A Última Harrison escrita por Caderno Azul


Capítulo 2
Esconde-Esconde




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Suas mãos trêmulas foram até os cabelos, os prendendo num nó. Kate se obrigou a pensar em um plano, algo que pudesse tirá-la dali. O instinto de preservação vencera. Ela não morreria hoje.

Olhando ao redor do porão, percebeu que sua mochila do colégio ainda estava lá. Como sempre, assim que chegava em casa, passava no porão e de vez em quando esquecia seu material lá. O que antes era motivo de briga e atraso significava agora sua salvação. Dentro da mochila, ela achou livros e canetas, mas onde ela pretendia ir, não precisaria disso. A carteira com algum dinheiro sim, isso lhe seria útil se o seu plano funcionasse e conseguisse escapar viva.

Kate olhou mais uma vez pela janela para verificar se os homens ainda continuavam lá. Percebeu que pretendiam queimar a casa, porque um deles começou a espalhar gasolina pelo quintal. Ela logo constatou que eles não queriam apenas apagar o vestígio do crime, mas impedir que qualquer pessoa que tivesse dentro de casa escapasse, por isso o fogo começaria pela saída deixando todos os que ficaram para trás numa armadilha de fogo, sem brecha para fugir. Respirou fundo, suas mãos ainda tremiam e ela podia sentir as lágrimas caindo pelo rosto, mas não poderia perder seu tempo agora. Não se quisesse sair dali e vingar sua família.

Com a mochila nas costas, Kate destrancou e abriu a porta do porão, foi até a sala e ascendeu a luz para logo em seguida apagar. Aquilo deveria ser o suficiente para chamar a atenção de um daqueles assassinos. Quando voltou correndo para o porão, tropeçou no corpo de alguém, mas jamais descobriu de quem. Sem coragem de olhar para trás, se ergueu ouvindo atrás de si passos apressados. Mal trancou a porta do porão quando ouviu uma batida insistente do lado de fora.

–Abra a porta! Sabemos que está aí! – o homem desconhecido ordenava ao mesmo tempo em que se lançava com violência contra a porta. Kate andou para trás, assustada. Ela não sabia se a porta poderia resistir a outro baque daqueles. Virou-se e liberando a portinha que ligava o porão à rua, saiu da casa e correu mais rápido do que jamais havia corrido. Se havia alguém a seguindo, ela não quis saber. Só continuou correndo rumo à escuridão da noite.

Como os três homens haviam entrado na casa, não conseguiram interceptar a garota que fugia pela saída externa do porão e virava a esquina com a maior velocidade que seus pés descalços permitiam. Um deles, ao perceber que haviam perdido a filha mais nova, socou a parede da casa que estavam prestes a incendiar.

–O chefe não vai gostar nada de saber disso.

O líder do grupo lhe deu um tapa na cabeça.

–E por acaso você vai querer dizer a ele que não deu conta do recado? Porque eu não vou desistir de pôr as mãos nessa fedelha e acabar o serviço.

O terceiro homem, que analisava se todos os integrantes da família estavam realmente mortos, concordou com a cabeça.

– Vamos, ela não pode ter ido muito longe.

A duas quadras de distância, Kate ainda corria sem fôlego pela rua, atraindo olhares indesejáveis. Não iria muito longe se todos pudessem reconhecê-la. O longo cabelo ruivo acabaria chamando atenção. Na próxima esquina havia uma loja de conveniência. A garota entrou nela, tomando o cuidado de abaixar a cabeça quando percebeu que havia uma câmera de segurança. Não sabia com quem estava lidando. Queria poder apagar todo e qualquer resquício seu. Munida de tesoura e tinta de cabelo, ela foi para um lugar que julgou ser seguro. O hotel do amigo de família, Charlie.

Ele sempre havia sido muito hospitaleiro e daquela vez, não seria diferente. Charlie sabia das brigas frequentes que Kate tinha com a família e sempre oferecia um quarto desocupado para que a garota esfriasse a cabeça e que os pais ficassem tranquilos. Ela não falou porque chegara tão tarde, tampouco porque estava descalça e com o aspecto de quem acabara de correr uma maratona. Charlie tampouco perguntou, ele só lhe deu a chave habitual com uma piscadela.

Ao entrar no quarto, Kate espalhou todos os apetrechos que acabara de comprar. Olhou para seu reflexo confuso no espelho do banheiro e num impulso cortou seu cabelo na altura dos ombros. Ela lembrou como tinha esperado anos para que ele chegasse até a cintura, mas não tinha tempo para vaidade. Algo nela havia se rompido e coisas que antes pareciam importantes, agora lhe soava ridículas. Tingiu seu cabelo transformando o vermelho vivo em um negro quase azulado. Jogou os rastros da mudança no lixo e o assistiu queimar e se deteriorar até virar cinzas. Perdeu a noção de quanto tempo havia ficado ali, hipnotizada pela visão das cinzas no banheiro, pelas cinzas a que tentaram lhe reduzir.

