Dúbia escrita por Wolfie A


Capítulo 10
Capítulo 10




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Ouço a campainha tocar duas vezes. Um zumbido me atordoa enquanto tento abrir os olhos. O olho esquerdo, azul, demora mais tempo para responder ao estímulo da luz e sempre é mais sensível que o castanho. Eu não me recordo do ambiente que estou imersa.

As cortinas do ambiente estão fechadas, mas a luz forte do sol passa por uma fresta entre elas. Ela bate diretamente em meu olho e eu desvio minha cabeça tentando enxergar. O quarto é grande e, perto da sacada de vidro que fica logo atrás das cortinas, duas grandes plantas estão simetricamente colocadas. Uma televisão está disposta em frente às cortinas, pendurada por algum suporte de ferro. Ela parece fora do seu ambiente e então percebo o controle no suporte ao lado da cama. A tevê se desloca.

Um tapete felpudo abraça meus pés quando eu piso no chão do quarto. Estou nas mesmas roupas que me lembro, mas minhas joias foram retiradas de mim. Elas estão ao lado do controle, sobre o suporte de madeira. Eu arrasto meu peso sobre minhas pernas e ouço um zumbido de vozes vindo do outro lado da enorme porta de correr de magno.

Para a minha surpresa, quando empurro a porta, ela não parece nada pesada. Ela desliza sobre suas rodas suavemente respondendo às leis de Newton. Vejo dois homens abraçados e percebo a simetria perfeita do apartamento: o quarto está exatamente no centro do imóvel e a grande porta de correr dá na sala ampla e larga com seus sofás modulares cinzas de veludo. O homem que abraça Thomas tem seu rosto virado para mim e Thomas tem o rosto virado para a porta.

O homem lembra o Thomas, mas possui formas muito mais expressivas e detalhes muito mais juvenis. Ele possui espelhos verdes relutantemente iguais aos de Thomas, entretanto os verdes parecem muito mais profundos. Os lábios também são um expressivo traço sem carne, mas também muito mais vermelhos que a boca de Thomas. A pele é branca ao extremo. E, indo de encontro à aparência de Thomas, os cabelos do homem são intensamente escuros, não castanhos.

Ele me olha nos olhos e parece perceber no mesmo instante a quimera em mim. Sou híbrida de mim mesma, eu sei. Eu desvio o olhar.

– Ah – Thomas vira para me apresentar. – Agora finalmente vocês se conhecem. Essa é minha esposa, Estela. – Ele diz, levando-o até mim. – E, Estela, esse é meu irmão, Frank.

Nós damos um aperto de mão muito fraco por conveniência.

– Prazer conhecê-lo.

– Meus pais falaram muito bem de você.

– Falaram? – pergunto.

– Falaram. Disseram que foi o casamento mais lindo que já viram, que você tem algo de única e bela e que é uma verdadeira dama.

Irônico.

– Que graça! – sou simpática.

– E agora eu entendo o que eles falam da sua beleza. Genuína e autêntica – ele diz com o tom descendo. Parece se focar nos meus olhos. – E seus olhos são incríveis.

– Vou começar a ficar com ciúmes – Thomas diz com a voz calma. Não soa como uma advertência, mas os olhos de Thomas estão me consumindo como ele sempre faz. Ele parece acreditar que me ama.

– Devia mesmo – retruca Frank. O sorriso é simpático e eles se abraçam novamente. Frank, embora pareça mais novo, parece mais preocupado com o irmão. Os papéis rapidamente se invertem e o irmão mais novo toma posse da preocupação enquanto o irmão mais velho se torna a atenção especial. Eu os vejo.

– Estela, ele quer mostrar Londres para você. Ele é melhor com pontos turísticos, sai muito mais que eu. Onde ele nos disser para ir, nós iremos.

– Não seja exagerado, Thomas. Estela, eu só quero conhecer você melhor. O casamento foi um pouco rápido, só estou te conhecendo depois de casados, você sabe... E os elogios são tantos que me deixaram um pouco curioso.

