Despedindo-se de Peter Pan escrita por Evangeline


Capítulo 4
IV - Mark


Notas iniciais do capítulo

Cadê esses fantasminhas? Gente, me ajudem com a autoestima, só tenho uma leitora? ):
A propósito, obrigada Gengibre sua linda!



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O tempo passava mais rápido com o Pan ali. Ele estava sempre lá: quando eu lia, quando eu dormia, até quando eu ia tomar banho ele estava logo ali, do outro lado da porta. Por um lado ter companhia era bom, mas ele era especialmente irritante quando queria.

Eu não era acostumada com amigos, e eu ainda tentava me fazer acreditar que Pan não era meu amigo, era um invasor que estava na minha casa escondido de meus pais. É claro que eu não acreditava nisso.

Eu estava cansada de procurar um livro que me despertasse curiosidade pelas prateleiras, quando ele se aproximou e encostou na madeira firme, repleta de livros.

– Sabe, eu estava me perguntando... – Ele começou a falar. Eu sabia que ia ser alguma besteira. – Você é podre de rica e não tem um celular? – Perguntou. Eu soltei uma risada baixa.

– É claro que eu tenho celular. Só não gosto dele. – Esclareci. Ele levantou uma sobrancelha e foi fazer outra coisa.

É claro que não demorou para que voltasse, se encostasse na estante, cruzasse os braços e voltasse com mais perguntas. Ele ficava fitando o chão enquanto perguntava, e balançava a cabeça de vez em quando.

Perguntou mais sobre celular, sobre eu não ir à escola ou faculdade, sobre Louis e Charles, e sobre milhões de outras coisas. Vez ou outra ele comentava sobre si mesmo. Até agora tudo o que eu sabia era que ele não se considerava um bandido, que procurava por uma moça e que não gostava de falar sobre si.

É, normal para um bandido.

– Mas por que você ainda recebe um tutor? Você tem dezoito anos! – Disse.

– Qual é o seu problema com Louis, Pan? – Eu perguntei achando graça... – Ele é meu tutor desde que ele tinha dezessete anos, devo ser a aluna mais antiga dele. – Comentei.

– E não é estranho? Esse cara é seu amigo há anos, ele pode estar te passando por afeto! – Disse, me irritando um pouco.

– Está duvidando das minhas capacidades? – Perguntei encarando ele por um momento, mas logo voltando a explorar a prateleira.

– Eu só estou dizendo que... Ah sei lá! – Falou por fim, saindo de perto de mim e parando as perguntas.

Naquele dia eu não li nada, e antes de dormir eu senti uma sensação estranha de vazio. Dormi no meu quarto, com Pan deitado em um monte de lençóis no chão ao meu lado.

Eu me revirei um pouco na cama, encarando o teto. Foi quando ouvi um barulho estranho de algo dentro da gaveta da minha cabeceira. No início achei que fosse algum animal, mas lembrei que era apenas o meu celular ali dentro.

Segurei o aparelho cerrando o solhos por causa da iluminação, para ler no visor o nome do meu irmão.

– Alô? – Atendi, sonolenta.

– Mary! Eu estou no porão! – Ele gritava, parecia estar sendo sufocado ou ferido, eu não consegui entender. – Vem cá! Tem uns... AH! – Ele não falava nada com nada.

– Eu não estou entendendo. – Falei baixo, para não acordar Peter.

– Vem pro porão, rápido! – Ele pediu gemendo de dor e desligou a ligação. Eu calcei umas pantufas e saí do quarto, em silêncio. Levei o celular para iluminar o caminho, e vi que eram duas da manhã... Mark tinha que ter um motivo muito bom para estar me acordando àquela hora.

Quando desci as escadas do porão e acendi a luz, encontrei meu irmão caído embaixo de, não uma mas, duas colunas gregas da coleção do meu pai.

– Mark! Sua antes, como conseguiu se enfiar aí?! – Perguntei desesperada, chegando perto dele. As colunas estava bem em cima de sua barriga e coxa, ele não conseguia juntar forças para sair dali.

– Me xinga depois e ajuda, mas pelo amor de Deus, não chama ninguém! – Falou com a voz embargada de dor. – Se mamãe souber ela me mata! – Ele tinha razão, mas eu não conseguiria levantar aquilo sozinha.

Quando Mark percebeu que eu estava saindo do porão ele quase entrou em pânico.

– Não vou chamar eles, retardado. Aguenta aí! – Eu o acalmei antes de sair em disparada de lá.

Entrei no meu quarto, sem apagar a luz, e me ajoelhei ao lado da cabeça de Peter. Comecei a balança-lo para tentar despertá-lo, mas estava impossível.