Foi despertada do transe quando ouviu mais um vez o barulho de tiros. Fechou os olhos em um pedido mudo de desculpas a Charlie. Encarou a tubulação de ar, sua última esperança. Foi preciso subir na televisão para chegar até lá e seguir apressada até cair no latão de lixo, seu ponto final. Levantou-se sem notar os vários arranhões que ganhara com o trajeto peculiar que escolheu. Correu para o orfanato da cidade, onde uma senhora de robe e aspecto rabugento atendeu a porta.

–Quem é você? – ela lhe perguntou de modo curioso, mas não propriamente desagradável.

–Sou Melissa Smith, meus pais sofreram um acidente de carro. Eu não tenho nenhum outro lugar para ir – ela falou com lágrimas nos olhos, num misto de mentira e verdade. A emoção era real, mas o sotaque carregado do sul que incorporou na fala era apenas uma artimanha para se livrar de qualquer tipo de associação que alguém fizesse com a garota local que teve a casa queimada. Além disso, acidentes de carro aconteciam a todo instante. Quanto ao seu novo nome, Melissa havia sido seu gato de infância e Smith era o sobrenome de uma de suas autoras favoritas.

–Minha querida, saia dessa chuva ou vai ficar resfriada – a senhora falou a abraçando e abrindo caminho. Kate sorriu e entrou no orfanato, aliviada que seu disfarce havia funcionado. – Sou Giry, a dona desse orfanato. Eu não farei perguntas, você se surpreenderia com a história de cada um que passou por aqui. É uma pena, contudo, que terei de me despedir de alguns em breve.

Kate franziu a testa, não gostando nada daquela história.

–Se despedir?

Giry sacudiu os ombros.

–Ora, não se preocupe, querida. É apenas filantropia. Você sabe, os donos do internato Wilshire estão buscando fazer sua mais nova boa ação – ela narrou com os lábios crispados e Kate logo entendeu que Giry não era muito afeiçoada àquelas pessoas. – De todo modo, eles decidiram organizar uma prova aqui e oferecer às melhores notas uma bolsa integral em seu internato, com tudo pago desde alimentação até material escolar.

–Isso parece ótimo – Kate acabou pensando alto enquanto deixava que a senhora a guiasse para o interior das instalações gastas do orfanato.

–Eu não teria tanta certeza disso, minha doce criança. Sabe lá por quantos atos vis esses milionários buscam redenção agora. Não se pode pagar pela sua absolvição, lembre-se disso. Mas não precisa se preocupar com isso, tudo que precisa nesse momento é de um banho quente e uma sopa.

Nas próximas duas semanas, Kate passou submersa entre folhas de livros e lenços de papel. Ela colocara na cabeça que sua única chance de vingança contra os homens que assassinaram sua família estava no internato Wilshire, o colégio conhecido pelo seu prestígio e sistema rígido. Giry lhe contou tudo sobre os benfeitores que estavam dispostos a pagar uma grande quantia para fazer filantropia. Contou que a maioria se criara ali, quando crianças e que quando cresceram e se tornaram homens e mulheres poderosos, tentara de alguma maneira pagar pelo que aquele lugar havia feito por eles.

Como esperado, havia sido noticiado no jornal o incêndio na casa do renomado doutor Harrison e sua família. Contudo, não havia nada falando sobre o desaparecimento da filha mais nova. Até onde todos sabiam, Kate Harrison havia morrido no horrível acidente daquele domingo à noite. Até onde todos sabiam, Kate Harrison não existia mais.

E durante aquelas duas semanas, ela não se importou com isso. Se o preço de sua vingança era enterrar Kate Harrison e renascer como Melissa Smith, a garota não relutaria em pagar o preço. Não até que ela visse os culpados arcarem com as consequências dos seus atos. Ao final daqueles dias, ela recebeu a resposta que precisava para prosseguir com o seu plano. Elas estavam impressas na pomposa carta direcionadas à Melissa Smith: “Parabéns! Você foi aprovada na Academia de Estudos Wilshire. Seja bem vinda.”

Kate abriu um sorriso que nem sabia possuir. Ela não tinha ideia de quantos dias ainda viveria, mas tinha a certeza que não os gastaria lamentando a perda de sua família. Houve uma época em que ela teve medo. Isso foi antes, no entanto. Quando ela ainda tinha algo a perder.

Havia um novo propósito em sua vida. Mais importante que os sacrifícios que teve de fazer para chegar até ali. Mais importante que sua dor. Mais importante até que sua existência. O nome desse propósito: Vingança. Porque dessa vez os assassinos, quem quer que fossem, mexeram com a família errada. E Kate teria todo o prazer de mostrar isso e eles.


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Notas finais do capítulo

Hmm.. agora que a história realmente começa.
Estão preparados?
Será que eu mereço algum comentário?