Avatar: A Lenda de Yan escrita por Leonardo Pimentel


Capítulo 14
A Última Casa Amiga do Oeste


Notas iniciais do capítulo

Sinta o frio do Norte. Sinta o frio de Jaya, o Imortal.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/546296/chapter/14

Hora olha ansiosamente para mim, caminha na direção de Sat e alisa os pelos da lateral do bisão voador, apreciando a maciez do pelo. Toda vez que sorri, a velha senhora cerra os olhos em curvas elegantes e as rugas, que eu chamo de rugas da felicidade, se ressaltam ao redor da face dela, que esbanja calmaria e simpatia. Sat vira a cabeça enorme e a lambe e ela não parece se importar. Estou parado, sem reação, quando Azsa passa por mim e reverencia Hora. É um rápido e elegante movimento, digno de uma princesa. Hora sorri com simplicidade e repete o movimento da direção de Azsa, o que torna a cena inteiramente estranha. Mas ai, me recordo que minha namorada, Azsa é a famosa herdeira do Trono da Nação do Fogo. A reconhecida Princesa Azul.

─ É uma honra tê-lo de volta, Avatar, assim como a honrosa princesa Azsa, Saofu e Kyle, filho da antiga Avatar. ─ a voz é baixa e contida, aveludada, num timbre suave. ─ Queiram me seguir para devidas acomodações que merecem. Avatar nenhum fica na praia, quando podemos ceder nossos melhores aposentos.

─ Na-Não... ─ as palavras custam a sair de minha boca. ─ Não quero que a senhora se incomode, senhora Hora. ─ reverencio com suavidade, olhando para a areia da praia mais tempo do que deveria. ─ Não viemos aqui para ficar por muito tempo.

A mulher faz um gesto dispensando minhas palavras. Noto que em seus dedos, em cada um dos cinco dedos da mão direita, brilham anéis lustrados. Parecem de madeira ou algo do tipo. Ela sorri, singela.

─ Relaxa, caro Yan. Os recentes ataques à Cidade da República já foram notificados pelo reino todo. Repouse aqui. Está passando na televisão uma cobertura completa do ataque. Eu vi o que você fez... Você deve estar... Faminto. Guarde suas provisões no bisão... Vocês terão uma longa viagem... É o que as estrelas dizem, veja. ─ Hora aponta indicador para o céu, onde tem um anel grosso de madeira, que brilha sob a luz do luar. Ela sorri, sonhadora. As estrelas do céu cintilam belamente, como se pó de prata houvesse sido jogado sobre a superfície negra do céu. ─ As estrelas dizem, que vocês precisarão muito mais do que fugir e esperar. Precisarão reunir muito mais, se quiserem sucesso. E hoje, eu digo, Avatar Yan ─ a senhora abaixa o olhar e o semblante é sério. ─ Você precisa esperar. E não creio que garantirá vitória sobre Jaya, se estiver gripado, com o nariz escorrendo. Eu levo o bisão.

Saofu e Kyle trocam um olhar, questionando entre si a situação, em silêncio. Sat não demonstra qualquer tipo de medo, ao acompanhar a líder da Ilha Kyoshi. Azsa aponta a mão esquerda para as chamas que brilhavam preguiçosamente sobre a madeira e assim, o fogo sobe numa língua, na direção dela. Ela o dissipa no ar. Kyle agarra o gato-coelho pelas laterais e o ergue, conforme Saofu recupera as coisas, que já havia espalhado pelo chão. Olho para todos, pensando na ideia. Não seria ruim, acompanhar Hora. Por fim, decido confiar nela. E a sigo.

A areia macia dá lugar à uma estrada que serpenteia, feita de cascalhos. Ali, de longe, já consigo ouvir um som suave, como se as ruas estivessem com pessoas. A estrada de cascalho aos poucos some e ao olhar par ao chão, noto que as ruas são pavimentadas com paralelepípedos. As casas de madeira, pouco a pouco vão se erguendo, mostrando diversos chalés altos e bonitos. A madeira brilha com a luz da lua. As janelas estão iluminadas em cores amarelas, as luzes cintilando dentro das casas. O padrão é o mesmo: casas de dois ou três andares, madeira polida, com varandas na porta da frente e em um dos quartos; pequenos jardins bem cuidados, com os mais diferentes tipos de flores. As ruas estão iluminadas com postes, que lançam poças de luz sobre nosso caminho. A rua é íngreme. Sobe na direção de uma casa um pouco maior, no fim dela. Atrás, uma densa floresta se ergue, mesmo na escuridão, parece desprender a cor verde. Sorrio.

