A Última Harrison escrita por Caderno Azul


Capítulo 3
Iniciação




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Kate e mais meia dúzia de crianças foram largadas na frente do internato Wilshire naquela manhã gelada de segunda-feira. Com uma das mãos ela segurava uma grande caixa com aquilo que aprendera a chamar de suas coisas. Tratava-se de roupas de doação e itens básicos que o orfanato lhe fornecera. Nas outras, a mochila nova com os livros e o material necessário para o internato. Assim que o carro que os levara até ali deu partida, cada um seguiu seu caminho. Na pressa de se misturar com a multidão, os outros órfãos acabaram se separando, mas Kate sabia que os reconheceria se os visse andando pelos corredores entre uma aula a outra. Não era nada pessoal. Eles só queriam se misturar com a multidão de crianças privilegiadas e construir um novo futuro, um que não incluísse memórias amargas da época do orfanato. Ela tinha toda a intenção de seguir o mesmo caminho, se destacar não estava nos seus planos. Infelizmente, isso estava prestes a mudar.

Segurando precariamente o mapa que haviam lhe dado na saída do orfanato, ela percebeu que seu dormitório era o último, ficava na Ala Oeste, perto da saída de incêndio. A caixa que levava escondia todo o lado direito de sua visão. E foi esse lado que ela precisaria mais enxergar, porque dois garotos caminhavam nessa direção e um deles, o mais alto, derrubou de propósito a caixa que se equilibrava em suas mãos.

–Esqueci que Wilshire está fazendo a boa ação do século ajudando os órfãos.

Kate parou estática, impressionada com a grosseria do garoto de cabelo de areia e olhos gelados. Havia algo de sombrio nele, que ela não pretendia conhecer. Já o outro garoto parecia mais amigável. Mas talvez seu gesto seguinte tenha tido culpa no julgamento de Kate, porque ele sorriu pedindo desculpas e apanhou a caixa com suas coisas no chão e ficou segurando, talvez para evitar que o primeiro garoto a derrubasse de novo.

–Pega leve, Paul. Ela acabou de chegar.

O tal de Paul revirou os olhos.

–Me esqueci de como é sensível, Adam.

Kate definitivamente não queria prolongar aquele encontro. Por isso, se virou para Adam, lhe agradeceu e estava pronta para dar as costas quando Paul voltou a falar.

–Eis o que vou fazer por você, novata. Para me desculpar, vou te convidar para a social que daremos hoje à noite.

Ela olhou para o Adam antes de responder, sentiu que aquilo tinha o dedo dele. Ou talvez, o cotovelo, já que ela tinha quase certeza que ela havia dando uma cotovelada no amigo quando ela deu as costas.

–Obrigada, mas eu passo – respondeu com uma frieza glacial.

Porém quando se virou para ir embora, Paul segurou seu braço, fazendo com que a caixa ameaçasse a cair de novo. Por sorte, Adam a pegou antes que isso acontecesse.

–Acho que não sabe com quem está lidando, novata. Vai aprender que aqui todos seguem certa hierarquia, na qual eu sou o topo e você a base.

–Me solta – ela pediu quando sentiu o aperto em seu braço se intensificar.

–Você entendeu, novata? – ele perguntou e mais uma vez, o gelo dos seus olhos voltara.

–Solta ela, Paul – mandou Adam com a voz firme. Dessa vez, ele não sorrira. Paul a contragosto a soltou. -Você desculpa o meu irmão, ele tem problemas com o ego.

Kate deixou de responder pela revelação surpreendente que duas pessoas tão diferentes pudessem ser irmãos. Lembrou então de sua irmã quando estava viva e em como não era nem um pouco parecidas.

Ainda assim, ela considerou, sua irmã jamais se comportaria como Paul.

–Vamos logo, Adam – o próprio falou, entediado – e espero que você..

–Melissa – Kate o corrigiu, mantendo o nome falso.

–Melissa, esteja lá – e com um olhar penetrante, Paul lhe deu as costas.

– A gente se vê lá – Adam se despediu finalmente devolvendo sua caixa.

Ainda levou dez minutos para que Kate chegasse a seu quarto e não se surpreendeu ao perceber que dividiria com outra garota, Mary. Sua colega de quarto não ofereceu a ela nem de longe a mesma recepção de Paul. Desconfiou que ninguém lá fosse capaz disso.

Depois que Mary ajudou a arrumar seus pertences, as duas se sentaram em suas respectivas camas. A de Kate ficava perto da janela, já que Mary era viciada em filmes de terror e achava muito mais provável que alguma assombração chegasse pela janela, ao invés da porta.

–Você nunca dividiu o quarto com mais ninguém? – Kate perguntou curiosa. Aquele quarto era grande demais para uma pessoa só e de todo modo, havia uma cama extra.

