Um jeito de ser bom de novo escrita por Sassenach


Capítulo 20
Capítulo 17




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— Como foi quando ele chegou lá?

— Soraya ficou um pouco decepcionada porque ele não falou com ela. Aliás, o primeiro ano foi um inferno! Imagine que ele ficou um ano inteiro sem falar absolutamente nada! Depois ele começou a relaxar e no seu aniversário do ano seguinte ele voltou a falar conosco. Eu o levei para empinar pipas no parque... — terminei a frase sorrindo ao me lembrar daquele dia

— Me desculpe, mas quando você me disse que iria leva-lo para que outra família lidasse dele, fiquei meio indignado. Eu tinha certeza lá no fundo que no final vocês ficariam juntos.

— Lógico que eu acabaria ficando com ele! Ainda mais quando soube que ele era meu sobrinho. Seria incapaz de deixa-lo de novo. Sabe... — minha voz ia sumindo, não queria que mais ninguém ouvisse aquilo — Eu nunca deixei de pensar que se ele tivesse morrido naquele dia no hotel, tudo o que nós fizemos teria sido em vão. A viajem até aqui, o encontro com o talib, eu ter sido arrebentado... Todos os riscos que assumimos teriam sido em vão.

— Ele é só uma criança que sofreu mais do que qualquer um poderia sofrer. Ele é tão jovem agha, ele ainda tem toda uma vida pela frente. Mesmo com o que aconteceu, pode ter certeza de que ele é grato a você.

— Espero que... — parei no meio da frase, pois um ruído me interrompeu. Era como se alguém que estivesse perto da porta tivesse se desequilibrado e esbarrado com tudo na mesma. Olhei para Farid e fui até a porta. Olhei para os dois lados do corredor e não vi ninguém. Entrei de novo na sala e fechei novamente a porta.

— E quando ele soube que vocês viriam para cá? — perguntou Farid

— Acho que foi a única vez em que vi ele realmente feliz. Eu estava conversando no quarto com Soraya quando ele entrou de repente e nos perguntou se íamos mesmo vir a Cabul. Ele ria e chorava e chegou até a nos abraçar! Digamos que ele está muito mais “vivo” desde que chegamos aqui. Ele dorme no quarto que era meu. A propósito você e sua família podem se hospedar no quarto de visitas aqui na casa grande.

— Não de modo algum! Eu, minhas mulheres e meus filhos vão dormir naquele casebre ao lado da sua casa.

— Você sabe perfeitamente que você e sua família não são incômodos Farid. São convidados! Acho melhor nós descermos, devem estar nos esperando.

Saímos da sala e fomos pelo corredor até a escada. Eu já estava com as mãos no corredor, mas por algum motivo resolvi voltar. Alguma coisa me dizia para olhar no meu quarto.

— Vá na frente Farid. Desço daqui há pouco. — ele continuou descendo a escada ao passo que eu voltei pelo corredor. Não sabia exatamente porque, mas achei que devia ir ao meu quarto. Lembrei daquele barulho de alguma coisa batendo na porta do escritório, e supus que a resposta para aquela interrupção estaria ali. Coloquei a mão na maçaneta e virei devagar. Abri a porta com cuidado e lá estava o suspeito: Sohrab estava sentado na cama, de costas para mim, olhando para a janela. Entrei sem emitir o menor ruído, mas acabei pisando numa parte do piso que estalou. Ele virou imediatamente a cabeça para mim, surpreso, mas quando viu que era eu apenas sorriu. Seus olhos estavam avermelhados e seu rosto molhado. Ele estava chorando.

Fui até a cama e me sentei do seu lado, com uma distância segura entre nós. Fiquei preocupado ao vê-lo chorando.

— Sohrab, o que foi? Você está bem? — bem devagar fui me aproximando e segurei seu braço. Ele se retraiu um pouco e deu um sorriso amarelo:

— Acho que você percebeu que eu estava ouvindo... — abri a boca para dizer alguma coisa, mas ele levantou a mão como quem me pedia para não interromper. Ele chorava e nem sei como conseguia articular fala em meio aos soluços. — Eu ouvi o que você falou... — desviei os olhos e baixei a cabeça. Meu Deus, ele ouviu o que eu disse sobre Assef. — Eu... Eu nem podia imaginar... Não sabia nem que... — senti como se meus pulmões estivessem sendo exprimidos e eles se esforçavam para funcionar — E tem mais uma coisa... Aquilo que você falou sobre o hotel...

— Sohrab eu juro que ia te contar! Eu ia te dizer que não precisava ir para o orfanato. Eu juro que não queria ter feito aquilo! — falei aquilo correndo, sabendo que ele me pediria para ara. Ele levantou novamente a mão e ficou negando com a cabeça enquanto chorava.

— Por favor, não fale mais sobre aquilo. Eu sei... Sei que o que eu fiz foi errado, mas... por favor não fale mais sobre aquilo! — àquela altura até eu já estava chorando.