Algumas pessoas dirigem um olhar curioso a Sat, que conduzido por Hora, parece grunhir como se sorrisse para todos. As pessoas comentam e apontam para mim, não as culpo. Eu sou o Avatar, acompanhado por uma princesa da Nação do Fogo e ninguém menos do que o filho da Avatar Korra, toda poderosa. Obviamente que chamaríamos a atenção aonde quer que fôssemos. Quando olho para meu mestre Saofu, o vejo acenando para todos, como se fosse a última estrela da música mundial. O sorriso de orelha a orelha, acenos e berros escandalosos para os que ficam nos fitando. As pessoas ao redor ou fazem cara feia ou sorriem de volta, acenando enfaticamente.

─ Ali é sua casa, senhora Hora? ─ pergunta Azsa, apontando para o fim da rua.

─ Ora, querida Azsa, minha flor de fogo, pode me chamar de você. ─ a senhora sorri, quando para e olha para nós. A mão afaga os pelos de Sat. ─ E sim. Ali é a sede do nosso governo. Mas nem ouso chamar o que temos aqui de governo... Conseguimos resolver nossos problemas de um jeito único. Só sou uma imagem. Um requisito para que possamos participar das politicagens do mundo novo. Se não há um líder, os outros governantes não nos levam a sério...

Hora sorri de modo amável e eu suspiro. Ela bem que poderia ser minha avó. Ela nota meu sorriso e devolve na mesma moeda, só que dessa vez, fechando os olhinhos astutos por detrás daqueles óculos dourados.

─ Yan, querido, daqui já podemos ver... Olhe para trás. ─ Hora ergue o mesmo dedo indicador que apontara para as estrelas e indica onde devo olhar. Prendo minha respiração.

Há uma praça no centro da cidade. Um obelisco se ergue imponente e mesmo daquela distância, sei que ele está marcado com diversas letras e desenhos. No topo do obelisco, alguns bons metros do chão, ergue-se uma estátua. A estátua é colorida, traja um manto verde floresta, sobre uma armadura dourada e bege. Os leques cintilam sob a luz da lua, emitindo um brilho entre o dourado e o prata. Os olhos dela parecem brilhar, quando capto a imagem. Os olhos de Kyoshi, a criadora da ilha. Prendo a respiração, feliz pela visão.

─ Kyoshi é minha ancestral. É meu dever manter essa ilha, sem pestanejar. ─ comenta Hora ao meu lado. Compartilhamos a mesma altura. ─ Não somente Kyle possui parentesco com um Avatar. ─ Hora dirige um sorriso a ele. ─ Saofu, acompanhe-me até o celeiro. Sat pode dormir lá. Pegue as coisas de vocês. As crianças já podem entrar.

Toco o ombro de Hora, amavelmente, antes de ela se dirigir a uma construção mais simples, na lateral da casa, o celeiro. A mulher para por um instante, olhando minha mão sobre seu ombro e temo ter feito algo errado. Porém, ela levanta o olhar, e sorri. Ela se vira e vai, com Saofu no seu encalço, enchendo-a de perguntas.

─ O que a Kyoshi era sua? ─ pergunta ele, a voz morrendo pela distância. ─ Tia?

Kyle toca a madeira da casa e olha para nós. Ele toca a maçaneta de ferro e gira com suavidade. A luz da sala do lugar nos recebe de modo gentil, quando notamos que não há ninguém no lugar.

Uma lareira de pedra repousa no nosso lado esquerdo, lançando chamas bruxuleantes sobre a ambiente. Há sofás verdes e poltronas ao redor do lugar, um tapete e uma mesa central, onde repousam pequenas pedras negras, meramente feitas para adornar. A chaminé se ergue pela parede, onde repousa um quadro de Kyoshi, logo acima do arco da lareira, sobre uma prateleira. Pelas paredes, ao redor da sala, diversos outros quadros se espalham de pessoas que não reconheço, em molduras marrons e com entalhes dourados.

Do outro lado da sala, há uma mesa simples, onde existem dispostas, várias cadeiras. Talvez ali, Hora faça as reuniões com o pessoal da ilha, penso. Kyle anda até a mesa e pega uma maçã, que há na fruteira sobre o centro.

