The 69th: For What I Believe In escrita por Luísa Carvalho


Capítulo 30
A Morfinácea


Notas iniciais do capítulo

Eu sei que vocês já devem ter perdido as esperanças de que eu fosse realmente falar sobre o distrito como nos livros, mas a questão é que bastava paciência. Todas as descrições e informações do 6 vão, sim, aparecer na fic, mas vão sendo incluídas pouco a pouco, só nos momentos em que fizer sentido mencioná-las (óbvio, haha). Enfim, esse capítulo vai trazer uma nova personagem, e acredito que vocês se lembrem dela (:



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(POV June)

Burton não fica sabendo de minha pequena conversa com Kryanna. Na verdade, tenho outros assuntos dos quais tratar com ele assim que entro em sua casa depois que volto à Aldeia.

– Quero ir além do Centro - afirmo. Passei a noite anterior inteira pensando nisso, relembrando o que Constance me disse da primeira vez que roubamos um caminhão da Capital: “O Distrito 6 é muito maior do que você imagina”.

Burton está sentado na mesa da cozinha, segurando uma xícara de café com ambas as mãos.

– Bom dia para você também, June! - Rio com o comentário porque não havia me dado conta de meu desespero até então. - Por que a urgência?

Puxo uma cadeira para me sentar ao seu lado.

– Não é exatamente urgente - confesso, e o semblante de Burton parece dizer “Eu sabia” -, só sinto que preciso visitar o resto do distrito. E não adianta insistir; eu sei que tem muita coisa que não conheço.

Burton suspira e coloca a caneca sobre a mesa como se o café não fosse mais importante para ele agora.

– Não é tão simples assim, June. O distrito é “dividido” - ele faz questão de gesticular as aspas enquanto fala - dessa maneira por um motivo. E é o suficiente te dizer que é melhor isolar a outra parte.

Fico quieta, mas encaro-o com vontade. Ele sabe muito bem o porquê disso: não é o suficiente, e Burton não conseguiria me dissuadir.

– Você é impossível. - É o que ele diz, afinal.

Sorrio em resposta.

– Obrigada.

**

Pegamos o mesmo trem de sempre, nos sentamos nos mesmos vagões e passamos pelas mesmas paradas. Mas é quando chegamos ao Centro que tudo se mostra diferente dessa vez. Todos já haviam descido em diferentes pontos pelo caminho, e sobramos somente eu e Burton.

– Aqui é o último ponto a Leste. - Ouço o maquinista dizer através dos autos falantes espalhados.

Burton vira-se para mim.

– A parte Leste do distrito é onde fica a Vila dos Vitoriosos e todo o resto que você já conhece. O aviso de que ela acabou é obrigatório, sabe, caso alguém distraído acabe a Oeste por acidente. Não ia ser nada bom.

– Uau, é tão ruim assim lá? - pergunto, curiosa.

– Você vai ver.

Descemos do trem depois de mais duas paradas, e hesito em seguir andando logo que dou o primeiro passo para fora do vagão. Uma multidão vem em nossa direção e gritos enchem meus ouvidos de maneira ensurdecedora. Felizmente, Burton segura minha mão tão forte que seu toque me distrai da ânsia que estou sentindo. Não tenho tempo de me desesperar, pois não demoro a perceber que aquelas pessoas não querem nada conosco, mas sim investem todos os esforços em tentativas falhas de entrar no trem do qual saímos. As portas de metal, porém, se fecham antes de que qualquer um conseguisse colocar sequer um pé para dentro.

Precisamos nos afastar da aglomeração para que eu possa sentir-me em condições de dizer qualquer coisa a Burton.

– O que… O que foi isso? - Estou perplexa e ofegante. A visão de pessoas extremamente pálidas, fracas e com olheiras sob os olhos avançando sobre mim ainda está em minha mente. Foi diferente de qualquer atitude de desespero que já havia visto no Distrito 6.

– Bom, você certamente sabe o que é morfina. - Faço que sim com a cabeça; pude até mesmo me familiarizar com os efeitos dela após a Arena, já que a substância me foi dada como remédio. - Digamos que alguns moradores do Distrito 6 tenham tido problemas envolvendo o uso da droga após uma epidemia anos atrás…

– Problemas? - tento interromper.

– …e feito com que quase toda a população se viciasse em morfina.

Fico confusa durante algum tempo. Juntando a fala de Burton com o que vi dos tais morfináceos há alguns minutos, chego à conclusão de que a Capital, vendo que são um caso perdido, acha melhor isolá-los da parte intocada do distrito, de qualquer ajuda possível a Leste. E Burton de fato confirma minha hipótese, dizendo ainda mais que a Colheita é o único momento em que a população do 6 está totalmente concentrada em um só lugar. Depois disso, a única coisa em que consigo pensar é o quão absurda é a situação. E como eu quero conhecer mais daquela região para ajudar no que puder.

Porém, Burton tem outros planos.