— Não fale assim. Você estava com medo e cansado Sohrab. Foi algo drástico, mas não precisa ficar se culpando por aquilo...

— Aquilo que Farid disse sobre eu ser grato... — ele estava visivelmente desviando do assunto — Aquilo sobre tudo poder ter sido em vão...

— Eu não queria ter dito aquilo e...

— Mas disse. — fiquei quieto — Só tem uma coisa que eu quero que você saiba agha... Saiba que não foi em vão, não mesmo. Eu não quero que você duvide de que... Não tenha dúvidas de que... Sou grato por você me tirar dali. — eu chorava tanto quanto ele. Era de partir o coração ver uma criança se sentindo tão culpada — Lá era o inferno na Terra! Meu Deus Amir agha, nunca pense que eu não sou grato por você me tirar de lá! — ele olhava diretamente nos meus olhos e sua voz soava indignação e sinceridade — Eu não sei se aguentaria mais aquele maldito lugar... — ele desviou os olhos para o chão e baixou a cabeça — Eu não quero que pense que não sou grato por fazer o que fez. Mesmo que eu não demonstre ou que eu nunca tenha dito eu... Eu só tenho a agradecer. Afinal, não é todo mundo que deixa sua casa e sua mulher, arrisca a sua vida... Só para procurar por um menino hazara. — ele olhava para o chão e foi a minha vez de se sentir ofendido

— Sohrab! Nunca mais fale assim de si mesmo! Você sabe que não é só um menino! Você é meu sobrinho! Temos o mesmo sangue! Meu Deus Sohrab! — ele chorava ainda mais e eu me sentia a pior pessoa do mundo — Sohrab... — eu não me importava com a possibilidade dele se retrair, só que não conseguia mais vê-lo desamparado daquele jeito, então, o abracei — Você é importante para mim. Você não é só um menino, agora é minha família! — ele enterrou a cabeça no meu peito e continuou chorando — Eu só quero que você tenha uma vida melhor. Só que quero que você seja feliz. Você merece mais do que ninguém! E eu me arriscaria ao que fosse pelo seu bem.

— Obrigado — ele dizia chorando — Por tudo. Tudo mesmo. Por vir até aqui daquela vez. Por vir atrás de mim. Por me procurar. Por me tirar dali. Por me levar pra casa. Por me levar ao hospital. Por ficar ao meu lado. Por não desistir de mim — ele sorriu — Por tudo, de verdade. — ele continuava derramando lágrimas, que agora encharcavam minha camisa. — Obrigado agha.

— Tudo bem Sohrab. — eu esfregava seu braço carinhosamente — Está tudo bem. Me perdoe por nunca ter te contado. Você merece saber a verdade é só que... — eu o soltei e ele ficou sentado do meu lado me olhando — Alguém já te disse que quando você tinha dez anos você era exatamente igual ao seu pai? — ele me olhou com curiosidade — Pois vocês são iguais! Quando te encontrei a primeira vez foi totalmente desconcertante. Você me lembra da minha escolha — e minha voz foi murchando conforme eu falava — Com certeza foi a pior que eu poderia ter feito. Seu pai sempre me defendeu, desde que me conheço por gente, e eu não o defendi. Você me lembra daquela época.

— Todos fazem escolhas. O pai também fez as dele. Ele escolheu te perdoar agha. Sempre falou bem de você. Sempre se referiu a você com carinho. Quando eu era pequeno eu não via a hora de conhecer o Amir agha de que o pai falava tanto. Só não achei que a gente ia se conhecer de um jeito tão... Incomum.

— Bem incomum na verdade. Bom, você já sabe o que realmente aconteceu então... Agora você pode fazer uma escolha também: pode viver ignorando o seu passado como eu fiz durante toda a minha vida, ou pode seguir em frente, sabendo que nós vamos estar do seu lado sempre.

— Uhmm — velo pensar entre as duas opções me deixou nervoso — Escolho vocês agha. — ele disse rindo e eu o abracei

— Que bom! Até porque acho que é a sua única opção... — rimos — Nós amamos você, Sohrab. Queremos ver você crescendo e sendo feliz. — dei um beijo em sua testa — Muito bem, agora vamos descer antes que Soraya venha atrás de nós.

Voltamos para a sala principal, onde todos estavam sentados conversando, enquanto os meninos jogavam panjpar. Sohrab se juntou a eles e mostrou como e jogava. Como Soraya me disse ele nem chegou a jogar naquela hora. Pegou as cartas e disse que precisava pegar uma coisa no quarto. Na verdade ele foi ouvir o que nós conversávamos. Não cheguei a contar à Soraya sobre o que falei com Farid muito menos a conversa com Sohrab. Sei que o modo verdadeiro como ele disse aquelas coisas me fez ter certeza de que eu queria que ele ficasse conosco até o fim da minha vida.


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