─ Kyle! ─ reprova Azsa, rindo, indo também pegar uma maçã.

Sorrio, olhando ao redor. O lustre de cristais pende do teto baixo, lançando luzes amarelas pelo cômodo. Os livros brilham nas prateleiras próximas da mesa, assim como o computador que só noto agora. Está desligado. Olho o interior da casa. Há um corredor escuro, entrando no seio do ambiente. Existem escadas, também. É agradável. Não tão requintado quanto estou acostumado a ver nas sedes dos governos como em Omashu e na Cidade da República. Aqui, todos parecem viver em pé de igualdade. Equilíbrio. Acordo de meu devaneio, quando ouço vozes do lado de fora.

A porta se abre e Saofu dá a passagem para Hora, enquanto conversam sobre a safra de mandioca. Sorrio novamente. A vontade que tenho é de abraçar Hora, mas me contenho. Ela nem me conhece. Vai achar que sou louco e ainda por cima, se interessa de modo sincero, no papo de meu mestre a respeito de dobras de terra que facilitam o crescimento das plantas.

─ Eu estudo... Estudava em Omashu técnicas de dobra de terra, para o crescimento acelerado dos vegetais. Envolve umas dobras específicas de terra...

─ Não creio! ─ comenta Hora, sorridente. Ela retira o casaco estilo tailleur e pendura sobre um cabide, que como tudo naquela casa, era de madeira. ─ Poderia me ensinar, senhor Saofu!

─ Só se a senhora me arranhar algumas rosquinhas doces, que eu sei que vocês são famosos por produzir! ─ comenta Saofu, como quem não quer nada, fingindo inocência.

Ando até o lado dele. Kyle fica do outro lado.

─ Exato! ─ fala o filho de Korra, a voz firme. Ele olha para Saofu, numa comunicação muda, sorrindo. ─ Com açúcar por cima!

Bato com meus cotovelos nos dois e faço uma censura.

Hora ri moderadamente.

─ Deixe-os Yan, vocês devem estar famintos! Um instante. ─ a mulher anda até a mesa de reuniões. Lá ela aperta um botão vermelho próximo ao computador, onde posso ver uma luz vermelha brilhar. Ela fala séria. ─ Tou, por favor, temos visitas especiais. Traga para a sala de estar alguns aperitivos locais e trate de caprichar nos nossos fildoux. Quero uma de leite. Daquele jeitinho...

Hora ergue o dedo do botão, sem retirar a mão da mesa. Inclina-se sobre a cadeira, arrumando alguns papéis que já estavam organizados sobre a cabeceira. Ela indica os assentos, para que nos acomodássemos. Quando puxo a cadeira ao lado da mesa, Hora ergue uma mão silenciosa, indicando-me a outra cabeceira da mesa. Olho para baixo, constrangido, mas apenas atendo o pedido dela, sabendo que preciso ser grato pela acomodação que ela está nos garantindo. Fugimos da Cidade da República sem rumo certo e Hora, mais do que gentilmente, nos abriga em sua casa: o mínimo que posso fazer é ser obediente. E depois, creio que ela queira olhar nos meus olhos, conforme conversamos. Gosto de olhar nos olhos das pessoas.

Azsa se acomoda o mais próxima de mim. Entrelaçamos nossos dedos sobre a mesa, enquanto os dedos esguios dela me proporcionam uma carícia suave. Kyle se senta à direta. Saofu à esquerda. Este último mira uma pintura ao lado da mesa, presa por um gancho metálico na madeira da parede. Na imagem, consigo enxergar um monge careca. Uma seta brilha na sua testa. Existem pelo menos vinte meninas ao redor dele, numa pilha desorganizada de corpos. Todas pareciam querer tocar nele. O papel pardo está protegido por um vidro polido, permitindo que o nanquim pareça ter sido pintado há poucas horas. O sorriso torto no rosto do monge careca, com a seta na cabeça me lembra muito alguém... Aang! Sorrio. Aperto suavemente a mão de Azsa e essa é a deixa para que eu me levante um instante da mesa. Hora me segue com o olhar, pois sinto o peso dos olhos dela sobre mim. Olho a pintura de Aang. Ele parece tão... alegre. E já naquela época era responsável para parar uma guerra.

