A Dama da Lua escrita por Malcolm Beckster


Capítulo 3
Aprendendo a Fazer




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/527961/chapter/3

Amanheceu a aurora fria de Unna, as casas, prédios, ruas e becos foram tocados pelo clarão da enorme bola de plasma flamejante a milhões de quilômetros de distância. Mas Thomas Smith já estava acordado em seu escritório virando sua caneca para poder beber o quente café escuro, mexendo na papelada burocrática da Reborn Corporations que tinha inaugurado o gigante observatório astronômico, feito especialmente para que Smith pudesse observar o movimento astronômico após um desesperado interesse pelo assunto, ou pelo menos isso tinha dito a esposa do bilionário que continuava a analisar memorandos, pautas de reunião, atas de suas subsidiárias e relatórios de progresso.

– Estou interrompendo? - perguntou ela entrando sorrateiramente.

– Não - disse sem tirar os olhos da papelada - Já tomou seu café da manhã?

– Sim, Howard fez…

– Isso não interessa - disse, grosseiro. Mas se desculpou - Perdão, não estou acostumado com visitas de outro tempo na minha casa - ele parecia realmente acreditar nisso, “Talvez tenha visto coisas o bastante para acreditar em mim” pensava ela - Enfim, eu conversei com os técnicos do observatório, você vai para lá ainda hoje depois do almoço, seu histórico se baseia completamente na personalidade de outra Elizabeth Moon, ela morreu dois meses atrás, eu mudei o nome dos pais, data de nascimento e informações básicas. Como tal seu nome é Elizabeth Moon, você é filha de Matthew e Martha Moon, nasceu em 12 de junho de 2935, ou seja, tem 25 anos. Morou e viveu em Charlton City e se mudou para a África a pedido de seu pai fazendo faculdade remota na Integrated University no curso geral de astronomia - falou claramente, repetiu uma última vez e se levantou para sair, fechando todas as pastas e cadernos e os guardando calmamente - Agora venha comigo. Vamos aprender um pouco de história.

Pegaram um carro e seguiram para a biblioteca, no caminho a jovem já ia lendo pequenos folhetes históricos, nada complicado o bastante ou de profundidade história que a formasse, ela precisava aprender como as crianças, precisava entender as lendas, os movimentos estratégicos, os nomes das bestas, os nomes dos Magos do Norte e dos Guerreiros do Norte.

– Aqui diz que você revolucionou o entendimento histórico.

– Qual tese que eu te passei?

Ela leu a capa lendo as letras com mais calma ainda, a fala era idêntica, mas o alfabeto não: - “Desenvolvimento de Estratégias Militares por E. N. Fox”.

– Então não sou eu, o que diz na tese?

Ela leu novamente de maneira pausada: - “É possível entender pela formação geográfica atual que as estratégias desenvolvidas ao longo de séculos, especialmente pela catalogação histórica de Thomas Millard Smith, que revolucionou o entendimento da história com o datamento das batalhas de Yuri Polokov e Marcus Baltazar, de maneira que pudessemos entender o Padrão Myron-Wilfred de 2912”.

– Não sou eu, eu sou Thomas Lucio Smith, deve ser um historiador qualquer.

– Mas aqui diz que ele revolucionou a maneira como entendemos a história.

– Sabe quem revolucionou a maneira como entendemos a história? Aqueles que fizeram parte dela. Marcus Baltazar mudou a maneira como vemos história, Yuri Polokov mudou a maneira como vemos história e Jason Hunter permitiu que pudesses ver a história de alguma maneira. Thomas Millard Smith não foi em toda sua vida ninguém, seu nome foi esquecido tal como seu legado.

– É assim que vocês veem o mundo? Um bando de pessoas sem importância entre si?

– Exatamente.

– Na Lua nós temos os Diários, todos nós escrevemos e eles ficam no registro, nos podemos ler as memórias uns dos outros de maneira que todos se lembrem de quem fomos - ela disse com um certo ar satisfatório, embora se perguntasse se realmente algum dia iria ver as enormes cidades lunares e suas formosas crateras, seu coração doeu quando ele percebeu que a resposta era não.

