Dúbia escrita por Wolfie A


Capítulo 13
Capítulo 13




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Eu acordo no escuro e percebo que talvez esse seja o costume. Nenhuma luz atravessa a cortina. Ela está fechada. Estou seminua. Ninguém está ao meu lado. Thomas deve ter ido trabalhar.

Ao me observar no espelho, depois de amarrar as cortinas, percebo que a raiz está enorme: quase um dedo. Visto-me de súbito. Corro até o elevador, entro no conversível que ganhei de Thomas, dirijo até a farmácia.

Depois da minha loucura visível, abaixo a cabeça e deito nas minhas próprias pernas com o coração acelerado. "O que fiz?". Observo-me no espelho novamente, meus cabelos estão totalmente descoloridos. Parece que voltei para a infância. Quase consigo ouvir os rumores, não só dos alunos, mas também dos professores. Quase posso vê-los me observando, todos com os olhos fixos nos meus olhos ou nos meus cabelos. Eu não devia ter comprado água oxigenada na farmácia; devia ter comprado tinta. Mas enlouqueci. O que tenho feito, afinal? A ideia inicial era casar e tomar as rédeas das qualidades sociais que suavemente descartei. Agora faço exatamente o contrário. Não sei porquê.

"Acalme-se, Estela", eu me digo. Visto um vestido de seda azul que está pendurado no cabide. Deve ser de verão, acredito, mas a chuva cai lá de fora tão calma quanto o outono permite. Logo estará nevando. Ouço a porta bater. Thomas entra, parece desconfiado, os olhos verdes refletindo a luz que o fogo emite. Tem a boca em uma curva inversa, quase triste. Nunca o vi assim.

– O que foi, querido? – pergunto. Percebo que é a primeira vez que ajo da forma que se espera.

– Nada – ele diz, dando seu melhor sorriso. Posso ver que há algo errado. Não comigo, não. Ele não vê meus cabelos descoloridos. Estou com uma boina preta na cabeça, estou na penumbra. Ele não poderia ver. Mas há algo de errado com ele. Talvez com a família. Talvez com a empresa. Não dá para saber.

– Diga-me – insisto.

– Não dá para esconder as coisas de você, não é mesmo? – ele começa a caminhar, calmo, suave. Joga a chave do carro em cima do aparador de madeira. Continua caminhando. Alcança-me.

Os olhos dele crescem quando ele me visa de perto. A luz baixa do fogo bate nos meus cabelos e reflete. Minha boca está rosa, eu passei o batom mais claro que pude para redirecionar a atenção. Não funcionou.

– Meu Deus – ele tira meu chapéu num rápido movimento de mãos e me toca a nuca, me puxando para próximo dele. Ouço-o suspirar. – Você está maravilhosa.

A saliva dele é quente e tem gosto de alguma bala de hortelã. Dessa vez eu não sinto necessidades de lutar contra mim mesma, o toque dele é bem vindo. Eu preciso. Eu preciso de esconder meus medos, de aceitar meus cabelos e não me ver como a aberração do show de estranhezas. Sempre fui elogiada, mas nunca soube lidar com eles. Os elogios sempre pareceram alguma espécie de resposta rápida pelo talvez impacto da minha aparência. Ainda assim, não vou negar: sempre adorei meus olhos de quimera. Quimera louca, eu diria. Sempre adorei os olhares vislumbrando a heterocromia duvidosa que poderia ser parte da minha própria personalidade. Eu poderia ser dividida. Eu o beijo.

No meio da noite ouço o telefone tocar. Quando abro meus olhos devagar, focando suavemente no contorno de Thomas contra a lua, ele fala ao telefone.

– Não, imbecil! Você não ficou aqui para resolver essa merda?

As palavras de Thomas me atingem antes das minhas sinapses. Não consigo processá-las por um período, mas então elas percorrem minha cabeça em um milésimo.

– É claro que não, Frank! É óbvio que não! Eu estava me casando enquanto você supostamente cuidava das ações. Perdemos quase tudo.

O olhar talvez entristecido de Thomas agora parece fazer sentido. Alguém fez alguma merda errada. Frank, aparentemente. Eu me levanto, pondo meus pés para fora da cama tão suavemente quanto posso.