─ Esse é o Avatar Aang. Ele veio logo quando saiu do iceberg, segundo os relatos. A lenda dele é contada nessa ilha, pois Aang nos salvou. Mais de uma vez. ─ Hora falava com orgulho moderado, os óculos dourados refletindo a pintura. ─ Aang era famoso entre as jovens da ilha. Mas preferiu a menina Katara. História bonita a dos dois. Mesmo na guerra, o amor nasce, como uma flor desabrocha no deserto.

Sorrio, enquanto olho meus pés. Não me contenho e meu olhar é atraído até Azsa, como metal é atraído por um imã. Ela me fita.

─ Eu sei disso. ─ É tudo o que comento, enquanto passo meus dedos pelo vidro frio. ─ Admiro o Aang.

E sento-me em meu lugar.

As mãos de Azsa são firmes. A pele é sempre quente, assim como o fogo que ela domina com maestria. Azsa é quente. E meus pensamentos me levam além da fronteira da santidade, e eu me reprimo com um sorriso silencioso. Ela nota que sorrio e vem até mim, próxima o suficiente para me dar um beijo. Retribuo lentamente, enquanto Kyle, Saofu e Hora nos olham. Saofu, claro, dá uma risada alta, batendo sobre a mesa, balaçando os efeites no centro, o computador e os óculos na ponta do nariz de Hora, que estava apoiada com os cotovelos, conforme nos mirava. Kyle sorri de modo zombeteiro, o que ele sempre faz. Nada abala Kyle. Ele é sempre forte e sempre zomba de mim, quando pode.

─ Azsa é corajosa. ─ comenta Kyle, piscando para mim.

Saofu para de pedir diversas desculpas para Hora, quando quem provavelmente é Tou entra. Tou é um homem baixinho, traja um quimono verde claro, com uma faixa amarela sobre a cintura gorda. O nariz parece uma enorme batata, os olhos são miúdos, quase suínos e a testa acumula algumas gotas de suor. Sei que ele é um dobrador de terra, sem nenhum movimento aparente, pois as bandejas metálicas pairam atrás dele, enquanto ele caminha preguiçosamente até a mesa. Com um gesto suave das mãos ─ que mais parecem fatias de pão e salsichas gordas ─ ele deposita as bandejas com suavidade. Depois ele reverencia a todos na mesa e ocupa um lugar.

─ Tou é meu fiel conselheiro. Tou, este é o Avatar Yan, Princesa Azsa da Nação do fogo, filho da Avatar Korra, Kyle e Saofu de Omashu. ─ Hora gesticula a cada um de nós, suavemente.

─ É uma honra servir você, Avatar Yan. Hoje assisti um pouco do seu potencial e creio que estou diante de uma criatura... poderosa. ─ Tou falava com suavidade. Se sua voz fosse um tecido, creio que seria veludo. Macia e suave. É.

─ Comam. ─ aconselha Hora, gesticulando as comidas. Entre pães de diversos tipos, doces e rosquinhas, sucos e leites, comidas com nozes, sementes e aspectos naturais. ─ Kyoshi, poucos sabem, era uma das melhores cozinheiras. Todos os Avatares devem ter essas... virtudes a mais. Qual a sua, Avatar Yan?

Fico em silêncio. Não sou eu quem responde.

─ Teimosia. ─ responde Azsa, sorrindo.

─ Feiura. ─ continua Kyle, imitando o mesmo sorriso de Azsa.

─ Não tem uma base firme, na postura do cavalo. ─ Saofu ergue a mão e bate contra a de Kyle. Eles riem.

─ Obrigado, amigos. ─ agradeço, sorrindo.

Hora e Tou sorriem para nós. Mas a seriedade volta à mesa, quando Tou pigarra.

─ Hora, já mostrou o vídeo às crianças? Acho que seria do interesse deles...

Hora sorri suavemente.

─ Por favor, Tou.

