Dúbia escrita por Wolfie A


Capítulo 3
Capítulo 3




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/552041/chapter/3

O fato de chegarmos a Viena não diminui meu estresse pós casamento que eu tenho que engolir e digerir. Na verdade, muda absolutamente nada. A minha visão está completamente igual e isso me deixa um pouco apreensiva ao pensar que agora estou ligada a alguém por toda uma vida. Eu nunca fui uma menina meiga. Meus olhos de quimera sempre foram um traço marcante em mim. Era comum que me perguntassem o porquê daquilo, mas eu nunca soube explicar. “Nasci assim”, eu respondia, analisando os olhares da outra pessoa e martelando a certeza que minha mãe havia me contado. Nasci assim.

Meu pai nunca foi um homem muito presente. É engraçado como a vida dá voltas estranhas. Meu pai é um piloto de guerra e treina aviadores para combate. Assim, nasce a garota do papai, uma menina que sente pânico ao entrar na grande lata voadora, mas que sempre fingiu não se importar. “Desde de que não caia, não tem problema algum”, eu tentava me convencer, mas a verdade é diferente e o simples fato de ser uma máquina já mudava tudo aquilo.

Meus pais são casados desde antes de meu nascimento e, diferente de muitas famílias, eu fui planejada e calculada. Até mesmo as possibilidades de que nascesse uma menina ou um menino foram projetadas e a data do nascimento foi um cálculo exato: eu deveria nascer no primeiro dia de primavera daquele ano. Nasci dia 20 de março de 1988 e foi uma enorme surpresa. Os cálculos diziam que eu seria um menino; nasci menina. Além disso, vim com inúmeras anomalias: nasci com a rara heterocromia, uma anomalia genética sem explicações na qual um olho meu tem cor azul-água e o outro castanho-mel e a rara despigmentação dos cabelos, nos quais eles vieram totalmente sem cor, brancos. Normal de mim, sempre tive a mania de ir contra o que não devia.

Embora planejada, nasci errada. Não posso reclamar das circunstâncias, ainda assim, porque tive a sorte de não ser rejeitada e, embora o desejo de meu pai fosse um menino, consegui satisfazer o que ele queria. Mas o casamento planejado de meus pais é uma fachada, tanto quanto minha data de aniversário ou meus cabelos negros, tingidos. Minha mãe nunca amou meu pai; meu pai nunca amou minha mãe; nunca houve uma família fora dos planos; nunca houve um plano fora dos papéis. Meus pais conseguiram imitar os grandes poetas ao inventarem a família correta e o amor verdadeiro, esquecendo-se que a existência de algo complexo no papel só dificulta a veracidade do fato.

Eu imaginava que Viena fosse mais bonita. Deve ser a noite que nos rege e não me permite enxergar através das janelas escuras do conversível prata. Thomas tem os lábios cerrados em uma linha reta e os cabelos bagunçados, talvez pela viagem. O terno lhe cai particularmente bem, mas ele está longe de ser um deus-grego. O mais estranho é o fato de ele parecer tão apaixonado por mim, mesmo que nós tenhamos nos casado às pressas dois meses depois de nos conhecermos. Ele transforma o resto da chance do amor existir em pó.

– Estamos a dois quarteirões do hotel – ele diz, me olhando agora.

– Você que escolheu tudo? Todos os detalhes?

– Foi, sim. Eu juntei os detalhes sobre você para poder deixar tudo do jeito que você gosta.

Provavelmente errou. De qualquer maneira, sinto que devo ser gentil.

– Obrigada, deve estar lindo.

– Eu comprei uma caixa dos seus chocolates preferidos, ameixa.

– Muito obrigada – eu digo, sorrindo. Detesto chocolates, detesto ameixas. Estou começando a achar que alguém entregou a lista de detalhes sobre mim errada. –, mas não gosto de ameixas.

– Jura? Mas eu... Ah! Você gosta de cerejas!

– Sim – eu digo, surpresa por ele saber disso. –, você quase acertou, então.

– Droga! Que péssimo marido, não consegui nem lembrar sua fruta preferida.

Se eu fosse dizer “que novidade” para cada coisa que não é uma novidade, eu poderia escrever uma coletânea do “você não sabe nada sobre mim: que novidade!”. Uma coisa que ele deveria ter aprendido sobre mim é que tenho o pavio curto e a ironia elevada. Todavia, ele nunca vai aprender isso porque, além da minha mãe e meu pai, ninguém descobre o quanto eu os contesto mentalmente. Acredito que contestá-los e ridicularizá-los mentalmente faz com que eu me sinta menos da mesma, mas eu me contenho em fazer isso apenas mentalmente.

“Qualquer sentimento que você tente descrever acabará em uma grande mentira”. Essa foi a primeira tese oficial que defendi ao ler e reler poetas famosos. Procuramos intensificar verdades relativas para que se tornem absolutas.

– Não se preocupe, não me importo. Na verdade, estou bastante cansada e eu ficaria muito feliz de ficar com você sem nenhum outro porém.

– Eu te amo.

– Eu também.

Dizer “eu também” para sentimentos é uma boa forma de igualá-los a algo. A pessoa que diz sempre espera algo igual ou mais intenso, então me dou o trabalho de igualar o sentimento, sem precisar dizê-lo.

O carro parou, nós descemos, dois homens carregaram nossas malas, nós entramos no elevador e, antes que eu pudesse ver, estávamos no último andar de um hotel caro. Parece que a dica de ouro é para que ele não poupe dinheiro, como se isso fosse me proporcionar os melhores dias de minha vida. Para a surpresa dele, fiz o desdém de seguir até o banheiro e retirar o resquício do batom roxo com o papel toalha.

– Você está maravilhosa.

– Obrigada – digo, com malícia. Eu já sabia o que vinha a seguir. Eu deveria dispor-me como esposa e ele como marido. Felizmente, embora insociável, eu sempre fui boa no charme. Caminhei cuidadosa até alcançá-lo e deixei que desabotoasse meu corpete. Conseguir respirar foi um alívio. Ele me olhou nos olhos. Vi o cuidado imensurável que ele tinha ao segurar meus punhos e me trazer até ele. Meu vestido estava ao chão, a lingerie estava prestes a ser retirada. Fechei os olhos e segui o instinto.

– Obrigada – eu digo.

Sinto seus lábios quentes beijarem-me a nuca, acariciarem-me o rosto. Sinto o cuidado que ele tem comigo e sinto pena. Não é um bom começo. Eu correspondo, beijando seu rosto, não tão suave quanto ele faz, e abraçando seu corpo despido. Ele está nu, mas eu não estou. Ele tem o cuidado de retirar o sutiã, ele tem o cuidado de retirar a calcinha. Sinto um rubor no rosto, mas seguro seu rosto com as duas mãos e com força, quase confrontando o cuidado exagerado que ele tem comigo, e digo as palavras mais ásperas e sinceras de toda a minha vida.

– Estamos fodidos.

A conotação sexual foi embora porque essas palavras ordenavam meu estado de espírito e dizia como eu devia caminhar a partir de agora. Ele, por outro lado, não entendeu. Deu um sorriso, me segurou e me deu um beijo suave. Senti pena, pela milésima vez.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Dúbia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.