Despedindo-se de Peter Pan escrita por Evangeline


Capítulo 6
VI - Adeus Peter


Notas iniciais do capítulo

Ç_Ç O Nome do Capítulo diz tudo. Ç_Ç



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/555694/chapter/6

No dia seguinte Peter ainda estava lá quando eu acordei. Estava dormindo pesadamente, e já passava das oito da manhã. Eu ainda estava atordoada sobre a noite anterior, mas não me arrependia de uma palavra sequer, e estava mais feliz do que gostaria de admitir.

Eu queria ir embora com Peter Pan, eu não aguentava mais aquela casa, aquele mausoléu, aquela solidão. Mesmo estando com uma relação melhor com Mark, eu não queria mais ficar ali.

Tomei um banho depressa e vesti um vestido branco comum, com algumas flores verdes. Uma meia laranja com minhas pantufas azuis e um casaco, o de sempre, verde-água. Quando parei na frente do espelho, estava indecisa sobre trançar ou não o meu cabelo.

– Mary? – Chamou Peter do outro lado da porta, dando pequenas batidinhas. Não segurei um sorrisinho de canto.

– Peter, preso ou solto? – Eu perguntei antes de ouvir o que ele diria. Peter não falou nada por um bom tempo, até que ouvi uma risada breve.

– Preso. – Ele respondeu. – Agora, Mary, Mark disse que vai levar o café para a biblioteca e nos espera lá, tudo bem? – Perguntou.

– Tudo bem. – Eu respondi enquanto trançava o cabelo.

Eu e Peter estávamos indo à biblioteca quando encontramos Mark no caminho.

– Mark, biscoitos para o café? – Eu perguntei rindo um pouco. Ele sorriu brincalhão, mas não comentou nada.

Quando entramos na biblioteca fomos até o divã onde Mark colocou a bandeja. Eu entrei num transe quando olhei para a porta que dava para a varanda. “Não... Não, hoje não...” Eu pedia, mentalmente, mas o mundo não iria atender ao meu desejo, obviamente.

– Mary... – Chamou meu irmão, mas eu não acreditava no que via. – Pan, maldito, colabora, ela está numa transe muito estranho aqui. – Ouvi ele dizer, mas não me interessava.

Peter se colocou na minha frente. Seu rosto tinha muitas sardas avermelhadas, e ele parecia muito confuso. Eu queria pensar mais sobre as sardas que só agora eu havia notado, mas não conseguiria pensar em nada.

– Mary, tá tudo bem? – Ele me perguntou, mas eu não precisei fazer anda para ele seguir o meu olhar com os olhos. Ele parou estático e voltou a me olhar. – Mary... – Sussurrou entendendo exatamente o que estava acontecendo.

Lá estava ele. Maldito sol.

– O que houve? Pan, está tudo bem? – Perguntava Mark, preocupado.

– Mark, pode... ahm... nos deixar a sós, por favor? – Pediu Peter ao meu irmão que foi embora. Deveria estar preocupado, mas pelo visto já confiava em Peter.

Ele se aproximou de mim devagar e ficou ao meu lado, um pouco para trás.

– Sabe que eu preciso ir... – Ele disse. Eu abaixei a cabeça e virei-me para a bandeja de comida, mexendo nas coisas ali em cima sem realmente saber o quê fazer. – Mary... – Me chamou, e eu virei para ele.

– Então vai, Peter. – Eu falei apontando para a porta com um gesto rápido. – Vai lá, eu não tenho forças para te segurar aqui. – Conclui voltando-me para a bandeja mais uma vez. Ele ficou quieto por algum tempo.

– Eu posso vir te ver de vez em quando. – Ele disse baixinho, talvez tentando compensar de alguma forma. Eu suspirei profundamente. Tudo o que eu queria era ir com ele.

– É... Claro... – Eu disse seca.

– Mary... – Chamou impaciente, segurando minha mão e voltando-me para ele.

Eu via o rosto de Peter Pan em primeiro plano, e a porta para a liberdade dele logo atrás de sua cabeça. A iluminação que vinha lá de fora deixava seus fios castanhos mais ruivos de um jeito bem bonito. Eu não foquei a visão em seu rosto, olhava para alguns fios espalhados no alto de sua cabeça.

– Eu preciso ir. – Ele disse e eu suspirei.

– Eu sei. – Falei um pouco baixo.

– Eu não quero ir, eu preciso. – Ele tentava explicar.