Tou estica o punho direito e abre os dedos num movimento veloz, quase imperceptível, até mesmo para mim. Nunca imaginei que uma pessoa gordinha pudesse ser veloz como ele. Olho para onde ele aponta a mão. A parede que sustenta o quadro da pintura de Aang estremece e abre, exibindo uma porta. De dentro da parede, surge uma tela negra. Certamente, movida pela dobra de metal. Os aparelhos eletrônicos da atualiadade, em sua maioria, podem ser movidos através da dobra de metal, sem maiores problemas. A tela se ilumina com luz, enquanto Tou movimenta a mão. A cada movimento, um comando é atendindo pelo aparelho. No meio daquela casa tão simples, aquela tecnologia parece berrar em constaste entre o novo e o antigo. Azsa encara a televisão séria, posso enxergar em seus olhos o reflexo das imagens. Toda vez que a vejo séria, com a mandíbula rígida e teimosa, consigo enxergar a face de uma Senhora do Fogo. Ela é poderosa, inteligente e apta.

A mulher que segura um microfone na frente da câmera tem a expressão alarmada. Ela aperta algum aparelho contra o ouvido, pronta para falar, quando gritos acometem a gravação. A câmera treme e os pés das pessoas correndo entra em foco. As primeiras bombas explodem no instante em que a câmera é voltada para o céu. Entre o pico dos prédios, os primeiros aviões voam velozes, lançando ogivas por toda a cidade. A voz da repórter ecoa nervosa através da televisão, enquanto eles correm para se abrigar. A chuva de vidro que salta das janelas, parecem lágrimas ao redor. A câmera, em meio ao caos, encontra alguns dobradores lutando contra as explosões. Dobradores de fogo diminuindo o impacto das explosões, dobradores de terra em movimentos ofensivos contra as naves. Há uma outra explosão, forte o suficiente para criar rachaduras intensas entre os prédios. A câmera voa com a pressão e passa bons segundos filmando o chão, enquanto pequenas rochas açoitam os corpos caídos. Aos poucos, as pessoas se erguem e a câmera é abandonada. A filmagem para.

As cenas se sucedem como um filme de guerra. As dobras parecem subjulgadas pelas bombas potentes. Conseguiram captar o momento exato no qual alguns prédios tombaram. O fogo se alastra. E Azsa entra em cena. E sai rapidamente, quando eles me localizam acima dos prédios. O Estado Avatar é evidente. Toda vez que me filmam assim, os brilhos nos ombros cintilam com mais força nas lentes das câmeras. Os elementos me obedecem.

Quando a última cena acontece, sinto uma sensação gelada tomar conta de mim, como se um dobrador de sangue congelasse todo o líquido que minhas veias abrigassem. Algum cinegrafista amador filmou nossa luta contra Jaya na frente do palácio de Meelo. Ele conseguiu captar a cena, desde quando Jaya nos ataca, até a fuga de Meelo. Consigo enxergar agora da onde o bisão voador veio. Não ouço nada. Azsa, que está na cela do animal com Saofu, solta labaredas de fogo contra alguns atacantes que vieram por cima. Não ouvi nada mais cedo. O bisão agarra a mim e a Kyle, enquanto Meelo fica na nossa frente. Há uma rajada de água potente, que passa a poucos centímetros de Meelo. Jaya corre na direção dele. O vento açoita tudo ao redor. Há um furacão. Há chuva. Estacas de gelo. Jaya choca-se contra a parede quebrada, os cabelos soltos ao redor da cabeça. Meelo surge. Jaya se ergue como uma serpente. Ergue os dedos controladores e Meelo desaba. Dobra de sangue.

A filmagem é parada por um instante. Fecho meu punho sobre a mesa. Os nós dos dedos estão brancos o suficiente. Isso assusta Azsa. Ela afaga meu ombro. Relaxo um pouco. Quando a imagem retorna, o rosto de Jaya está impecável no centro da tela. Está na beira do lago, onde jaz a estátua do Avatar Aang. Por coincidência, no mesmo ponto no qual eu tive meu encontro com os antigos Avatares. As mãos de Jaya estão cruzadas sobre a barriga, numa pose imperial. O cabelo está penteado, escovado e arrumado em três tranças. Até ele tem mais cuidado com o cabelo do que Azsa. Kyle cerra o punho sobre a mesa também, enquanto assiste. Com um sorriso triunfal no rosto, Jaya fala:

─ Cidadãos do mundo. Sou o Imperador Jaya, do Reino Livre de Jaya. Essa gravação extra-oficial, serve como lembrete de que posso tudo o que quiser. Lembrete de que minha marca arderá sobre a terra árida daqueles que não se curvarem a minha vontade. ─ movia pouco a boca. Os olhos azuis eram firmes, demonstrando pouca sensibilidade. ─ Hoje dominei o último câncer no oeste do Reino da Terra. Mostrarei ao mundo e aos antigos fracassados com que modo deveriam ter agido no passado. Não serei detido por nenhum monge de doze anos. Não serei detido por uma adolescente ridícula, sem amor próprio, que renegava à própria cultura e não dominava a água. Não me deixarei parar por nenhum moleque metido a dobrador de terra, munido de um penteado extremamente ridículo.