–Bem, houve uma garota – Mary contou e sua expressão fechou. – Mas ela teve que sair por motivos pessoais.

Por “motivos pessoais”, Kate entendeu que esse era um daqueles assuntos que as pessoas evitam falar. Resolveu mudar de assunto.

–Você por acaso conhece Adam e Paul? – questionou Kate em tom despreocupado, finalmente dando vazão a pergunta que queria fazer desde que encontrara com Mary.

–Adam e Paul Burton? – Mary ergueu as sobrancelhas, subitamente interessada.

–Sim, os irmãos.

–Quem não os conhece? – a colega de quarto riu, ao mesmo tempo em que se levantava e puxava algo no seu armário – O pai deles é um grande amigo do dono daqui, o Sr. Wilshire. Eles sempre fazem uma espécie de iniciação antes de todo novo semestre. Hoje mesmo vai ter uma. Quer ir?

Mary finalmente revelou o que puxara do armário, era um vestido preto com decote V, nem tão curto nem tão comprido.

–Uma espécie de iniciação? – falou Kate, que só iria àquele evento se o inferno congelasse.

–É, Melissa, uma festa – Mary riu mais uma vez. Ela parecia animada demais para passar tempo com uma pessoa desprezível como Paul, pensou Kate. – Aliás, você não me contou como os conhece.

Kate suspirou, querendo apagar aquele encontro no corredor da cabeça.

–Topei com eles no corredor mais cedo. Aquele Paul é um idiota. – ela revirou os olhos pensando no que teria feito se não quisesse se manter fora do radar.

–Ele pode ser um idiota quando quer – Mary concordou pensativa enquanto olhava pensativa para seu reflexo. – E o que achou do Adam?

Kate sacudiu os ombros. O garoto com o cabelo ligeiramente mais claro que o irmão não parecia ser tão ruim, mas Kate queria distância de tudo e qualquer coisa que a afastasse do plano.

–Ele parece legal – escolheu ser vaga.

–É impossível não gostar dele – comentou Mary aérea de novo. Kate teve a certeza que se nunca rolou nada entre os dois, não era por falta de interesse da parte da garota.

– Sabe, eu estou muito cansada. Vou só tomar um banho e dormir cedo. – Kate simulou um bocejo e se levantou para pegar a toalha. – Depois me conta como foi.

–Não, você precisa ir! –Mary falou voltando a realidade. – Eu tenho um vestido que ficaria incrível em você e, além disso, é como um ritual. Todo semestre fazemos isso, você não é realmente aluna daqui antes de passar por isso.

Kate dificilmente chamaria uma oportunidade de ficar bêbada e dançar como um ritual, mas ela precisaria mesmo se misturar. E se Paul acabasse implicando com ela só por não ter ido? Não queria ser refém das vontades de um babaca daqueles, mas precisava se misturar. Que maneira melhor que ir conhecendo as pessoas antes que as aulas começassem?

– Eu não sei. Se forem poucas pessoas, posso acabar ficando deslocada – Kate tentou mais uma vez buscar motivos para não ir.

–Não, vai muita gente.– Mary disse já pegando o vestido que pretendia emprestar. – Você vai ver, talvez os irmão nem te vejam lá.

Duas horas mais tarde, quando as meninas chegaram ao terraço do colégio, Kate percebeu que de pequeno, aquele evento não tinha nada. A música estava tão alta que ela sentia a batida dela em seu próprio corpo, o cheiro de bebida era tão forte que ela já se sentia diferente. Perguntou-se como ninguém, professor ou aluno, não reclamou do barulho e como todos aqueles menores de idade conseguiram tanta bebida.

–Não vamos nos encrencar com esse barulho e a bebida?

– Acho que não entendeu com quem está lidando – Mary disse e Kate percebeu que já era a segunda vez que ouvia isso só naquele dia. – São os irmãos Burton, ninguém em sã consciência entraria em confronto com eles.

Kate olhou em volta. Todos pareciam estar se divertindo. Bebendo, dançando, conversando. Alguns casais já precisavam de um quarto urgentemente. Ninguém ali estava preocupado com algum professor invadindo a festa e dando detenções. Se Kate quisesse se misturar, também não podia estar. Resolveu confiar nos privilégios que os irmãos deviam ter e seguir Mary terraço adentro.

Assim que acharam a mesa das bebidas, Mary se serviu do poncho de aparência duvidosa. Kate preferiu optar pela opção segura de refrigerante. Ela não costumava beber e sabe lá o que aconteceria se ficasse bêbada no meio daquela gente. Não precisava se divertir, ela se decidiu, só parecer que estava se divertindo, o que em festas como essas, não fazia muita diferença.

