Dúbia escrita por Wolfie A


Capítulo 20
Capítulo 20




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Eu sentia uma sensação estranha sobre mim. Alguém me observava. Eu caía, caía, caía. Infinitamente caindo, no escuro, só com a sensação de que alguém me observava.

E então eu era o vulnerável títere de porcelana de novo. Estilhaçada no chão, no escuro, com milhares e milhares e milhares de olhos a me observar. Espelhos, espelhos, espelhos verdes.

Você não vai conseguir sair inteira, sussurrou uma voz diretamente em meu ouvido. Quis gritar. A tintura na minha pele começou a se desfazer, a porcelana foi ficando ainda mais fria, crua, polida.

Você não vai conseguir sair inteira.

Como um milhão de pontos verdes, olhos em milhares me expunham até os ossos. Eu queria gritar. Eu tentava mexer meus dedos, eu tentava levantar meus punhos, mas onde estavam? Havia só caco, caco de porcelana para todo lado e eu não era uma pessoa. Eu não era ninguém. Um eco. Estela?, perguntou. Liberte-me, respondi.

E repentinamente não havia mais caco, não havia mais porcelana, não havia mais escuridão. Eu me vi refletida em água. Havia sangue nas minhas pernas, sangue morno e vivo, mas eu não sentia nada. Eu não ouvia nada. Olhos ainda me observavam.

Abri os olhos tão rápida quanto pude e vi aqueles pares de espelhos me fitando curiosos.

– Meu Deus! – falei em tom furioso – Tira a porcaria da cara da minha frente! – comecei a levantar o braço, mas estava fraca demais para mantê-lo em pé. Eu ia empurrá-los, empurrá-los para longe de mim. Os dois homens estavam em pé, fitando-me, com olhos tão profundos quanto o próprio oceano. Eles erguiam gigantes em frente da janela daquele quarto e suas sombras caíam sobre mim como nuvens de inverno. – Quero tomar Sol!

Os irmãos se deslocaram o mais rápido que as pernas permitiam. Sem emitir um som, ambos sentaram-se no pequeno sofá branco no canto oposto da sala, quietos e silenciosos.

Mergulhei meu rosto no sol fraco de inverno. Ele atravessava debilmente a janela, se fragmentando e ficando frio. Eu puxava meu rosto para frente enquanto afundava minha cabeça no travesseiro e sentia o pouco calor entrar pela pele. Era suave e eu tinha frio. Fechei meus olhos e suspirei alto. Eu podia sentir algo no meu braço. Alguma coisa. E também podia sentir olhos sobre mim, como no sonho. E isso me enfurecia.

Abri meus olhos e os encontrei me olhando com tamanha curiosidade que eu quis batê-los. Bater com meu punho fechado em suas caras brancas e em seus lábios mortos.

– Parem com isso! Estão me ouvindo? Parem com isso – eu os encarei tão zangada que podia sentir a raiva estalar nos meus olhos como chicotes.

– Desculpe – disse Thomas. Ambos deixaram os olhos cair para os próprios pés, contudo, eu ainda podia sentir a vontade que tinham de levantarem os olhos do chão e fitarem-me.

Olhei para o lado e vi os aparelhos do hospital. Vi a bolsa transparente de soro pingando e pigando enquanto o líquido escorria mangueira abaixo até meu braço fino. Ouvi passos do outro lado da bonita porta branca. Tremi novamente de frio. Levei meu braço até o lençol fino e puxei até meu pescoço. Estava vestida em uma fina camisola azul que me era amarrada nas costas. Afundei minha cabeça no travesseiro com todo meu peso, querendo atravessar a cama.

– Então já está acordada – disse o médico que atravessava a porta. – Não esteve inconsciente por muito tempo. Isso é bom. Fico feliz em poder dizer que não é nada demais – ele acenou com a cabeça para os homens sentados, que se puseram de pé e chegaram até próximos da cama. Eu rosnei como um cachorro e eles tiraram as mãos da cama, dando um passo para trás. O médico sorriu. – Foi uma queda de glicose somada a uma alteração hormonal referente ao estresse passado. Senhores, eu os aconselharia não deixá-la estressada. Senhora Clouther, qual a frequência em que isso tem acontecido?