– Então, lição número um da Terra, aqui as pessoas não lutam por uma ideia. Elas lutam por seus nomes, elas devem manter seu nome na história, e acredite, nem o doutor Fox da Universidade de Pequena Paris e nem o doutor M. Smith da universidade sei lá das quantas conseguiram fazê-lo - ele disse - E eu com todas as minhas forças estou lutando para fazê-lo.

Chegaram finalmente ao enorme edifício de pedra, concreto e aço, se dispunha ao longo de enormes colunas e uma escadaria o separava da estrada. Subiram os contados 163 degraus que formavam a escadaria principal e os outros 20 da escadaria secundária e empurraram as enormes portas de madeira de carvalho, pesadas e maciças. Smith entrou mostrando suas entradas e taxando a acompanhante como uma convidada.

– Vamos para a sessão de história - disse num tom de voz baixo - Isso é uma biblioteca, não grite ou fale alto, silêncio e discrição.

– Tudo bem.

Foram até a sessão de história e Smith pegava diversos volumes, capas de couro grossas e páginas amareladas, ele sempre pedia para que ela tomasse cuidado com o material, eram muito frágeis e alguns eram volumes únicos em todo o mundo como “Conceitos Básicos” de um filósofo alemão que não teve o nome apagado devido à Era do Domínio dos Magos do Norte.

– Além da Linha Vermelha por Joss Alexander, 3º volume desaparecido até hoje - disse - 2º volume existe apenas na Universidade de Nova. Está guardado em um dos estabelecimentos da Reborn Corporations que nem eu tenho acesso - continuou, entregando outro livro - Estratégia Básica de Guerra por Ivan Anton Polokov, pai de Yuri Polokov, esse só existe aqui e em Novissima Moscou.

Ela pegou a capa amassada, as letras foram escritas e ouro e capa parecia mais nova que o papel.

– Não é a capa original.

– Claro que não, é um livro da Era do Domínio, as folhas eram organizadas e colocadas em sacos, esse papel tem duzentos anos a mais do que a capa. E por falar nisso - disse pegando outro livro, embora menor - esse livro foi escrito por Polokov, pelo próprio Yuri Polokov, chama-se História do Homem: Da Aurora à Queda. Foi escrito em dois dias um mês antes dele morrer, somos obrigados a ler isso na escola, os livros que estou te entregando também.

– Por que vocês não copiam isso?

– Nós copiamos, mas esses livros são parte da história. Eu quero que você sinta a história, não apenas leia - disse antes de sair.

– Para onde vai?

– Eu vou cuidar da minha vida, tenho que trabalhar. São seis da manhã, o horário de almoço começa às uma da tarde e termina às duas, ou seja, você ainda tem mais oito horas para ler esses livros. Está vendo esse equipamento na mesa? - ele perguntou, apontando para uma tela de vidro fina e simples, ela pegou e ao tocá-la a informação surgiu - Isso é a Interface, todos os livros que você estiver lendo são divididos em sublivros, partes e capítulos. Os que forem registrados em sublinhado são importantes para sua leitura, então você não deve necessariamente ler o livro inteiro, não acredito que cada volume tenha mais do que de dois a cinco capítulos, então em oito horas você deve ter lido tudo. Adeus - e saiu sem dizer outra palavra.