–Tudo bem, não olhe agora – disse Mary depois da primeira dose de poncho e ter apresentado algumas pessoas a Kate. Num ato quase involuntário, ela se virou para ver do que Mary estava falando e observou os irmãos Burton se aproximando. – Eu falei para não olhar!

–E pensei que tinha dito que eu não os encontraria – Kate reclamou, subitamente se sentindo nervosa.

–Eu disse talvez, tem uma diferença. Sorria – retrucou Mary plantando um sorrisinho no rosto que não enganava ninguém.

–Boa noite, meninas – saudou Adam cordialmente.

–Mary, novata – cumprimentou Paul com seu sorriso enigmático.

–Meu nome é Ka.. quero dizer, Melissa, caso não se lembre – disse Kate, não acreditando que quase esquecera de dar o nome falso.

–Bom, parece que é novidade para você também – Paul comentou, se referindo à confusão da garota do dizer o nome.

–Vocês sabem onde tem um lugar para sentar? – Kate resolveu desconversar e ignorar a provocação de Paul.

–Eu te acompanho – Adam se ofereceu e ela o seguiu deixando Paul e Mary para trás.

–Pode me falar, eu matei o bichinho de estimação do seu irmão e não estou sabendo? – disse ela sentindo os olhares de Paul para cima dela.

–Que nada, ele só demora a simpatizar com as pessoas – Adam respondeu despreocupado e ela riu.

–Nada é problema para você, né?

Para a surpresa da garota, uma sombra toldou os olhos de Adam.

–Quem dera – Adam falou baixo, mais para ele do que para Kate.

Ele a guiou para o parapeito do terraço e se sentou lá. Kate olhou para baixo e viu que o chão ficava a cinco andares de distância.

–Acho que vou ficar de pé – ela falou. Não tinha passado o inferno tentando permanecer viva para cair do terraço de uma festa estúpida.

–Você tem medo de altura? – Adam perguntou e Kate percebeu que ele estava prestes a rir.

–Não. – ela disse, decidindo se sentar na ponta interna do parapeito.

–Sei – o garoto piscou para ela – seu segredo está salvo comigo.

–E quanto ao seu segredo?

Adam voltou a ficar tenso e um silêncio desconfortável se instalou entre ele, como uma barreira invisível. Kate resolveu prestar atenção na vista de tirar o fôlego a sua frente. O colégio ficava afastado do seu bairro, foram horas de carro, mas valera a pena. As montanhas e árvores, todo o verde e o marrom prometia um lugar alheio às desventuras que ela tinha vivido até agora. Se ela acreditasse em recomeço, não haveria lugar melhor.

–Você não precisa me dizer – Kate achou melhor esquecer o assunto.

–Não, eu quero. – disse Adam – eu tenho que poder falar disso. O Paul não foi sempre assim como você viu. Ele está num momento complicado.

–Isso eu já acho difícil de acreditar. – ela não hesitou encará-lo. – Me desculpe, mas só não entra na minha cabeça como um cara que tem tudo pode estar um momento complicado.

Adam ficou com o olhar fixo para a paisagem enegrecida pela noite.

–Ele não tem tudo. Nossa mãe, por exemplo.

–Ela não mora com vocês? – perguntou Kate confusa.

–Morreu há um mês – ele disse percebendo que caíra mais uma vez na sua própria armadilha. No que dizia respeito à mãe, Adam só citava fatos: hora da morte, motivo, atestado de óbito, dia do enterro. Fatos não podiam feri-lo. Se Paul se transformara numa pessoa fria para superar o que aconteceu, a sua maneira de fazer o mesmo era tratar tudo de forma impessoal.

–Adam, eu não sabia – falou Kate se sentindo mal por ter julgado Paul em primeiro lugar. Ela esquecera que todos têm bagagens. – Sinto muito.

–Eu prefiro que não sinta. – Falou Adam seco. – Não é como se eu tivesse superado, mas o Paul era muito unido a ela.

–Você tem um modo de encarar a morte parecido com o meu – Kate se viu falando e logo percebeu que tinha ido longe demais. Aquela não era uma sessão de terapia. Adam não era seu psicólogo, tampouco amigo.

–Como aconteceu com você? – perguntou Adam e em muito tempo, voltou-se para encará-la.

De volta ao teatro, Kate pensou.

–Acidente de carro. Não há muito a dizer sobre o assunto.

–Eu sei. Vi sua ficha, o que é estranho, porque lá dizia que você era do Sul e não percebi sotaque nenhum.

Kate quis dar um soco em seu próprio rosto, por ter sido tão desatenta em relação ao sotaque. Como ficaria no colégio até se formar, o que só aconteceria no próximo ano, não podia garantir que sustentaria o sotaque por tanto tempo e resolveu abandoná-lo antes que lhe causasse problemas. Ela não podia prever que alguém se daria o trabalho de ler sua ficha, ainda que falsa.