– Senhora Clouther? – falei indecisa. – Bem... Duas vezes. Essa foi a segunda.

– E como você se sente agora?

– Com frio.

– Solicitarei que aumentem o aquecedor.

– Quando eu poderei sair daqui? – arqueei as sobrancelhas.

– Assim que o exame detalhado de sangue chegar. Tenho algumas suspeitas de um terceiro motivo para a sua fraqueza repentina. – ele falou enquanto saia.

Eu ia perguntar o que, mas então os homens voltaram a me olhar curiosos. Curiosos demais. A raiva voltou a correr por minhas veias tão rápido quanto meu sangue.

– Vejam bem, – falei com o tom morno. – É melhor pararem. Digo sério.

– É que... – Frank tentou. Amarguei meus olhos e o olhei longamente. Sua voz falhou. – É que...

– É que o médico nos contou sua suspeita e...

– Digam, merda!

– É que pode ser... pode ser...

– Tá, tá, tá – interrompi. – Não me importa. Calem a boca. Sentem-se. Meu Deus, o que tem acontecido com vocês?

Mais tarde, entendi bem o que tinha acontecido a eles: eu. Eu invadi seu covil entulhado e simplesmente desmaiei. Comecei a cantarolar qualquer coisa que pudesse me esvaziar a cabeça e me tirar a raiva. Eu estava furiosa como nunca antes. Eu queria atirar todas aquelas máquinas hospitalares nas feições daqueles homens imóveis. Acabei dormindo.

Quando meus olhos se abriram novamente, eu não me sentia mais fraca e ninguém mais me olhava. Eles conversavam baixo um com o outro. Eu sentia-me muito melhor. Uma enfermeira caminhou para fora do quarto e, quando fechou a porta atrás de si, foi que perceberam que eu tinha acordado.

– Como está, Estela? – perguntou Thomas mais calmo.

– Ótima.

– Não sente nada? – perguntou novamente.

– Não, Thomas, estou ótima.

O médico rompeu a conversa que seguiria ao abrir a porta. Deu um sorriso acolhedor e bonito, com grandes dentes brancos, e pôs-se a falar.

– Bem, Sra. Clouther. O exame de sangue está pronto. Como eu disse, foi uma queda de glicose associada ao estresse, mas também a uma alteração hormonal. Creio que da primeira vez que sentiu isso não chegou a desmaiar, certo?

– Não, não desmaiei.

– Perfeito. Não é nada grave. O exame de sangue nos trouxe informações importantes. A alteração hormonal é de progesterona. Uma curiosa quantidade foi constatada no seu sangue. Fizemos o teste beta-HCG e o resultado foi positivo. Parabéns, você está grávida.

– Quê? – sussurrei.

Thomas e Frank se abraçaram como se nada antes tivesse acontecido. Nada. Revirei os olhos em desaprovação, porque não pretendia voltar atrás nos meus planos de separação. Mas agora havia uma criança. Estávamos unidos agora, não apenas por matrimônio, não apenas por relações, mas por sangue. Havia uma criança. Uma vida.

– Sra. Clouther, devo avisar-lhe que você ainda está com poucos dias de gravidez. Uma semana, uma semana e meia, talvez, mas pode ser menos. Você sabe exatamente quando foi que essa criança foi gerada? – perguntou.

Abaixei meus olhos e percebi que não havia mais felicidade nos homens, mas dúvida. Apunhalados novamente. Seria possível que o bingo tivesse-me feito gerar uma criança do irmão mais novo? Quando as surpresas pareciam acabar, o súbito me assustava novamente. Minha raiva passou a trote, um medo surgiu na minha garganta. Eu não consegui responder.

– Não há motivo para ficar assustada, Estela – falou o médico em tom suave. – A resposta não é realmente necessária, podemos descobrir isso com o ultrassom, se tens dúvida. Prefere assim?

– Prefiro – falei, por fim.

– Vou pedir para as enfermeiras ajeitarem tudo. – ele chegou até meu pulso e olhou para o sangue que subia a mangueira fina em direção à vazia bolsa transparente, pendurada ali. – Vou pedir para retirarem o soro.