Ela ficou lá então, perdeu seu precioso tempo lendo sobre a dominação brutal de Jason Hunter sobre os Ibéricos, era um homem de fato genial e a forma como administrava os recursos com base em seu conhecimento geográfico do solo lhe permitiu a vitória. Leu sobre a Batalha das Cinzas Espanholas quando ele iria enfrentar tropas vinte vezes maiores do que as dele, com apenas duzentos homens fez o impossível e movendo-se por território arenoso ao foi encurralado se mostrou também um homem astuto, afinal tinha inundado o contorno com água criando assim o que o autor do livro, Barnet Lemay, chamava de Fluido Não-Newtoniano, ou também conhecida como areia movediça. Todos os quatro mil homens foram rapidamente capturados, a munição e ração coletada e eles deixandos soltos num vale cercado por florestas como aliados, quando Hunter voltou de suas empreitados em Portugal onde de fato dominou a Península Ibérica criou lá a cidade de Heroica e disseminou o alemão entre os homens da cidade tal como o espanhol entre os seus soldados.

Quando leu os capítulos de Polokov ficou impressionada pela descrição do general: “Um homem forte, ombros largos, braços como um tronco, careca e barbudo, um peito que parecia uma armadura, pernas ágeis, dedos grossos e leves e olhos cinzentos” o que para ela não poderia ser verdade vindo de alguém tão inteligente como ele, que desenvolveu padrões de códigos que até hoje não tinham sido resolvidos, estratégias mutáveis que podiam ser alteradas em sinal de fraqueza e também a reformulação do modelo de trincheiras, do qual ela tinha ouvido falar a respeito dos conflitos de Selena Magno em 20.173 DC. Foi ele quem desenvolveu armamento a distância e postos de defesa tão seguros que para alguém entrar lá sem permissão precisaria ser invencível.

E terminando de ler sobre Marcus Baltazar e seus movimentos táticos Smith chamou sua atenção.

– Elizabeth.

Ela levou um susto de maneira que quase caiu da cadeira.

– Oh, me desculpe.

– Cuidado para não rasgar a página - disse ao perceber que ela tinha uma folha nas mãos - Vamos, leu tudo?

– Quase tudo, eu li alguns capítulos sobre o Hunter que não tinham sido sublinhados e…

– Não importa, leu sobre Baltazar?

– Sim, 40%.

– Só me faltava. Enfim, ontem foram as calendas, se perguntarem qualquer coisa responda que você estava passando mal e que não pode comemorar toda a Calendas, vamos, faltam meia hora pra você começar seu trabalho - se virou para um dos funcionários - arrume tudo, por favor, eu sou Thomas Smith - e quando disse seu nome o homem franziu o cenho antes de relaxar a expressão e responder.

– Sim, senhor Smith, não há problema. Boa tarde.

– Muito obrigado - disse já saindo da sessão histórica. Descendo as escadas, perguntou - O que sabe sobre astronomia?

– Tudo o que vocês sabem daqui pra frente.

– Isso é ótimo, mas não exagere, não precisamos de nenhum salto tecnológico por enquanto, então pode progredir, você foi chamada para isso, mas se vocês criarem algum tipo de reator nuclear e no ao que vem empresas estiveram financiando o voo interestelar acredite, muitas coisas vão dar errado pra você. Você me entendeu?

– Claramente.

– Ótimo - e apontou para o horizonte - Já estamos quase chegando.

O observatório era uma construção imensa, paredes altas e o teto uma semiesfera de onde saía um enorme tubo, a enorme lente do centro astronômico.

– Vamos, rápido, já basta a burocracia que vou ter que saltar pra te colocar aqui.

Foram rápidos e encontraram do lado de fora um homem louro, da altura de Moon e portanto muito mais baixo que Smith de maneira que sua sombra se projetava sobre ele, Thomas parecia apressado como se algo o empurrasse para longe dali, e deveria estar mesmo, porque suas palavras foram poucas e ditas asperamente: - Tem minha recomendação dela como pessoa e como profissional, me desculpe, mas tenho de ir - e de fato se foi, sem olhar para trás.

O doutor fez uma expressão de confusão, mas não demorou.

