tenho uma vida independente de onde estou, Mary. – Falei cada segundo mais confuso. – Além do mais, você precisa da sua vida de volta, eu não quero gastar seu tempo. – Ela parecia tão confusa quanto eu.

– O quê? – Perguntou. – Vida? Peter, que vida? – Perguntava mais para si do que para mim. – Livros? Esta é a minha vida? – Perguntou.

– Esta vida, aqui. – Eu respondi mostrando a biblioteca inteira com as mãos. – Com um futuro brilhante. – Completei. – Eu sou só um bandido procurando por um fantasma, é egoísta demais da minha parte querer te incomodar por tanto tempo.

Ela refletiu por alguns segundos, me encarando com o cenho franzido.

– É isso que acha que eu vejo quando olho para você? – Perguntou. Eu abaixei a cabeça e mordi o lábio, hesitante demais para soltar uma palavra sequer. – Peter, é isso que vê quando olha para mim? Uma garota com um futuro brilhante? – Perguntou de novo.

– Sim, é o que eu vejo. – Respondi a encarando, certo de minhas palavras.

– Me admira você, Peter Pan, tão livre, achar que uma vida seguindo padrões da alta sociedade é uma vida brilhante. – Ela falou, como um golpe de realidade. – Eu não quero uma vida com uma lista de tarefas, uma lista de regras. Eu quero uma vida, Pan. Eu vida parar rir e chorar. – Disse ficando sem ar por falar rápido demais.

– Quem sabe ao mesmo tempo. – Eu completei com um sorriso de canto, lembrando suas palavras. Ela sorriu um pouco, mas não o suficiente.

Ficamos em silêncio por algum tempo, cada um perdido em seus próprios pensamentos.

– Quem é o fantasma que você procura? – Ela perguntou depois de algum tempo. Eu refleti um pouco e resolvi contar, afinal, eu sabia praticamente tudo sobre ela, e jamais contara nada demais sobre mim.

– Elizabeth é uma mulher que me acolheu quando eu fiquei órfão. – Falei sem mais rodeios. Eu quase pude ver milhões de perguntas entrando na cabeça dela no mesmo instante, mas ao invés de soltar qualquer uma delas, Mary me abraçou. Passou os braços aos lados do meu pescoço e me apertou.

Fiquei estático por um momento, mas aos poucos eu retribuí o abraço.

– Sinto muito, Peter. – Ela falou ao meu ouvido, e parecia realmente sentir. Eu sorri de canto e alisei seus cabelos, saindo do abraço e me encostando a lado dela no corrimão.

– Bem, ela me acolheu por alguns anos na própria, casa. – Comecei a falar. Nunca tinha contado a ninguém, mas eu precisava conta-la. Foquei o olhar longe dali, fitando algo entre os livros, talvez atrás da parede... – Quando eu fiz dezessete anos eu fui embora, e voltei alguns meses depois, mas ela não estava mais lá. A casa estava abandonada e revirada, eu nunca descobri o que havia acontecido... É quem eu procuro, Elizabeth. Ou o culpado pelo desaparecimento dela. Devo isso à ela. – Falei voltando o olhar para Mary.

Ela ouviu tudo atentamente, estava bastante pensativa.

– Tem algum lugar por onde começar? – Ela perguntou me pegando desprevenido.

– Bem... não... – Eu admiti ela riu um pouco. – O que foi? – Perguntei um pouco incomodado, mas aliviado ao mesmo tempo.

– Precisa de algum boletim de ocorrência, testemunhas, vizinhos que podem dar alguma informação. – Ela começou a falar. – Mas... Peter... Há quanto tempo isso aconteceu? - Perguntou um pouco hesitante.

– Três... – Eu falei, sabendo que viriam argumentos depois disso. Ela suspirou profundamente, mas deixou o assunto desaparecer naquela escuridão.

Depois de alguns minutos, Mary foi até o abajur e o desligou, voltando para perto de mim. Só conseguíamos ver a silhueta um do outro, graças ao céu cinzento lá fora que podíamos ver através da porta de vidro.

Eu via a silhueta do rosto de Mary. O nariz delineado, os lábios bem desenhados, os cílios grandes. Alguns fios que teimavam em flutuar por perto do rosto. Eu temia não conseguir sair dali quando fosse necessário, mas eu não podia ficar ali para sempre. Não podia me acostumar ao conforto e paz que havia dentro daquela mansão.