– Eu não sei como iremos resolver isso... eu não sei. Talvez papai saiba, mas não posso afirmar... – a voz dele vai ficando cada vez mais baixa, até parecer um sussurro. Eu o toco o peito despido e ele vira o olhar para mim. Parece perdido. Eu levanto minha mão até o telefone, abaixo-o suavemente até que ele solte o telefone ao chão. O telefone cai no tapete felpudo, quase posso ouvir o pedido de ajuda vazando dos olhos vidrados em mim. Eu beijo o peito dele e o puxo novamente para a cama, mas estou tentando pensar nas possibilidades de um problema grande. Seria péssimo algum problema agora. Seria péssimo. Eu tento me convencer de que não sou uma pessoa boa e tento planejar alguma coisa para caso o casamento de fachada escorra ralo abaixo, porém só consigo sentir a pele quente dele contra a minha, enquanto eu fecho os olhos e começo a adormecer.

Estaria eu apaixonada? Não. Com certeza não, eu me digo. Eu nem acredito nisso. Só que algum carinho vem surgindo em mim. Como resposta? Não posso dizer. É como se minhas verdades estivessem todas perdidas. Como se minhas certezas estivessem bagunçadas na minha cabeça. Eu não posso dizer muito bem quem sou. Tenho medo dos meus cabelos sem cor, mas sou confiante com meus olhos de víbora. Eu sou uma vadia. É o que eles diziam, é o que eu acredito. Por muito tempo eu acreditei. Mas ter me casado fez minhas certezas ficarem todas confusas, e talvez minha raiva toda seja por isso: eu não estava pronta para reavaliar a mim mesma.

Mas quem é que está pronto para levar um tiro de verdades e não morrer?

– Eu te amo – ele disse, a voz flutuando no meu subconsciente. Talvez eu te ame, mas não posso dizer. Não me ame. Sou péssima.

– Durma – eu disse, mas não consegui me ouvir.

A noite voou sobre nós. Acordei só. Não fiquei surpresa. Tinha um bilhete escrito a punho na mesa. Dizia para eu me cuidar pois ele voltaria logo. Até que meus cabelos ficavam bons totalmente brancos. Eu gosto do sol refletindo nele, deixando os fios prateados com o brilho. Não sei por quê nunca me permiti ver-me assim, crua. Pareço real, apesar da cor anormal de cabelos.

Ouço um bater na porta. Frank não me espera abrir, entra rápido com cortes no rosto. Não entendo.

– Frank o que é... – e abraço-o antes que ele caia de rosto no chão. O sangue dele escorre pelo meu tronco manchando-me a roupa.

– Me ajud...

– Calma, respira – digo. Não sei lidar com a situação. O cheiro do sangue me enoja. O cheiro do ferro líquido e a espessura, a forma com que ele coagula e a bagunça que ele faz com sua cor espalhafatosa. É o que penso quando vejo o sangue escorrer pelo rosto do outrora bonito Frank. Agora não mais.

Deito ele ao chão, esticando o corpo inteiro e alcançando o celular. Digito os número que tenho me forçado a gravar. Thomas atende.

– Oi, Estela.

– Preciso da sua ajuda – digo ofegante em cada palavra. – Seu irmão está jogado na nossa sala, tem sangue... Meu Deus.

– Estou indo.

Consigo sentir o cheiro do álcool na boca de Frank. Puxo ele pelo chão liso, até alcançar a lareira e ligá-la. É dia, acabei de acordar. Estou ilusória. Frank me observa entre piscadelas fracas.

– Estúpido, não durma – minha voz soa grosseira, assim como era com meu irmão. – Não durma, não durma.

A maior verdade sobre mim é que nada, nada nessa vida me causa mais medo que ver alguém morrendo. Não é pela vida que vai. Não é pela bagunça que fica. É por perceber que o sangue vai diluindo e vazando, sujando e empapando tudo. É por perceber que logo sobrará um corpo alvo e álgido, duro como pedra, e depois uma explicação, e depois um funeral. O que me assusta é saber que, mesmo depois de morrer, tantas coisas ficam. Pessoas e regras. Regras e pessoas. Eu só não quero que ele morra nas minhas mãos, só não quero o sangue quente em mim.

Meu Deus, estou fadada.


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