Silver Hair escrita por Kallina


Capítulo 2
Habitantes


Notas iniciais do capítulo

Heey pessoal!

Capítulo novo, que também é inédito e não existia na primeira versão ;) Espero que gostem!
Boa leitura!



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Eu simplesmente havia congelado, sendo alvo daquele olhar. Seus cabelos negros um tanto compridos descansavam presos por uma fita vermelha sobre suas costas. Calças acinzentadas e um par de botas de couro. Também vestia uma camisa com botões centrais de cor clara, que já era bem surrada e com uma das mangas rasgada, deixando o braço esquerdo à mostra. Parecia que fazia horas que ele me olhava daquela forma, e eu tinha certeza que seria meu o próximo corpo caído inerte quando ele usasse a sua faca. Não teria como fugir. Algo me dizia que ele me alcaçaria muito mais rapidamente. Mas pelos deuses, eu correria. Ao menos tentaria sobreviver, o máximo que fosse possível.

Tudo isso cruzou a minha mente em alguns segundos, até que finalmente, ele falou.

—Vamos sair daqui. —Para minha surpresa, guardou a adaga no cinto, e virou-se andando.

Mantive-me ali caída, só o fitando. Ele realmente esperava que eu o seguisse?

—Para onde? Quem é você...?—Levantei-me com as pernas cambaleando, e minha voz saiu trêmula.

—Para um lugar um pouco mais seguro. —Replicou sem olhar para mim.

Esquadrinhei ao redor. Não parecia haver mais ninguém. O sangue do cadáver a minha frente ainda se espalhava, já com menos abundância. Não consegui olhar por mais de dois segundos.

O garoto seguia, sem me esperar. Se eu ficasse sozinha, podia muito bem ser morta dessa vez. Cerrei meus punhos, respirando pesado, e de forma apreensiva. Nada me garantia que ele também não fosse mais um insano. Porém, do contrário, não teria me salvado. Debatia a questão mentalmente, contudo, o rapaz continuava se afastando, e não tive tempo de chegar a uma resposta clara. Sem alternativa, fui atrás dele.

Seguimos por cerca de vinte minutos, na floresta silenciosa e sombria. O ar parecia tornar-se mais abafado conforme avançávamos, e não me arrisquei tirar os olhos das costas do garoto nem por um instante, apesar de pensar ter visto sombras se rastejando entre as árvores pela visão periférica. Permanecia repetindo na minha mente para estar pronta para correr a qualquer momento, e não conseguia decifrar que horas eram.

Sem parar nenhuma vez, e caminhando sempre no mesmo ritmo, pude avistar uma árvore maior do que as demais. Seu tronco espesso e os galhos extensos pareciam ainda mais velhos que o restante da floresta, onde algumas folhas secas ainda se detinham. Suas raízes fortes se dilatavam para fora da terra, formando veios ao seu redor. Forçando um pouco meus olhos, enxerguei algo que se parecia com uma pequena casa entre os galhos mais fortes e mais preenchidos por folhas. Em seu tronco havia uma escada de madeira duvidosa que levava até o topo. O garoto começou a subir, e eu não tinha muita opção a não ser segui-lo.

Equilibrando-nos para passar de galho para galho, aproximávamo-nos do casebre. Aquele sujeito parecia estar completamente acostumado, mas quanto a mim, tive que me concentrar em não olhar para baixo e lembrar-me do risco que estava correndo fazendo isso àquela altura.

Quando chegamos em frente da cabana, pude ver outra pessoa, acenando da entrada da casa, e veio em nossa direção.

—Você demorou Daz! —Disse ele. — De qualquer forma, conseguiu encontrar o que estava te incomodando?

—Eu acho. —O garoto supostamente chamado Daz, saiu da minha frente, e entrou na casa.

Seu amigo me olhou pasmo, e fitou por alguns demorados e incômodos instantes meu cabelo. Bem, não era a primeira vez que isso acontecia. Geralmente quando alguém me via pela primeira vez, ficavam encarando meu cabelo, alguns com uma cara de “Qual será o problema dessa garota?” Já estava acostumada, mas aquelas situações ainda me deixavam com vontade de cobrir a cabeça. O rapaz finalmente piscou, como se tivesse saído do seu transe.

—Uma garota Humana? Como você veio parar aqui?

—Não sei... —Falei baixo, torcendo para que minha voz não sumisse.

—Isso é estranho... Bem, eu sou Karst! —Disse abrindo um sorriso alegre, o que destoava muito de todo o ambiente sinistro e hostil, mas me acalmou um pouco. —Você é...

—Aryn...

