Dúbia escrita por Wolfie A


Capítulo 19
Capítulo 19




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Bati na porta duas vezes e ouvi os passos lentos e mortos do outro lado. A tranca girou, a porta se abriu e o semblante esboçou um ligeiro sorriso. Frank tinha a barba por fazer grande e espessa, negra como seus cabelos. O olho já não estava mais roxo, mas a leve fissura sobre o lábio avermelhado continuava ali. Havia uma bolsa escura e flácida abaixo dos olhos verdes opacos. Não havia nada de juvenil naquele rosto.

– Por onde esteve? – ele me olhava atentamente. Os ossos da clavícula estavam acentuados, contudo, os músculos pareciam intactos.

– Por aí – afirmei. Passei a semana inteira indo de lugar a lugar na grande Londres, passando por diversos pontos turísticos e dormindo em qualquer lugar que meu cartão passasse. Sim, ainda estava usando o cartão vinculado à conta de Thomas, mas era por pouco tempo. Eu havia entrado em contato com Pedro, contado sobre a minha vida e sobre como eu tinha feito tudo errado e assustadoramente chorado ao telefone enquanto ele suspirava tranquilo e me acalmava. Ele disse que a culpa não era minha e o peso ficou menor. Era bom ter alguém para contar, mesmo que não nos falássemos há meses.

Frank tinha os olhos vidrados em mim de uma forma incômoda e estranha. A sensação de profundidade que aqueles olhos tinham havia desaparecido. Estavam opacos em um verde desbotado.

– Bem, se veio falar com Thomas, ele está no quarto. Não sai de lá.

Entrei, mesmo tendo que desviar de Frank para passar portal adentro, e caminhei por entre um espaço aterrorizante: o espaço outrora amplo e limpo continuava grande, mas entulhado e desfeito. Havia pares de sapatos próximos ao sofá modular, a lareira estava de um metal mais escuro que o aço inoxidável que eu me lembrava, a pia entulhada de louças nuas e quase limpas, e no aparador copos e mais copos se encontravam em fila. O ambiente estava escuro, as cortinas fechadas, dois pares de travesseiros no tapete da sala e a televisão pendurada em seu módulo móvel como se não fosse movida por dias.

– Meu Deus – eu disse, com uma expressão de dúvida. Virei-me para Frank e olhei-o por meus olhos semicerrados enquanto balançava a cabeça em desaprovação – O que aconteceu aqui?

– Um furacão chamado Estela – ele deu seu melhor sorriso. Não foi convincente.

O som da minha voz talvez tenha despertado o ambivalente Thomas de sua caverna. A porta de madeira correu os trilhos lentamente e então lá estava ele. Parado, com uma cueca samba-canção e espelhos verdes confusos e incertos. Os cabelos num novelo de cachos, nada da aparência limpa e certa de homem de negócios.

– Voltou por Frank? – ele falou com amargura. A voz saiu dura e fria, mas eu pude ver através das palavras o terror que aquele pensamento trazia.

– Não.

Ele continuou imóvel sobre suas pernas nuas. Não tinha a barba por fazer, apesar dos cabelos em ninho e da inconsistência da voz. Os espelhos pareciam os mesmos, apesar dos estranhos traços que agora eram visíveis demais no cenho.

Frank caminhou para o banheiro e então estávamos apenas nós dois. Eu não sabia o que havia se passado ali, como os irmãos haviam lidado com tudo e se eles chegaram a entrar no assunto ou se cada um apenas se trancou em seu estábulo e se pôs a pastar. Eu sentia calafrios estranhos que subiam a espinha e acertavam minha cabeça em impulsos e latejos. Minha voz parecia estar presa à garganta e arranhava-a toda enquanto eu pensava em soltar qualquer som. Caminhei até o sofá, saltei os dois travesseiros no tapete e me sentei, olhando fixamente para o chão como escapatória.

– Só voltei porque existem coisas a serem resolvidas antes de tudo – eu disse, por fim. – Você sabe, o divórcio, a separação oficial e tudo mais. É um assunto chato e cansativo, mas não dá mais para adiar. Vou embarcar na sexta.

– Embarcar? – a expressão no rosto dele me assustou quando de repente Frank estava ali no canto me olhando com o mesmo olhar que Thomas. Ambos pareciam enforcados e mortos pela notícia como se ela fosse uma novidade devastadora. Era devastadora, mas não era novidade.

– Sim. Perdoe-me, eu gastei um pouco do dinheiro da conta... Eu pagarei a você logo. Por isso é melhor que ponhamos um ponto final nessa história de uma vez por todas para... bem, para que ninguém adie o inadiável. O conversível vai estar na garagem, muito obrigada pelo presente, mas agora não tenho porque ficar.

Ele me olhava de um jeito assustador. Os vidros verdes me refletiam mesmo que estivéssemos na penumbra do apartamento. Eu via o movimentar do peito inflando e esvaziando enquanto ele respirava lentamente. A boca virou um traço num piscar de olhos e lá estava o homem que eu conhecia. Percebi que Frank tinha a boca aberta, como se estivesse pronto a falar algo, mas ele se conteve apenas em me observar com uma tênue expressão de alguma coisa que eu não conseguia definir. E eu fiquei mais surpresa com a forma com que eles reagiam ao que, na minha cabeça, era a única coisa que era lógica naquela situação. Concentrei em dizer apenas o necessário.