– Peter... – Ela sussurrou sem virar para mim, como se olhasse para o divã e as mesinhas do térreo e pensasse sobre algo muito importante. Eu olhei para ela, prestando atenção, quando Mary virou-se para mim meio hesitante. – Eu posso ir com você? – Perguntou me fazendo arregalar os olhos e ficar sem reação.

– Mary, você... Você não pode ir embora. – Eu falei, o mais óbvio que alguém poderia imaginar falar numa situação daquelas.

– Eu não posso ficar aqui. Você está aqui há tempo o suficiente para saber disso. – Ela disse com a voz amena, calma... racional.

– Não acho certo ser o responsável por você deixar a sua família. – Eu admiti. – Não quero estragar a sua vida, Mary. – Falei por fim.

Ela ficou calada por um longo tempo, parecia estar pensando em algum argumento para me convencer a tirá-la dali.

– Você não vai me levar embora, certo? – Ela perguntou mais direta, certificando-se da minha posição quando àquilo.

– Não posso. – Eu disse. “Gostaria... Mas não posso” foi o que eu pensei, mas só pioraria tudo se me envolvesse demais com ela.

– Tudo bem, eu te entendo. – Disse Mary, como se realmente entendesse. Mas eu não achava que entendia. – Acho que... só não quero que minha vida volte a ser uma completa porcaria. – Ela admitiu com um sorriso triste no rosto.

– Eu não posso fazer nada quanto a isso... – Sussurrei, impotente.

– Mas você já fez. – Ela disse. – Não percebeu, Peter? Você virou minha vida noventa graus, quando eu queria que virasse de ponta cabeça. Chegou me ameaçando, foi a primeira pessoa que argumentou comigo, brigou comigo. Talvez você não me queira por perto, mas eu não me importaria em ser a sobra de Peter Pan. – Ela falou sem fôlego. Quando terminou de falar parecia leve como nunca.

– De onde tirou isso, sua louca? – Eu perguntei com uma risada saindo dos meus lábios, sem que eu conseguisse me segurar. Ela parecia mais confusa que nunca. Eu me virei para ela, e ela fez o mesmo. – Quem disse que eu não te quero por perto? – Perguntei vendo-a sorrir e me abraçar mais uma vez. – Você só pode ter probleminhas... – Falei com o rosto nos cabelos dela. – Eu não posso te tirar daqui, Mary. Aqui você está segura. – Eu falei.

– Eu sei que ser a sombra de Peter Pan tem riscos. – Ela falou rindo um pouco. – Ainda não estou pronta para que você vá embora, Peter. – Disse me apertando mais um pouco. Eu a segurei com mais força e apertei os olhos.

– Ainda não estou pronto para ir embora. – Sussurrei. Quando nos soltamos, Mary parecia mais leve.

– Boa Noite Peter. – Ela falou começando a descer as escadas, e eu a segui acompanhando o seu passo.

Naquela noite eu fui dormir no quarto dela mais uma vez, mas não disse uma palavra sequer. Eu não consegui dormir, não preguei os olhos à noite inteira. Tinha que admitir que deixar Mary para trás seria pior do que eu queria que fosse, mas era egoísmo demais leva-la comigo.

Eu não pensei em Elizabeth durante a noite inteira. Fiquei observando a respiração compassada de Mary, e com a cabeça perdida em mil e um pensamentos. O cheiro de baunilha do cabelo dela, a voz macia. Eu mal podia acreditar nas coisas que tínhamos falado. Eu era Peter Pan, o cara de mil garotas, o Menino Perdido. Bem, aquela frase me parecia correta, eu era aquele Peter Pan.

Se eu queria fazer a coisa certa uma vez na vida, eu precisava me afastar de Mary, precisava deixa-la em paz e seguir com a minha vida. Eu poderia me machucar com aquilo, mas não suportaria dor de ferir Mary por alguma atitude que eu sabia que daria errado, mesmo que ela me peça.

Eu precisava me afastar dela, era o necessário, era preciso me afastar de Mary antes que eu chegasse a um ponto do qual eu não poderia voltar. Me apaixonar por ela estava fora de cogitação, mesmo eu sabendo todas aquelas coisas maravilhosas que ela tinha para oferecer, e aquela sensação que ela me causava. Eu não estava apaixonado por Mary, mas sabia que, se continuasse daquele jeito, logo eu estaria. Logo eu não teria escolha a não ser leva-la, por puro egoísmo.

Mary não podia se apaixonar por mim. Se ela se envolvesse emocionalmente, teria todas as armas, ou melhor, ferramentas, para me ter na palma da mão.

Seria loucura demais leva-la comigo?


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Notas finais do capítulo

E que tal? :)



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