–Eu só nasci lá, fui criada por aqui mesmo. – como ela estava com medo de acabar se complicar em sua própria teia de mentiras, resolveu se livrar logo de Adam antes que ele fizesse alguma pergunta que ela não saberia responder. – Bom, acho que vou pegar mais bebida, já volto.

Ela não voltaria.

–Não se preocupe com isso, eu pego para a gente. Já volto – Adam foi mais rápido e num salto, ela já se afastava com um sorriso. Kate o observou se afastar, sabendo que deveria aproveitar a deixa para ir embora. Aquela noite começava a seguir um rumo que ela não previa e desde aquele domingo de chuva, ela aprendera a odiar tudo que não podia prever.

Antes que ela decidisse em ficar ou ir embora, alguém se aproximou. Ela abriu um sorriso ao virar para trás, mas viu que não era Adam.

–Ah, é você – disse quando constatou de quem se tratava.

–Você não perde tempo – comentou Paul parando a sua frente.

–Como é? – Kate replicou, cruzando os braços e se levantando. Se ela tinha que falar com ele, então não o faria sentada de costas para uma queda de vinte metros.

–Com Adam. Me diga, foi só saber quantos dígitos tinha na conta dele ou deduziu de primeira?

Kate quis dar um soco naquele rosto convencido, mesmo que sabendo que isso não faria maravilhas ao seu plano de passar despercebida. Normalmente não era uma pessoa violenta, porém estava longe do seu normal.

Ela reuniu o pouco de autocontrole que ainda tinha.

–Licença – disse antes de virar as costas para ele.

–Por favor, seu teatro não está convencendo ninguém – Kate parou com aquelas palavras. – Não se faça de vítima, todas vêm pelo mesmo motivo, por que com você seria diferente?

Ela quase suspirou aliviada ao perceber que só se tratava do discurso idiota de Paul. Voltou- se para o garoto, fingindo uma raiva que não sentia.

–Em primeiro lugar, você não me conhece, então pare de tentar deduzir qualquer coisa sobre mim, porque você não tem ideia de quem eu sou. Em segundo, foi seu irmão que me procurou. Se você tem alguma reclamação, eu sugiro que o procure e me deixe em paz.

Antes que Paul teve chance para uma réplica, Adam estava de volta com dois copos na mão e uma expressão confusa no rosto.

–Eu não achei Mary em nenhum lugar, Paul. Tem certeza que ela estava me procurando? – ele perguntou então olhou para a expressão de Kate. – Melissa, o que houve?

–Nada– Kate disse, sabendo que não convencera ninguém. Só queria sair dali o mais rápido possível. – Olha, eu preciso ir. Tenho que acordar cedo amanhã.

–Todos nós temos – Adam a lembrou tentando se aproximar dela, mas a garota recuou.

–Tenho que ir – ela declarou se afastando dos irmãos e desaparecendo por entre os estudantes que bebiam e dançavam.

–Eu quero muito acreditar que você não tem nada a ver com a reação estranha da Melissa, Paul – disse Adam encarando o irmão.

–Está falando da nossa conversa amigável? – ele ironizou com um sorriso irônico.

–Você a acusou de estar interessada no dinheiro, não foi?

–Porque ela está, como todas as outras estavam. Só estou te protegendo, Adam – disse Paul, colocando a mão no ombro do irmão.

–Não. – retrucou Adam, se desvencilhando de Paul. – Está se protegendo, como sempre.

E dizendo isso, se afastou do irmão indo direto para o quarto. A festa acabara para ele.

Há alguns quilômetros dali, no subsolo da casa de um bairro nobre, outro problema se formava.

–Chefe, conseguimos – um homem de aspecto miserável, de quem não dormia há dias falava para outro homem, este de branco e de braços cruzados.

–O que acharam?

–A substância não identificada que Kate Harrison deixou para trás naquele quarto de hotel. Era tinta de cabelo, pigmento preto.

–Então cesse as buscas por uma garota ruiva. Se ela pintou o cabelo de preto agora, pode muito bem ter pintado de loiro depois. Quer nos despistar.

–Vamos continuar a procurar, Chefe. Ela não pode se esconder para sempre. – disse o subordinado e recebendo licença para se retirar, saiu às pressas da saleta.

O homem de branco andou em círculos até parar em frente à lareira. Olhou as chamas consumindo a madeira e sorriu para si mesmo.

–Parece que nossa garota quer brincar de esconde-esconde. É uma pena que não possa fugir de mim para sempre, Kate Harrison.


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Notas finais do capítulo

Novo capítulo!
Espero comentários de vocês..
Até a próxima!