– Então, Thomas, podemos ajeitar tudo isso ainda hoje?

Ele bufou como um touro e eu vi a raiva correr seus olhos que estavam frios como duas pedras de gelo. – É por isso que veio?

– Por que outro motivo eu viria?

– Tentei te ligar nos últimos sete dias. O celular nem chamava – ele parecia mais ressentido com isso que com todo o resto. – Agora, quando você me aparece, Deus, está com esse olhar calculista e com essa coragem toda pronta para ir embora como se isso tudo tivesse sido um devaneio.

– Desculpa? – eu poderia entender a raiva que ele teria pela traição desmedida e suja, mas como ele podia me dizer aquilo como se eu estivesse errada por seguir em frente?

– Você é egoísta, mesquinha, fria e falsa – a voz começava a tremular. Ele dava passos enquanto falava e ia se aproximando de mim. – Uma vampira de humores – agora ele estava diretamente na minha frente, com o nariz tão próximo que quase se encostava ao meu, fazendo uma enorme sombra sobre mim enquanto me olhava de cima. Eu percebi o acumulo de lágrimas.

Pensei que ele fosse levantar a mão e me acertar a cara com ela. Ele foi encolhendo e encolhendo e então ele estava sentado em frente às minhas pernas com o rosto vermelho e adoentado. Parecia sem fôlego. Frank observava tudo como um espectro. Eu quase conseguia ver a aura negra em que ele estava, provavelmente se decidindo sobre o que pensar.

– Bem, você está certo – eu disse com tristeza.

– Estou certo? – a voz dele subiu demais. – Eu sei, estou certo! Eu queria ouvir da sua boca que não. “Não, Thomas, eu não sou assim”, mas você...

O tom dele desceu de até que eu não conseguisse distinguir os sussurros. Então Frank estava ali, agachado, prestes a apertá-lo. E foi o que ele fez. Deu um abraço forte, eu pude ver os músculos dos braços apertando o tronco de Thomas com força, força demais talvez, e então Thomas só enterrou o rosto no ombro pelado de Frank e eu me senti um lixo. Uma destruidora de lares, uma fragmentadora de vidas, um furacão ambíguo e frio e vazio. Eu me senti péssima, me senti desfigurada, fraca e ínfima.

Entre um soluço e um desafino, falei rouca.

– Já está feito, Thomas. Já estraguei tudo. Sinto muito, mas não tenho como consertar isso.

Frank subiu os olhos e eu pude ler os lábios dele, mas nenhum som saiu. “Eu te amo”, ele disse. Então ele apertou Thomas ainda mais forte e sussurrou algo no ouvido dele. Então ele se levantou e foi até mim. Deu-me um beijo. Eu não soube qual havia sido a expressão de Thomas naquele momento, mas então ele voltou até o irmão e o puxou para cima.

– Vai, Thomas. Você precisa dela. Ela precisa ficar.

Estavam a menos de um passo de mim e Thomas me puxou do sofá e fincou o olhar no meu com tamanha voracidade que pensei que desapareceria.

– Como fica isso? – ele perguntou em dúvida. Isso, ele disse, e eu acho que quis dizer nós três.

– Não fica, ela é sua esposa. Sua.

Sorri fraca e verdadeiramente. Passei as mãos pelos meus cabelos perdida e assustada. Minha cabeça deu uma volta completa. Meu estômago revirou. Cai no sofá num súbito quando minha perna falhou. Ambos os homens arregalaram os olhos e saltaram até mim, tocando-me os pulsos e me olhando nos olhos. Eu estava com frio.

– Estela? – chamou Thomas respirando rápido.

– Naquele dia... Thomas, naquele dia ela passou mal assim, foi por isso que te liguei.

Eu queria protestar e dizer que era apenas um...

– Naquele dia ela estava passando mal?

– Fui ajudar ela e acabei beijando-a.

– Canalha – arfou Thomas com um súbito ódio. Então voltou a olhar para mim desaparecendo com qualquer raiva que tivesse. – O que está sentindo?

– Eu...

– É melhor chamar um médico, Thomas.

– Cala a boca. Pega o telefone.

Frank levantou e procurou pelo telefone na sala. Eu queria protestar, continuamente eu queria, mas eu não tinha força para achar a voz. Eu estava com frio, frio demais. Estava com sono demais também. Não estava bem. Eu não sabia se estava mal por aquilo tudo.

– Estela, você está comendo direito?

– Para de interrogar.

– Que?

– Ela tá mal, Thomas. Ela não vai responder. Oi? Aqui é Frank Clouther. Precisamos de um médico aqui... – Frank começou a citar dados e dados e logo o telefone estava desligado e ele estava ao meu lado de novo. Eu olhava para ambos e não sabia distingui-los. As faces se misturavam como em um sonho. Um sonho que eu já tivera. As vozes também. E então eu não estava mais lúcida.


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Notas finais do capítulo

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