– Precisa? – Perguntei me exaltando, meio irritada. – Precisa voltar para aquela gangue? Precisa ir lá fora e se arriscar? Pode vir me visitar? Pode! Mas cada minuto que você estiver lá fora, em algum lugar qualquer, eu vou ficar imaginando milhões de coisas que podem acontecer. E se você for preso? E se morrer? E se simplesmente me esquecer e nunca mais voltar? - Perguntei irritada e decepcionada com a minha falta de autocontrole.

– Você é louca?! – Ele perguntou erguendo a voz. – Eu não esqueço, Mary! E eu venho te ver, eu fico vivo, eu volto. Por favor, acredita em mim! – Pediu, mas eu não conseguia acreditar.

– Não pode me garantir nada disso, Peter... Não me garanta algo que não tem como ter certeza. – Eu disse mal humorada.

– Eu garanto, Mary. Eu... Eu prometo. – Disse. – Eu prometo que volto aqui antes que termine seu próximo livro. – Ele falou rindo um pouco. Eu sorri de canto.

– Por que voltaria? – Eu perguntei desviando o olhar.

– Porque eu quero voltar, você não tem escolha. – Ele falou brincando e se aproximando de mim.

– Mary... – Ele sussurrou com a boca na altura da minha testa. – Vire de costas. – Disse bem devagar, como se eu fosse uma criança. Eu suspirei e obedeci, abaixando a cabeça e fechando os olhos. – Quero que pense no melhor livro que você já leu. Um com o seu pirata favorito. – Ele falou perto do meu ouvido, num tom brincalhão. – Já pensou? – Perguntou.

– Já. – Respondi com um meio sorriso no rosto.

– Pronto, eu quero que releia este livro assim que eu for embora. – Disse, fazendo algo em mim doer ao ouvi a confirmação de que ele iria embora. – Quero que leia cada palavra e saboreie cada capítulo, e esqueça de mim enquanto fizer isso. – Falava devagar e baixo.

– Peter, eu não... – Falei virando-me para ele e quase esbarrando no corpo do mesmo. Ele me olhava com olhos reprovadores, que me fizeram virar de costas mais uma vez.

Peter Pan passou as mãos pela extensão dos meus braços e segurou minhas mãos, enquanto colocava a cabeça encaixada ao meu ombro. Senti um arrepio fúnebre só de imaginar que aquilo era uma despedida.

Fique quietinha e vai ficar tudo bem... – Ele sussurrou e soltou as minhas mãos. Eu estava com os olhos fechados e o corpo dormente quando uma ventania me atingiu por trás e eu me forcei a contar até três antes de me virar.

A porta estava escancarada e o vento quente da manhã entrava sem pudor. Eu me aproximei da porta para fechá-la, mas escolhi deixar aberta.

Adeus, Peter Pan... – Eu sussurrei para o céu azul lá fora e voltei-me para o divã, onde tomei o meu café.

Mark não demorou para voltar à biblioteca perguntando por Peter, obviamente. Eu apenas disse o básico e a verdade.

– Foi embora. – Eu respondi seca e quase triste. Meu irmão deu de ombros e me deixou em paz. A única coisa que eu pude fazer foi voltar-me para o caderno do vovô e continuar escrevendo. Em pouco mais de uma semana, já tinha escrito em quase metade das folhas.

Depois que a frescura de caderno novo passou, eu rabiscada e rasurava as palavras, e até páginas inteiras, quando não ficava satisfeita.

Sem Peter na casa, tudo ficou em silêncio.

A chuva não caiu mais, a primavera finalmente chegara. Meu jardim estava lindo, e eu passei a ler na pequena varanda. Não fechei mais aquela porta, mas também não fiquei esperando por Pan. Comecei a reler o meu livro predileto, como Peter me dissera, mas não encontrei concentração para ler mais uma vez palavras que eu já havia lido centenas de vezes.

Ao invés de ler, encontrei refugio escrevendo. Era como se tudo o que eu não dizia desde a morte de vovô estivesse sendo dito. E dito a ele mesmo, afinal, era um de seus cadernos. Textos tristes, em sua maioria, alguns revoltados, e ainda nenhum feliz. Melancolia esborrava daquelas páginas, o que muito me irritava, já que eu não me sentia melancólica.

