Dúbia escrita por Wolfie A


Capítulo 14
Capítulo 14




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Tenho a expressão mais sórdida que já vi.

A sala na qual estamos é ampla e branca. Algumas flores estão espalhadas de forma grotesca. Elas ficam em vasos de vidro em cima de quase tudo na qual se pode colocar. Existem outras famílias aqui, sentadas em lugares opostos, de olhos semicerrados, bocas semicerradas, sobrancelhas arqueadas. Existem outras dores aqui.

Uma mulher com cabelos bem presos a cabeça fica próxima ao elevador. Ela usa um terno feminino branco. As luzes da sala são enormes, atravessam o espaço quase todo. Meus olhos piscam inquietos.

– Ele está bem – afirma Thomas.

Estamos só nós dois ali, embora eu tenha insistido para que ele ligasse para os pais. Ele se negou. Disse que cuidaria de Frank. Eu perguntei o que diríamos caso Frank morresse e eles fossem impossibilitados de estarem com o filho. Thomas sorriu para mim e me abraçou.

– Ele não vai morrer.

Uma hora se passa, mas se parece com dias. Estamos ali a tanto tempo que meus olhos quase se esquecem das cores além do branco. Minha retina está monocromática. O médico atravessa uma porta com uma prancheta em mãos.

– Senhor Clouther?

Nos levantamos. O médico se aproxima.

– Sim?

– Frank é seu...?

– Irmão, Doutor. Estela é minha esposa.

– Bem, não foi nada grave. Apenas cortes, provavelmente de vidro. Ele foi agredido, tem algumas escoriações pelo corpo, e é só. Ele não teria conseguido chegar na sua casa se fosse algo mais sério. Por ser agressão, teremos de avisar a polícia. Ele poderá dar queixa assim que conseguir alta. Só deixaremos que tome mais soro e depois vocês poderão levá-lo. Caso os senhores prefiram, há um restaurante bom próximo daqui. Levaremos mais algumas horas, então se preferirem ir para casa, tomarem banho... Não se preocupem, ele está perfeitamente bem e acordado.

– Ele já está acordado?

– Sim. Ele estava bêbado, e essa é a grande razão da fraqueza e do estado em que ele estava. Os machucados foram leves, embora ele vá ficar dolorido por alguns dias.

– Aquele estado era bebida? – perguntei, pasma. Minha expressão mudou de sórdida para enraivecida. Não acredito.

– Sim, senhora. Mas o soro já passou o estado em que ele estava. Ele está relativamente bem.

O médico nos deixa ali, parados sobre nossos pés. Thomas tem uma expressão de suavização, como se tivessem tirado um peso de suas costas; eu, por outro lado, tenho uma expressão pasma.

Cada um destrói sua vida a sua maneira.

Saímos do hospital, eu com minha roupa suja de sangue, que, antes, parecia estar empapada, mas agora vejo que eu havia exagerado, e Thomas com seu terno sem paletó. Thomas está mais pálido que quando o conheci, como se sua cor estivesse sendo restaurada, mas eu ainda sou alguns tons mais branca. Thomas me encara pelo retrovisor, seus olhos nos meus.

– Sabe, Estela, as coisas estão péssimas.

– Tudo bem – digo, querendo ter menos coisa para pensar. As estrelas do lado de fora da janela parecem constelações inteiras e vivas, criaturas orgânicas vivendo.

– Nós vigiamos as ações que são postas à venda. Eu, Frank. Meu pai tinha esse costume. Ele permitia que todos que trabalham para nós pudessem colocar ações à venda, e por isso tínhamos que estar atentos às ações que estavam sendo vendidas. Às vezes, ações tinham quedas grotescas e perdiam quase todo seu valor, mas, da mesma forma, ganhavam valores enormes de um dia para o outro. Alguns empregados não sabem muito e acabam colocando à venda ações que vão subir assustadoramente seu valor apenas porque tiveram uma queda assustadora no dia anterior.

– Sei. Deixe-me adivinhar... Alguém não vigiou uma dessas vendas e uma ação de grande porte foi vendida.

– Pior. No período em que estivemos nos casando, aquelas duas semanas em que não trabalhei, resultaram numa perca de 80% das ações. Inúmeras ações foram vendidas, quase nenhuma foi comprada. Mas, agora, temos dívidas por isso.