O médico saiu a passos largos e a porta se fechou num estrondo. Estremeci e tremi, de frio, de medo e de pavor. Meu humor variava como o tempo. Instável demais para eu decidir qualquer coisa.

– Estela – chamou uma voz fria e triste. – Existe alguma possibilidade?

– Frank, não sei dizer.

Thomas sentou no sofá jogando todo o corpo.

– Thomas, eu sinto muito.

– Cale a boca, Frank – ele arfou. – Apenas cale a boca. Estela, como ficamos? Não vamos separar, vamos?

– Thomas, você realmente acredita que isso – falei enquanto eu fazia um movimento circular com o dedo. – possa funcionar? Você sempre vai desconfiar de mim e seu irmão é seu irmão. Você sabe que não existe maneira de ignorar isso.

– Eu posso ignorar. Eu posso... – a voz ficou baixa. Então alta de novo. – Não vamos fazer exame nenhum na criança. Será minha, independente. – Thomas fincou os olhos que agora estavam frios em Frank. – A criança é minha, entendeu?

– Sim, Thom...

– Ótimo. E eu acho que devemos diminuir o contato. Nos afastar por um tempo.

– Mas...

– Frank, tem de ser feito. Voltarei para a empresa amanhã. Darei meu jeito. Verei o que posso fazer. Você venderá sua casa e usará o dinheiro para comprar um lugar menor. Menor, Frank. Já é hora de terminar com isso.

– Desculpe? – falei enquanto colocava os pés para fora da cama. – Não é só a sua vida que está em jogo aqui, Thomas. Tem muito mais. Tem uma criança. Sei que você está nervoso por tudo, sei que quer punir Frank. Ambos temos culpa.

– Eu não quero...

– Quer, Thomas. Você quer. Você não consegue odiá-lo, mas você não consegue esquecer. Não consegue igno...

– Olá – falou o médico, entrando. Uma enfermeira entrou com ele, tirou o soro do meu braço e me pôs deitada novamente. Uma segunda trazia um carrinho com uma máquina sobre. – Ambos pretendem ficar aqui?

– Não, meu irmão vai embora. – afirmou Thomas. Frank puxou um casaco de couro de cima do sofá e dirigiu-se para a porta. Antes de sair, me deu uma longa olhada.

– Bem, o gel vai estar gelado – afirmou. Uma enfermeira começou a puxar a camisola até minha calcinha que subia apertando-me o início da barriga estivesse visível. Era como um minúsculo short rendado de cós alto. Inicialmente, senti-me desconfortável, mas então estava tudo bem. O médico derramou o gel na minha barriga e, suavemente, começou a fazer movimentos circulares com um aparelho. Uma tela acendeu, negra e então imagens começaram a aparecer, estranhas e mescladas. – Menos de uma semana e meia – afirmou. – Mais de uma semana. Temo que eu não possa te garantir muitas coisas, apenas que parece estar firme. Vamos ter que marcar o próximo ultrassom para a sétima semana de gestação. Poderemos confirmar melhor os detalhes do feto.

– Doutor, a partir de quanto tempo poderemos saber o sexo do bebê? – perguntou Thomas, claramente feliz. Eu tinha um meio sorriso no rosto, duvidoso, no qual eu não sabia se devia comemorar ou não estar grávida. Mas uma sensação terna e doce me corria o corpo e eu me sentia revigorada, viva, feliz, mais feliz do que eu devia me permitir estar. Eu olhei ansiosa para o médico.

– A partir de oito semanas podemos fazer um exame de sangue de sexagem fetal, senhor Clouther, mas ele é um exame bem caro. Depois das primeiras treze semanas, podemos descobrir pelo próprio ultrassom.

– O senhor é obstetra? – o médico sorriu imediatamente.

– Sim, sr. Clouther. Quando sua esposa foi trazida para cá, a médica que iria acompanhá-la já acreditava que pudesse ser algo ligado a gravidez e me indicou. É bom que eu esteja acompanhando desde o começo. Pretendem continuar comigo ou suas mães tem algum obstetra em especial que gostariam para acompanhar a gravidez?

– Doutor – falei, calma. – Estou satisfeita com o senhor. Adoraria que fizesse o meu parto.

Ele sorriu e eu também.


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Notas finais do capítulo

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