Em certas noites eu acordava e olhava para o chão ao lado da minha cama, mas Peter não estava lá. Durante o dia, enquanto eu lia ou escrevia, lembrava de Pan debruçado sobre a mesa, entediado. Mas ele não estava mais lá.

Era uma sensação de vazio, que conforme as semanas passavam ia se transformando em rotina. Quase um mês depois, Peter Pan era como um velho sonho. Mark não falava sobre ele, e nada no mundo me dava sinais de que ele um dia existiu.

Mas para quê existir? Eu amava aqueles livros, toda aquela ficção, então eu também poderia lembrar de algo que jamais existiu. Peter Pan havia sido apenas um sonho cruel que deixou um rastro de saudade.

– Mary, vamos? – Chamou Mark ao pé da porta da biblioteca. Estava com um lindo terno negro que contrastava lindamente com seus fios loiros.

– Claro. – Eu assenti quase dormente em meus atos. Íamos para uma festa da alta nobreza com meus pais, para fazer a fachada de família exemplar e feliz. Segurei o braço de Mark sem muita força e ele me sorriu sinceramente.

– Está bonita, Mary. – Ele falou e eu esbocei um sorriso tímido. Senti um estranho deja vu, mas esqueci rapidamente.

– Obrigada. – Agradeci. Eu usava um vestido azul escuro com detalhes, babados e adornos pretos. Uma sapatilha de salto da mesma cor e enfeites de cabelo, brincos, colares, todos também pretos.

Mark me conduzia através da biblioteca para que saíssemos, quando eu parei de andar e pedi que fosse na frente, eu iria logo em seguida. Voltei para a porta da biblioteca e a fechei devagar, esperando para ouvir o estalo da fechadura.

– Adeus, Peter... – Sussurrei e dei as costas à porta. Antes de sair da biblioteca, eu não resisti.

Voltei à porta e a destranquei, olhando para o céu negro do lado de fora e dando um breve sorriso. Logo voltei para encontrar-me com Mark no saguão.

Graças à uma força desconhecida a quem eu muito agradeci, eu e Mark íamos num carro separado de meus pais. Era um lamborguine azul escuro com a capota levantada, que nos levou para uma festa de gala a alguns quilômetros dali.

O prédio tinha dois andares uma laje, com varandas para todos os lados, e com elas estavam as pessoas. Vestido de todas as coras, ternos e gravatas de todos os tamanhos. A poluição visual era tanta que a minha cabeça ficou tonta por um momento.

– Vamos, Srta Thatcher. – Chamou Mark, que abria a porta do carro para mim elegantemente. Meu irmão era galante, bonito e conquistador, mas comigo era apenas educado. Talvez ele soubesse que nem tudo estava bem.

Eu dei-lhe a mão e desci do carro, então juntos entramos na festa.

Fomos apresentados à dezenas de pessoas, mulheres sem caráter e homens medíocres. Ricos, porém medíocres. Alguns deles pareciam bonitos demais e claramente maliciosos demais. Vários deles Mark conhecia e fez questão de ser muito rigoroso durante as apresentações.

– Srta Thatcher! – Ouvi uma voz me chamar, menos formal que o comum. Eu me virei, livrando-me por um momento do braço de Mar e encontrei Louis.

Ele usava um terno preto impecável com uma gravata cor de vinho que me parecia combinar muito bem com ele. O óculos que geralmente escondia seus olhos claros estava pousado delicadamente no bolso do terno. Ele se aproximou e fez uma breve reverência.

– Boa noite Sr Thatcher. – Disse ao meu irmão num cumprimento elegante, apertando-lhe a mão.

– Boa noite, Louis. – Respondeu Mark. Louis ofereceu o braço para mim e sorriu sinceramente.

– Posso acompanha-la com a sua autorização, Sr Thatcher. Será uma honra estar na companhia de minha aluna brilhante para uma conversa civilizada em maio à tanta... – Ele começou a falar, mas parecia não encontrar a palavra.

– Superficialidade? Futilidade? Banalidade? Falta de conteúdo? Ausência de senso crítico? – Eu ofereci algumas opções vendo-o abrir um sorriso e me encarar com os olhos azuis.

– Cuide da minha garota, Louis. – Falou Mark rindo de nós e oferecendo a minha mão para Louis. Aqueles gestos de formalidade me enchiam o saco, mas eu admirava-os por um certo ponto.