A câmera baixou suavemente, enquanto Jaya falava. De joelhos, Meelo estava amordaçado, o corpo envolto numa estalagmite de gelo, conjurada por Jaya. Parecia machucado demais. Vapor gelado se desprendia do estaca.

─ Aqui jaz o líder dessa cidade. ─ Jaya falou acenando com a mão. Meelo não se movia. Parecia incapaz de qualquer coisa. Na cena, Jaya brilhava com resplendor, enquanto Meelo, com a cabeça tombada, não detinha nenhum brilho, nem parecia ter vida. ─ A Cidade da República, que sempre foi sinal de boa fé entre dobradores e não-dobradores, hoje tem seus portões ao chão. E ela passa a ser a capital do Império. Rebatizo-a como Nova Shori. ─ A câmera lentamente focaliza o rosto de Jaya. Primeiro capta o olhar. Frio como o gelo do pólo norte. A expressão muda, torna-se rígida. Há uma sucessão de imagens, que se afastam lentamente. Agora a câmera focaliza o busto. ─ Agora, dirijo-me diretamente a você, Avatar Yan.

Engulo em seco. Azsa cobre a boca com a mão, transtornada, enquanto vejo os olhos brilharem. Saofu está de olhos fechados, somente ouvindo. Kyle está rigído. Já Hora e Tou assistem à filmagem, sérios, como se já houvessem feito aquilo diversas vezes. Apuro meus ouvidos. A voz de Jaya é fria. Inconstestável. Ao fundo da imagem, podemos ver os exércitos e aviões de Jaya marchando. Uma música dramatica começou a soar ao fundo. As cenas que apareceram na ordem começaram a mudar lentamente. Todos os meus amigos lutando, até mesmo os que formavam a guarda do presidente, Azsa, Kyle, Saofu, a rainha Loma, imagens dos meus pais e de outras pessoas que eu não conhecia.

Avatar, você e seus amigos lutaram bravamente. ─ a última imagem, de Azsa lutando contra alguns soldados de Jaya pouco a pouco clareou, até que a face de Jaya estivesse estampada na frente da câmera. ─ Chegou o momento pelo qual você deverá enfrentar seu destino, me enfrentar. Quanto tempo mais você preferirá colecionar mortes ao invés de acertos? Você permitirá que mais amigos seus morram, invés de me enfrentar?

Olho minhas mãos. Começo a tremer descontroladamente. Eu sou rocha!, penso. Eu sou rigído. Mas as imagens quebram minha rigidez. O rosto de Azsa está estampado na frente da imagem na televisão, quando a voz de Jaya nasce novamente, fria como o maior dos icebergs. A face dele volta novamente à tela. Seus olhos azuis como o gelo do norte me encaram e mesmo sabendo que ele não pode me ver, sinto medo. Mas um medo diferente de todos o quais eu já senti. As lágrimas ardem atrás de meus olhos.

─ Enfrente-me. ─ chama Jaya, olhando.

O exército ainda marchava atrás dele, exibindo suas armaduras metálicas em tons azulados. O barulho dos aviões ecoava ao redor. A imagem muda novamente. Ela exibe agora uma foto pessoal. Meus pais. Abraçados, sorrindo. Minha mãe ainda estava grávida de mim, olhando para a câmera. Meu pai não conseguia sorrir de olhos abertos. Era costume.

─ Honre o sacrifício deles, tolo jovem Avatar.

Jaya foi veloz no seu movimento. A mão esquerda pairou sobre a cabeça dele, como uma garra ameaçadora. A direita moveu-se para baixo, a palma voltada para o chão. A câmera mudou rapidamente de direção e exibiu a estátua do Avatar Aang, exatamente no momento em que a estaca de gelo emergiu da água. O gelo perfurou o cimento com velocidade, na altura do coração de Aang.

─ A unidade dos Avatares vai ruir.

E a transmissão acabou.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

A UNIDADE DOS AVATARES VAI RUIR!