– Boa tarde, sou Adrian Silver, sou responsável pela equipe de pesquisa do qual vai participar. Vamos começar? - entraram pela pequena porta do recinto, numa das paredes havia um pequeno equipamento composto por uma câmera ocular e um lugar que indicava a necessidade de uma digital para ser ativado - Veja, para entrar como funcionário você deve dizer seu nome, colocar seu olho aí, e por acaso ele possui um sistema de higienização automático, e inserir seu dedo polegar direito - colocou uma pequena chave numa entrada do equipamento e disse - Agora faça isso, diga de maneira alta e clara, se ele não te reconhecer um alarme interno será tocado e você receberá uma advertência.

– Tudo bem - se moveu e fez tudo direitinho - Elizabeth Moon - disse, claramente.

A porta se abriu.

– Agora toda vez que passar aqui o sistema te reconhecerá, pois bem, vamos - entraram e um mundo se revelou para ela, era um salão grande, não era gigante, mas uma equipe razoável de vinte pessoas circulava nela em mesas de computadores monitorando atividades espaciais, escrevendo relatórios e fazendo tudo que lhes interessasse - Esta é a parte onde trabalhamos, toda a equipe está aqui exceto os que ficam no observatório… Bem, observando. Você vai ficar duas horas aqui e meia hora lá, afinal é da equipe de pesquisa, os banheiros são sinalizados pelas linhas verdes - apontou a enorme fita verde no chão - e os armários pelas linhas amarelas, os armários são pessoais e o seu é o 27A e 27B, só colocar a sua digital que ele a reconhecerá.

– Tudo bem.

– Perfeito, sabe usar os computadores?

– Basicamente.

– Perfeito, eles não são muito complicados, comandos simples você precisa apenas teclar /ajuda.

– Tudo bem.

– É só isso, com licença.

Andou, procurou uma mesa e percebeu que todas eram sinalizadas com números, sem se achar nenhum gênio, caminhou até a 27 onde encontrou um pequeno computador, parecido razoavelmente com o de Smith, um caderno e uma agenda, ambos pretos, um estojo com lápis, caneta, borraca, marcador, corretivo e fitas adesivas de cores diferentes.

Havia uma pequena tela de sincronização de informação (pelo menos era isso que dizia o holograma bidimensional na tela) com o computador, tocou a tela de vidro e o computador ligou sozinho, onde um aviso surgiu dizendo: “Sincronização Realizada”. Antes que o computador voltasse a apagar sua tela ela digitou algo nas teclas, programas foram abertos e ela com calma os fechou. “Vamos prestar atenção” pensou ela “Aqui há um ícone escrito ‘Base de Dados’, outro escrito ‘Luneta’ e outro escrito ‘Sincronização’. Eu acabo de realizar a sincronização, então vamos para a Base de Dados” clicou na tela, informações apareceram como se todo um mundo estivesse lá dentro, e de fato estava.

Pesquisou a primeira palavra que lhe veio a cabeça: “Apogeu”.

Os resultados foram todos literalmente astronômicos.

Pesquisou novamente, outra palavra: “Deuses” e uma enorme pesquisa sobre o nome dos planetas surgiu.

Ela se coçou, não tinha como localizar o Apogeu ou nenhuma outra informação direta. Digitou algo que finalmente tinha algo a ver com seu trabalho, não algo grandioso, mesmo que fosse, ou algo que a interessou a vida inteira, ela era uma sacerdotisa, seu dever era simplesmente cumprir as regras da Irmandade e esperar até o momento que lhe fosse solicitada a procriação, a palavra era “Hiperespaço”.

Finalmente algo útil surgiu, mesmo que teórico.

Ela sempre gostou de falar do Hiperespaço, era uma palavra bonita de se dizer, bem melhor que Buraco de Minhoca, ela afinal nunca tinha visto um, haviam os portais, mas eles não existiam mais quando ela nasceu, restava apenas o Hiperespaço e mesmo que 90% das vias estivesse desligada, das poucas vezes que viajou para a Lua lembravasse da momentânea perda de fôlego ao entrar na claríssima zona onde a luz viajava mais rapidamente.

Abriu o caderno e começou a trabalhar. Gostou disso.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!