– Banalidade foi certeiro, Carol. – Ele falou depois que nos afastamos de Mark. Eu estava de braços dados com Louis, da mesma forma que todas as moças da festa estavam de braços dados com alguém. Eu ri um pouco do comentário. – Pelo visto você gosta destas festas quase tanto quanto eu. – Disse sorrindo com ironia evidente.

– Talvez eu goste um pouco mais. – Eu comentei fazendo-o rir um pouco mais. Louis tinha os dentes extremamente brancos e perfeitos, e o formato de seu sorriso me lembrava um comercial de pasta de dentes.

– Isso é lamentável... – Ele falou com falso lamento.

Passei a festa inteira na companhia de Louis conversando sobre a futilidade da alta sociedade. Ele me contou um pouco sobre a própria vida, era um homem formado e muito bem graduado, com uma vida amena e trabalhadora. Louis era um bom tutor e uma boa companhia para festas supérfluas.

A festa foi muito agradável exceto por um fato. Era uma festa adulta, não haviam criança e todas as pessoas ali presentes eram maiores de idade, o que permitia aos organizadores servir bebida alcoólica para todos. O problema é que eu só pensei naquela lógica depois da terceira (ou quarta) taça de champanhe.

– Eu preciso sentar. – Falei interrompendo um monólogo de Louis sobre... alguma coisa. Ele me ajudou a sentar num sofá baixo ali perto, e eu não demorei a tirar as sapatilhas de salto, recebendo alguns olhares surpresos.

– O que houve? Está passando mal? – Perguntou Louis se sentando ao meu lado, mas eu só queria dormir: deitar a dormir.

Me encolhi no sofá e encostei a cabeça fechando os olhos pesadamente. Minha cabeça explodia com o barulho da festa e o álcool com o qual o meu organismo jamais havia tido contato.

– Esmeralda?! – Ouvi a voz ríspida da minha mãe, num sussurro furioso ao meu ouvido. – Que pensa que está fazendo? Comporte-se direito, garota. – Ela falou irritante. Eu gestuei com uma mão, mandando que ela fosse embora e cobri os olhos. Tudo estava muito iluminado, muito claro, e aquela luz toda feria a minha visão frágil.

– Mary! – Ouvi Mark ao longe por trás dos resmungos de Margaret. – Mary, você bebeu, sua retardada? – Ele perguntou mais perto de mim, alisando meu ombro.

– Por que ele foi embora, Mark? – Perguntei levantando a cabeça e vendo-o entrar em choque. – Por que me deixou sozinha? – Eu perguntava sem nexo nenhum na voz.

– Você não está só. – Ele sussurrou perto do meu ouvido, me ajudando a levantar e pegando minhas sapatilhas. – Louis, segure para mim, por favor. – Pediu entregando meu par de sapatos para o homem que aceitou com a cabeça. – Eu estou aqui, Mary. – Dizia enquanto me ajudava a levantar.

– Mas eu queria que ele estivesse aqui. – Eu choraminguei.

– Vamos para casa, tudo bem? – Ele falou com a voz doce e compreensiva, me tirando rapidamente da festa.

Mal eu percebera e já estava dentro do carro escuro, com Louis à minha esquerda e Mark do outro lado. Me escorei no meu tutor e coloquei os pés no colo de Mark, deitando-me para tentar fazer a cabeça parar de doer.

– Se ele estivesse aqui nada disso teria acontecido. – Eu sussurrei para Mark que me olhou tristonho.

– O Pan? – Ele perguntou quando eu fiz silencio e estava quase dormindo. Eu quase sentia o olhar confuso de Louis para o meu irmão, mas apenas neguei com a cabeça. Mark sabia quem era.

A verdade é que Peter era uma anestesia para a dor que eu sentia por perder o meu avô. Se Vô Tom estivesse ali, nada daquilo teria acontecido, eu poderia ter certeza.

Quando cheguei em casa, Mark me levou ao meu quarto e me colocou na cama, sempre comigo em seu colo. Eu sorria para ele. Não estava bêbada, mas sentia segurança para falar e agir como eu queria, e eu queria sorrir para o meu irmão.

– Apesar de, eu te amo Mark. – Eu falei sorrindo quando ele me deitou na cama.

– Apesar de quê, Mary? – Ele perguntou confuso. Eu não respondi, apenas me virei na cama, abracei o meu travesseiro e tive minha tão desejada paz.

Não senti ou ouvi quando ele foi embora, mas senti o cobertor por cima de meu corpo e meus cabelos soltos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Goodbye, Pete. Ç_Ç