– Pan! Acorda! – Eu falei um pouco baixo. Ele começou a se levantar desnorteado, mas eu não demorei a puxá-lo quarto a fora até o porão.

Quando entramos, Peter não demorou para correr até as pilastras e fazer força tentando erguê-las. Eu acho que nunca tinha visto meu irmão tão confuso na minha vida.

– Mary! Quem é esse? – Ele começou a perguntar com a voz repleta de dor, mas ainda com aquele maldito instinto de proteção.

– Por enquanto ele é o cara que vai te tirar daí, então cala a boca. – Eu o cortei e vi Pan sorrir de canto, achando graça e me fazendo quase rir também.

– Espero que não tenha encostado um dedo na minha irmã, cara. – Ameaçou Mark olhando para Peter, que tirou a primeira pilastra com muita dificuldade, equilibrando-a em pé mais uma vez.

– Então espero que tenha quebrado alguns ossos aí. – Peter retrucou, me fazendo dar uma tapa na cabeça dele. Ele riu um pouco e Mark me encarou completamente confuso.

– Ignora o ruivo retardado, Mark. – Eu disse, mas realmente não me importava muito.

Quando Peter ergueu a outra coluna nós tivemos uma longa, realmente longa, conversa. No início eu deixei muito claro que se Mark soltasse um pio sobre aquilo eu contava todas as verdades que sabia sobre ele. É claro que ele não contaria.

Fomos juntos para a biblioteca, e eu acho que foi a primeira vez que ele entrou de verdade lá. Contamos a ele que Peter iria embora quando a chuva parasse, mas omitimos tudo sobre ser criminoso e... sabe, dar em cima de mim, até porque era uma brincadeira. E foi assim que meu irmão descobriu a existência de Peter Pan, e encarou aquilo como uma dívida.

Mark considerou que Pan estar lá foi destino, e que agora ele devia algo para Peter, mesmo aquilo sendo uma completa loucura. Acho até que meu irmão gostou um pouco do ruivo, de uma maneira competitiva e estranha.

Quando Mark foi finalmente dormir, eu e Pan resolvemos ficar ali na biblioteca conversando um pouco. Era sexta feira e ninguém estranharia a minha ausência no café-da-manhã do sábado caso eu dormisse até tarde.

– Assim que a chuva acabar, certo? – Perguntei e ele me encarou com um olhar sério.

– É o plano. – Disse Peter com a voz um tanto baixa e cansada.

– Não perguntei se era o plano. – Eu retruquei, mas ele ficou calado. Eu queria saber se ele queria, realmente, ir embora. Queria saber, na verdade, se eu iria ficar na minha mesma vida estranhamente monótona mais uma vez. Desde que o Pan chegara a minha rotina têm sido mais agitada... Eu comecei a perceber que as histórias nos livros poderiam ser mais interessantes que a minha vida, mas a minha vida era real.

– Você acredita em mim, Thatcher? – Perguntou mais sério que nunca, sendo direto e talvez um pouco hesitante.

– Não vou ser hipócrita, ou falsa. Eu não confio em você, Pan. – Admiti séria. Ele negou com a cabeça bem devagar, fechando os olhos.

– Não perguntei se confiava em mim. – Foi a vez dele de retrucar. Eu pensei um pouco naquela pergunta.

– Acho que sim... Acredito em você. – Falei depois de refletir. Até agora Pan não havia mentido. Quando ele não queria falar sobre algo ele simplesmente não falava, mas não mentia.

– Então acredite quando eu digo que vou embora assim que eu puder. – Ele disse.

Aquela conversa me deixou um tanto decepcionada. Ele realmente queria ir embora. “Por que é tão difícil me livrar dela?” ele havia se perguntado numa certa noite de insônia. Eu acho que lembrava sempre daquilo, mesmo não entendendo a razão de me tratar relativamente bem quando na verdade quer “se livrar” de mim.

Nós vimos “o sol nascer” naquele dia. Claro que não vimos nada, a tempestade estava ocupando o céu inteiro, dia e noite, noite e dia, há quase um mês. Não conversamos muito, pois não tínhamos assunto para conversar. Peter passara a vida nas alturas, nas aventuras, em tudo o que havia fora daqueles muros da minha fortaleza pessoal.

Eu passara a vida inteira do lado de dentro. Ele não concordava comigo, dizia que passou a vida com os pés no chão e a cabeça no céu. Sonhava alto demais para seus braços angustiantemente pequenos alcançarem.