– Quem estava responsável por vigiar as vendas?

– Frank.

– Ah – digo baixo.

– Frank perdeu toda a parte dele na empresa. Foi vendida. Meu pai perdeu 50% da parte dele, eu também. Não podemos mais dar ordens na empresa, somos apenas acionistas, agora.

– Mas... a empresa não é de vocês?

– Eu e Frank tínhamos 40%. Sobravam 20% para meu pai. Tecnicamente, éramos sócios e meu pai apenas um acionista, embora a empresa tivesse sido dele algum tempo atrás.

Eu podia sentir o pesar na voz de Thomas, mas ele não parecia ressentido, nem bravo. Não parecia estar furioso com Frank ou com ninguém. Tinha o tom mais suave que já vi.

– E foi uma única pessoa que comprou? Toda a parte de Frank e a sua?

– Foi. Ele está no mesmo ramo que nós, mas é americano. Veio investir aqui, achou essas ações com preços baixos, mas que, como ele sabia, subiriam logo, e as comprou. Ele tem 70% da empresa, tenho 20, meu pai tem 10. Mal podemos palpitar, nosso lucro vai ser infinitamente menor, Frank não vai conseguir manter o estilo de vida que tinha. E sequer entendemos o que aconteceu com as vendas ainda.

– Meu Deus.

Fico em silêncio até chegarmos em casa. Tomo um banho demorado e esfrego a esponja em mim com força. Quero retirar a sensação horrível do sangue. Thomas fala comigo do lado de fora do box, mas não presto atenção. Tenho meus olhos fixos em algum ponto na cerâmica branca. Deixo a água cair quente nos meus músculos das costas, no meu ombro tenso. Fecho meus olhos. Presto atenção no barulho da água caindo.

– Estela? – indaga Thomas.

– Sim? – digo, de olhos fechados.

– Eu gostaria de tomar banho também.

A hora devia estar aproximando. A hora de buscar Frank, de encarar o rosto machucado e os olhos tão verdes quanto os de Thomas. Talvez houvesse briga entre eles. Ou talvez Thomas seria apenas Thomas, quieto e paciente.

– Pode entrar, Thomas.

Ele dá um meio sorriso, tira as roupas, abre o box. A nudez dele não me envergonha mais, do mesmo jeito que não me envergonho com ele. Na verdade, ele tem um corpo admirável. Espero que eu também tenha.

– Estive pensando em colocar um segundo chuveiro aqui – ele diz quando me beija a nuca.

– Aqui é grande, não vai ser difícil – comento. Ele não parece realmente interessado nisso. Tem os olhos vazios, fixos em nada, enquanto pega a esponja para passar em si mesmo. Eu entendo, não é fácil. Existe muita coisa em jogo. Existe família ali. E o motivo pelo qual eu nunca gostei do conceito família é porque nós sempre temos que ceder. Ceder pela família. Sangue do nosso sangue, pessoas que, mesmo sendo tão diferentes, convivem porque se amam, mas não sabem porque se amam. Eu sempre estive com medo de ceder a mim por alguém, por isso nunca estive preparada para o conceito família.

Consequentemente, nunca acreditei no amor que existe nela.

Mas vendo Thomas ali, quieto pela inquietação de Frank, consigo me lembrar do medo de encontrar meu irmão morto. É uma sensação ruim. Mas não sou altruísta, era medo de ser a pessoa a encontrar. Era medo do que vinha depois. Medo de perder, nunca tive. Nunca tive medo de perder nada. Terrível, não? Mas o que é eterno? Nada, nada. Nada é eterno. Nada perdura para sempre. Que culpa tenho eu se eu sempre soube disso? Se eu sempre entendi que o amor era dor de poeta?

Abro o box, visto o roupão, amarro os cabelos molhados numa espécie de ninho. Meus olhos estão inquietos. Existe uma quimera em mim. Enquanto estico os braços para alcançar a escova dental, ouço o cantarolar entristecido de Thomas ecoar nas paredes do banheiro. Eu adoraria saber por que ele tem sede de presença se a família sempre foi tão inteira. Não é como se tudo fizesse sentido.


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