– Boa sorte com isso - diz. - A parte Oeste é murada e escoltada por Pacificadores dos mais rígidos o tempo todo. Essa estação de trem é o máximo a que nos deixariam ir.

– Mas… - começo a contestar, mas Burton não me dá espaço para isso.

– No mais, eu não teria te trazido aqui se realmente houvesse chance de você entrar lá.

Eu poderia muito bem virar as costas para tudo à minha volta. Poderia entrar no próximo dentre os pouquíssimos trens que saíssem daquela estação, voltar para a Vila dos Vitoriosos e deixar para me preocupar com tudo aquilo depois. Por outro lado, de uma forma que não consigo explicar, o comentário de Burton me atiça.

– Então você tinha esperanças de me mostrar que não há o que fazer e depois ir embora? - pergunto, um tanto raivosa. - Parece até que você não me conhece, Burton, eu vou é entrar lá.

Saio andando para uma direção qualquer, sem saber muito bem para onde ir. Só quero chegar àquele muro e passar por ele de alguma forma. Porém, antes de que eu pudesse sequer me aproximar da saída da estação, Burton segura meu braço e me força a parar.

– June, não. - Sua fala não é como uma ordem dada por um pai a uma criança irresponsável; é mais como um pedido, uma súplica com um “por favor” implícito. - Você sabe que eu acredito em você, sabe que acho que é capaz. Mas a questão é que não dá para chegar ao muro e arranjar uma maneira qualquer de atravessá-lo. Pessoas morrem tentando fazer isso todos os dias.

Passo alguns segundos encarando-o em silêncio. Logo, porém, resolvo ceder.

– Está bem - afirmo, seca. - Mas eu não vou deixar esse assunto morrer. Não vou deixar de pensar em um jeito de burlar tudo isso.

Burton sorri para mim e segura uma de minhas mãos.

– De todo jeito, eu não achava que você fosse simplesmente seguir regras - diz, e levanto os ombros.

– Não seria eu se o fizesse.

**

(POV Burton)

No momento em que deixamos o lado Oeste do distrito, eu soube que precisava apresentar June a uma pessoa. Assim, paramos na já tão familiar estação de trem perto da Aldeia dos Vitoriosos.

June se mostra confusa assim que vê que retornamos à sua casa. Bom, ao menos não exatamente.

– Eu achava que você ia me levar para uma nova casa de madeira em algum ponto remoto do distrito - ela diz enquanto andamos. - “Quero que você conheça alguém” não foi uma desculpa para me tirar de lá, foi?

Não consigo conter uma risada.

– É, June, até porque tudo o que eu quero é te colocar dentro de casa, de castigo. - Minha ironia a faz abrir um sorriso falso.

– Engraçadinho - comenta.

Passamos por sua casa e, consequentemente, pela minha logo em frente.

– Você conseguiu me deixar realmente curiosa. - June olha à sua volta, provavelmente procurando por algo que não conheça e que possa ajudá-la a entender a situação. - De verdade, para onde você está me levando?

Aguardo até estarmos mais próximos da casa ao fim da vila para que eu comece a falar.

– Espero que você não fique muito chateada ao saber que não somos as únicas pérolas do Distrito 6.

Sei que June já ligou a maioria dos pontos até agora. Mesmo que só nos últimos dez segundos, ela já deve ter percebido que não somos os únicos Vitoriosos, mas não me importo em ter talvez estragado a surpresa. Conhecer Lyandra Borgman seria de qualquer jeito surpreendente; ela é uma mulher de fato peculiar, e quem sabe June até já imagine o porquê disso.

– Qual foi a edição dela? - pergunta-me antes de que eu bata na porta de Lyandra, e fica claro que já entendeu quase tudo.

– 58. Eu nem me lembro direito de ter assistido - respondo, e June diz o mesmo quanto à falta de memórias que remetem àquela edição. Por fim, resolvo finalmente chamar a atenção da mulher atrás da porta e bato de forma compassada com os dedos. A resposta ao meu gesto não é imediata, mas não me preocupo; sei que ela estaria em casa. Não sai de lá faz anos.

A porta se abre com um rangido e nenhuma luz sai da brecha que cresce na medida em que Lyandra libera nossa entrada. Vejo que June hesita antes de pisar no cômodo, mas eu entro imediatamente porque sei que não haveria saudações ou quaisquer outras formalidades.

– Oi, Lyandra - eu a cumprimento com um abraço. Meu gesto é retribuído com batidas em minhas costas e, como o esperado, nenhuma palavra sequer vinda da Vitoriosa. - Essa é June Haylon, ela venceu os Jogos desse ano.

June abre um sorriso tímido para a mulher ao meu lado, mas percebo que seu foco ainda está no ambiente à sua volta. Não me surpreendo; a casa inteira está escura devido às persianas fechadas e à ausência de qualquer iluminação artificial. Pelo chão, seringas vazias e imundas. Além disso, manchas de diferentes tipos marcam o carpete: gotas que escorreram do bico das seringas, alguns poucos resquícios de sangue, suor, entre outros. Já é de se esperar que o odor ali não seja dos mais agradáveis.