– E qual é o seu sonho, Pan? – Perguntei no meio da conversa, ambos já muito cansados. Ele pensou muito, mas não parecia chegar ao ponto.

– Eu não sei. – Admitiu. Eu aceitei aquela resposta completamente satisfeita, afinal, sonhos são coisas muito relativas.

– E o seu, Thatcher? – Ele me perguntou. Eu sabia a resposta, embora não quisesse falar. Fiquei quieta e ele assentiu, me entendia, eu acho.

“Ser a protagonista”, eu respondi mentalmente. Estava cansada de ser personagem secundário. Na vida de maus pais, de meu irmão, de todos... Eu era só um capítulo que todos queria pular... Mesmo na vida de Pan, eu era só uma triste coincidência, uma ilha para reabastecer-se antes de prosseguir na aventura pirata.

Eu adorava piratas.

– Você tem cara de quem prefere os mocinhos. – Falou Pan, rindo daquela minha estranha paixão pelos tapa-olhos e papagaios nos ombros. Eu ri um pouco e me levantei em busca de alguns livros em específico.

Trouxe todos para a mesa e comecei a ler trechos que descreviam os grandes piratas, os reais e os fictícios, os vilões e os antagonistas...

– “Porque bons piratas nunca são bons.” – Eu comentei, lendo em alguma página. Peter sorria abobalhado, achando graça daquela situação.

– Então a mocinha se apaixonaria pelo vilão? – Ele perguntou pegando um dos livros e folheando-o inteiro de uma vez.

– Só se ele fosse um pirata digno da donzela. – Respondi vendo-o rir um pouco.

– Piratas não são dignos de nada, moça. – Retrucou Peter.

– Então você entendeu. – Eu falei piscando para ele e indo guardar os livros. Ele riu mais um pouco e continuamos a madrugada conversando sobre coisas banais. Eu pegava alguns dos meus livros favoritos e lia minhas citações prediletas.

Pan estava completamente entediado, e eu até perguntei se ele queria fazer algo melhor, mas ele apenas negava e me mandava continuar. Em torno das nove da manhã ele adormeceu com uma citação qualquer de um romance qualquer.

Eu fechei o livro e o guardei em seu devido lugar na prateleira. Estava com muita fome, e me arrependi de ter ido tomar o café exatamente naquela hora. Fazia mais de dois meses que eu não via meus pais antes do meu aniversário, e lá estavam os dois, tomando café da manhã em casa, em pleno sábado.

De início eu os estranhei, mas logo voltei a se indiferente, afinal, eram apenas meus pais. Me servi muito devagar, colocando tudo o que eu queria numa bandeja, um por um. Maçã, suco, torradas, queijo... Um a um. Estava calmo demais para ser verdade, nunca é calmo assim.

– Por que não deixa que lhe sirvam, Esmeralda? Eu pago pessoas para isso. – Falou Margaret, vulgo: minha mãe. Eu deixei escapar um suspiro mudo e continuei me servindo bem devagar. Odiava quando ela falava meu nome inteiro.

– Estou com disposição para me servir. – Respondi depois de alguns segundos. Com eles, eu falava bem devagar, como se fossem duas crianças sendo educadas, ou dois estranhos que talvez não falassem a minha língua.

– Sempre cisma em ser a do contra, não é, garota? – Ela perguntou logo em seguida. Eu quase senti uma veia pular em minha testa.

“Sim, sou do contra com orgulho. A única dessa família que cisma em ter mais de um neurônio funcionando!” é o que eu queria dizer.

– Não enche, mãe. – Ouvi a voz de Mark, exausto e bocejando, ao entrar na cozinha. – Ajuda aí, Mary? – Ele ofereceu mas eu neguei.

– Que lindo, agora eles se defendem. – Comentou Denis, vulgo: meu pai.

– Claro, é isso que, supostamente, as famílias fazem. – Respondeu Mark muito sério. – Mary, você ainda vai me mostrar aquele seu livro? – Virou-se para mim, me confundindo.

– Desde quando aprendeu a ler, Mark? – Perguntou Denis irritado, fazendo Margaret rir.

– Na mesma época que vocês começaram os relacionamentos extraconjugais, papai. – Respondeu meu irmão, me fazendo rir. Eu não consegui segurar aquela risadinha. – Para ser exato, eu tinha uns cinco anos. – Concluiu, me ajudando a levar a bandeja e pegando uma garrafa de leite na geladeira.

Quando saímos da cozinha eu não pude segurar aquela risada. Mark me olhou rindo, porém espantado, e fechou a garrafa de leita que estava bebendo. Chegamos na biblioteca rindo daquela cena e encontramos Peter ainda dormindo debruçado sobre a mesa.