Os olhos verdes têm um ar metafórico diferente. Ele é mais juvenil, mais bonito, mas Thomas é mais sóbrio e pé no chão. Alguma coisa me diz que Frank é um homem de moral corrompida. Não posso julgar nesse quesito, me inspiro apenas na dama que devo ser. Eu deixo meus olhos caírem. A viagem ainda circula na minha cabeça e a introdução oficial do casamento é um pouco assustadora. Você sabe. Até ontem éramos dois, agora percebo que, no conjunto, vem uma família. Acho que eu já pontuei minha opinião sobre família. São pessoas que se “amam” porque são obrigadas a se amarem. Muitos são mais sinceros com amigos, com o dono do bar, com a moça da recepção. Muitos preferem os braços desconhecidos ao aperto de mão dos próprios pais. Quem é que pode julgar?

Eu me viro, caminho até o sofá cinza de veludo e me sento. Meus olhos estão pesados. Penteio meus cabelos com os dedos, dou um sorriso fraco, mais de recepção que de empolgação, e fixo meus olhos nos verdes de Thomas. Ele se preocupa.

– Você está bem, Estela? É o estômago?

– Fique tranquilo é... é só um revirar. Passa rápido, você sabe. Você se lembra de Viena.

– O que é que ela tem? – Frank pergunta.

– Ela tem o estômago fraco. Viagens de aviões bagunçam ela um pouco... Eu pedi para Pedro comprar os remédios, devem estar aqui em algum lugar.

Ele entra no quarto e eu ouço gavetas serem reviradas. Meu estômago embrulha, porém é só de medo. Eu oscilo bastante entre ser forte e ser fraca, ser boa e ser má. Contento-me em ser o necessário. Se preciso ser má, adoto meu lado cruel. Se preciso ser boa, então não pestanejo. Naturalmente meu estado de espírito é audacioso. Eu não costumava ter amigos porque eu não conseguia acreditar numa relação sem interesses – e ainda não acredito. Eles até me consideravam e, vez ou outra, pareciam se sentirem comovidos pela minha percepção. Eu parecia ser exatamente aquilo que eles precisavam, desde meus onze anos. Mas eles nunca pareciam ser o que eu precisava e, um dia, eu decidi que as amizades também não são lá relações muito reais.

Não que eu despreze as relações humanas. Sabe aquele lado freudiano que diz que somos animais domesticados? Que a civilização nos rege? Só sou adepta. Não acredito no ser humano como uma ilha, todavia não acredito no ser humano como humanista. E que soa bastante engraçado, uma vez que humanidade vem da índole de ser humano, mesmo que sejamos tão pouco. Talvez nem sejamos humanos. Reagimos como máquinas, programados.

Não, programados não. Algumas pessoas não controlam o lado cruel das emoções e se afogam em choro. O lado emocional é uma piada de mal gosto. Quem foi que explorou e ensinou para nós os sentimentos? A tristeza existe, a felicidade existe. Todo o resto, todo esse restante que a gente insiste em dizer sentir, que a gente insiste em pregar, em anotar, em crucificar e ressuscitar, só faz parte da filosofia dos poetas. Não vou mentir, acho bonito. Mas um dia vi o mundo e ele soterrou meus olhos. Eles nasceram um de cada cor.

– Aqui! – Thomas atravessa a porta de correr e se senta ao meu lado. – Toma, é só um comprimido. Frank, pega água para a Estela, por favor.

Frank traz a água até mim. Agradeço. Coloco o comprimido na boca, como se eu fosse tomá-lo, e penso se seria uma boa ideia. Talvez não. Tomo a água mas não deixo que o comprimido desça e, em seguida, me levanto e vou até a bancada. Faço movimentos suaves até conseguir alcançar o lixo, onde cuspo o comprimido. Thomas e Frank começam a conversar. Vejo Thomas, mesmo conversando com o irmão, fixar os olhos em mim.


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