Tudo naquela casa parece gritar “morfina”.

– Prazer - June diz antes de se aproximar. Ela faz o mesmo que eu, mas o abraço no qual envolve a Vitoriosa é ainda mais frouxo - muito possivelmente por causa da aparência anoréxica e frágil da mulher. Eu mesmo hesito em tocá-la vez ou outra, tamanha é minha preocupação em machucá-la.

Lyandra sorri para nós dois e, embora não diga uma palavra, tenho certeza de que gosta de nos ver ali. Principalmente June: assim que ela entrou pela porta, a morfinácea pareceu reconhecê-la e apreciar sua vinda.

Nós três nos dividimos entre as poltronas mofadas da sala.

– Nós fomos até o Oeste hoje, sabia? - conto, e espero que tocar num assinto tão familiar a ela possa fazê-la falar. Eu realmente quero que fale; o problema é o tempo que demora até decidir se vale a pena gastar palavras.

– Minha… Minha família?

Olho para June, e seu rosto se acende como fez o meu da primeira vez em que conversei com a Vitoriosa. Eu era tributo e ela, minha mentora. Se foi difícil ter de receber conselhos de uma morfinácea? A coisa mais estranha em toda a minha vida. Lembro-me de como queria que Elise Werbern voltasse a ser mentora em vez de enviada da Capital. Lembro-me do quão absurdo parecia o fato da Capital desperdiçar uma Vitoriosa em perfeitas condições, que só permanecia nos Jogos como fachada dispensável e como, no máximo, um plano B para caso algo acontecesse com a morfinácea - o que era perfeitamente possível. Elise já voltava para o 6 perto da época dos Jogos, por via das dúvidas. Então por que não colocá-la de volta no cargo de vez?, me lembro de perguntar a mim mesmo constantemente.

Mas também me lembro do momento em que ouvi aquela voz suave saindo da boca de Lyandra, aquele som tão discrepante considerando a aparência da mulher. Lembro-me de como passei a enxergar uma ponta de esperança em tudo aquilo depois de escutá-la falar.

– Não vimos sua família. Sinto muito. - É June quem fala agora, e está certamente bem mais confortável com a situação. Lyandra também passa a falar abertamente, ainda que de forma moderada. Aproveito a situação para fazer June entender mais ou menos o que se passa do outro lado do distrito. Peço à morfinácea que conte a ela todas as histórias que escutei sobre a repressão, sobre os Pacificadores demasiadamente rígidos. June presta imensa atenção em cada palavra e pergunta tudo o que quer, tendo, após a conversa, um grande arsenal de histórias a respeito do Oeste do 6.

Contudo, antes de irmos, June acaba recebendo mais do que apenas informações em forma de memórias.

– Espero te ver em breve, Lyandra - ela diz enquanto passamos pela porta.

– É Lyn - corrige a morfinácea. Sua fala é vaga a princípio, mas sei exatamente o que ela quis dizer logo de início: June ganhou sua confiança, coisa que só consegui depois de Vitorioso.


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Notas finais do capítulo

Lembrando que a única coisa mencionada na fic foi que a Elise foi pra Capital depois que o Burton se tornou Vitorioso, e que isso não indica que ela foi mentora dele! Até porque agora sabemos quem realmente foi o mestre (ou, no caso, a mestra kkk) dele na Arena: nossa querida Lyn.
Percebi que a história dos Vitoriosos do 6 ficou um pouco confusa porque está espalhada em muitos capítulos (na verdade, basicamente no "De Volta", "Era Uma Vez" e nesse) e provavelmente vocês não se lembram de tudo o que foi dito, então vou tentar dar uma resumida:
Bernatt: era mentor antes da vitória de Elise.
Elise: venceu uma edição xyz (não especificada porque ela nunca revela quantos anos tem, mesmo que já tenha dito que ganhou os Jogos com 15 anos) e virou mentora. Ficou nesse cargo durante pouquíssimos anos até falar demais em uma entrevista e virar enviada da Capital (ou seja, é obrigada a se mudar pra lá).
Bernatt: mesmo que um pouco velho, volta ao cargo de mentor.
Lyandra: vence a edição 58 dos Jogos com Bernatt como mentor. Ele se aposenta e Lyandra vira mentora, mas Elise precisa voltar todos os anos perto da época dos Jogos pra garantir que haverá um mentor mesmo que alguma coisa aconteça com a Lyn, porque ela é muito instável mentalmente.
Burton: vence a edição 66 dos Jogos e Elise se muda de vez pra Capital, sem poder/precisar voltar pro 6. Burton vira mentor.
June: vence a edição 68 dos Jogos, mas daí pra frente vocês já sabem.
(e Bernatt, infelizmente, já está falecido nesse momento da fic há alguns anos)



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