Os dias se passaram mais ou menos assim a partir dali. Mark ia nos ver na biblioteca de vez em quando, parecia estar tomando juízo e arranjado uma namorada. Ele e Peter não se davam mito bem, mas não tinham muito atrito.

– Mary? – Chamou Peter do lado de fora do banheiro enquanto eu tomava banho.

– Calma, eu estou terminando. – Falei um pouco impaciente.

– Não, pode demorar, Mark está me chamando para ir com ele até o sótão... – Ele falou meio hesitante e eu desliguei o chuveiro. – Tem problema? – Perguntou.

– Não sou sua mãe, Peter, faça o que quiser. – Eu falei. Acho que ele pôde sentir meu tom irritado, mas apenas foi embora com um “até mais então” sussurrado. Eu voltei ao meu banho e demorei o máximo que consegui, até meus dedos ficarem enrugados.

Decidi não trançar o cabelo e o deixei solto. Vesti uma saia comprida e jeans e uma regata branca, com o casaco verde-água de sempre. Estava confortável o suficiente, e apenas coloquei uma meia e fui até a biblioteca. Pela primeira vez eu não queria ler absolutamente nada. Na verdade, não me aproximei de nenhuma prateleira.

Fui até o segundo andar o havia a velha escrivaninha do meu avô e me sentei na cadeira, observando a madeira de ébano velha e perfeitamente bem cuidada. Ele tinha uma coleção completa de lápis de desenho, borrachas, esfumaçadores, canetas e, o que eu procurava no momento, cadernos. Nas três gavetas da escrivaninha estavam os cadernos adornados e intocados do meu avô. Me parecia m pecado tocá-los, mas era o ideal.

Escrever num caderno de Vovô era uma honra que apenas eu teria, e assumir aquela responsabilidade me faria escrever algo decente. Ou era o que eu esperava.

Abri a primeira página e a encarei, com um lápis 3b em mãos. Relutante, eu pulei a primeira página lembrando das palavras sábias e macias de Vô Tom.

“Uma folha em branco num caderno é uma obra de arte, mas todas elas são um desperdício.”

E foi exatamente isso que escrevi na segunda página, sem esquecer de creditar meu amado avô, Thomas T. Gregório. Eu não queria escrever o sobrenome da família, meu avô era doce demais para ser considerado um Thatcher.

Acho que passei o dia inteiro ali, imaginando o que diabos eu escreveria, mas nada me vinha a mente. Eu estava com raiva, e era honesta o bastante comigo mesma para saber que o culpado era Pan. Eu havia me acostumado com aquela sombra alta e ruiva me seguindo para todos os lados, mas sabia que não era saudável.

Assim que tivesse a chance, ele partiria. E eu teria que me acostumar, mais uma vez, com a solidão que era estar acompanhada por papéis velhos.

Foi pensando nisso que tive minha ideia genial.

Perdoa-me a intromissão.

No teu universo mágico pisei

Nas folhas de teu diário entrei

A tua vida baguncei

Com as mãos pequenas de menina curiosa.

Tuas palavras nunca questionei

Teus ensinamentos nunca esquecerei

A tua vida eu sempre guardarei

Em meu coração de menina estudiosa.

Perdoa-me a confusão.

Depois de tudo que aprendi

Depois de cada página que li

Arrisco tudo por algum rubro qualquer

Ingrata, não ensinaste-me a ser esta mulher.

Ingrata, sinto-me após alguma reflexão

Invadi a tua vida com tamanha precisão

Herdei o teu reino de sabedoria inclusão

E agora arrisco-o por alguns segundos de emoção.

Perdoa-me a ingratidão.

Esmeralda T.

Eu encarei a página preenchida perfeitamente pelo texto. Não me parecia bom o suficiente, mas eu melhoraria com o tempo. Se tinha algo que eu podia dizer que aprendi com todos os anos de leitura era que um livro não deve começar esplêndido, e sim terminar surpreendentemente fabuloso.

Peter entrou na biblioteca silenciosamente em torno das seis da tarde. Eu fechei o caderno rapidamente e o guardei, fingindo estar lendo um livro que estava empilhado em cima da escrivaninha do meu avô.

– Oi. – Ele disse quando chegou ao segundo andar. Eu acenei com a cabeça e comecei a ler o livro, era tudo o que eu sabia fazer, certo?


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Notas finais do capítulo

Críticas, sugestões, elogios? Amo ler seus comentários, por favor, gente... Queria postar todos os dias, mas vou começando a perder o ânimo de escrever...



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