—Aryn? É um nome bonito! Prazer em te conhecer! — Seus olhos eram muito parecidos com o de Daz, um violeta exótico, porém um pouco mais claros. O cabelo tinha alguns fios rebeldes que se enrolavam, cor de ferrugem. Usava uma camisa desengonçada, verde água. Calças e botas de couro. Poucas sardas salpicavam o centro de sua face, e ele era bem alto. —Então, vamos entrar. Você provavelmente está com fome, e vou tratar desses arranhões no seu rosto. Devem estar ardendo.

Caminhei até a entrada da casa que não tinha janelas, só uma única porta central. Era feita daquele tipo de madeira escura que predominava na Floresta. O telhado era de madeira também, fazendo conjunto com algumas palhas fixadas ali com o peso de pequenas pedras. Coloquei-me dentro um tanto hesitante. Na verdade, não era uma casa, mas sim um quarto. Duas camas de palha improvisadas, uma mesa de madeira com duas cadeiras precárias. Acima dela, estava um lampião enferrujado.

—Sente-se. —Convidou Karst.

Fiz como me disse, e logo ele colocou uma cesta com maçãs na minha frente. Elas não eram vermelhas como as que cultivávamos. Na verdade, tinham um tom meio adoentado de marrom e verde, o que não me deixou inclinada a provar.

—Pode não matar muito a fome, mas vai ajudar um pouco. —Falou, sem tirar aquele sorriso do rosto. E então percebeu minha expressão duvidosa. —É, eu sei que não são muito bonitas, mas não fazem mal, acredite em mim. Olhe. —Ele pegou uma delas e mordeu. —São só feias assim por causa da Floresta. —Continuou, de boca cheia. — Ela consegue... Deixa tudo aqui dentro bem ruim.

Ainda um pouco apreensiva, peguei a maçã que menos me parecesse estranha, e mordi um mísero pedaço. Não era doce e saborosa como as nossas, mas também não tinha gosto de veneno ou podridão.

Karst tinha uma vasilha com água, e um pequeno pano branco úmido nas mãos.

—Posso? —Perguntou se referindo aos meus machucados. Eu nunca o tinha visto antes, e mesmo assim ele estava sendo incrivelmente gentil. Gentil o bastante para alimentar desconfianças. Mesmo assim, balancei a cabeça em sinal afirmativo, e ele começou a limpar as pequenas feridas do meu rosto.

Pude ver Daz sentado em uma das camas, me encarando com seus olhos escuros, limpando o sangue da lâmina da adaga. Desviei meus olhos dos dele, e me concentrei em minha maçã, que me mostrou como eu estava mais faminta do que tinha percebido.

Terminada minha refeição, Karst também acabou de limpar meus ferimentos. Arrisquei falar algo que veio na minha mente.

—Por que me salvou?

Daz girou a adaga entre os dedos, e largou o pano de limpeza em qualquer lugar, respondendo sem olhar para mim.

—Por que uma garota como você está aqui?

—Eu... Não sei. —Vi pelo seu olhar que não aceitou essa simples resposta. Mas para o azar dele, era realmente tudo que podia oferecer. —É sério, eu... —Tentei continuar, a voz falhando. —Eu literalmente acordei aqui dentro. Não sei como cheguei.

Daz não parecia muito crente daquilo. Bom, eu sabia que soava como uma mentira deslavada, mas a pior parte era que realmente não estava mentindo.

Fez-se silêncio, até que continuou:

—A Floresta estava agitada momentos atrás. Mesmo o vento parecia ter um cheiro e temperatura diferentes. Como se fosse alguma forma de... Vivacidade. Quando me focalizei nela, pude perceber que essa energia sumia e aparecia repetidamente. Fui descobrir o que era, e vi o que eu procurava fugindo de um moribundo.

—Então você deve ter se enganado. —Falei. —Eu sou uma Humana normal. Não sei usar magia, nem tenho qualquer outra habilidade que me faz... Emanar algo.

A energia que ele se referia, soava como se fosse energia mágica. Poucas pessoas em Zeil ainda tinham controle de magia o bastante para emanarem uma energia forte. E eu era só uma camponesa qualquer.

—Você tem. —Ele teimou. —Algum tipo de presença instável. E se você pode fazê-la desaparecer mesmo que seja por um segundo, pode sair dessa Floresta.

A Floresta de Hellysh era um lugar selado. Eu sempre ouvi histórias que mamãe me contava, ou que Yaiken até usava para me assustar quando eu era mais nova. Um lugar terrível. A Floresta era usada para prender criminosos e qualquer outro ser perigoso que fosse usuário de Magia Negra, e era cercada por uma barreira que impedia esses portadores de saírem.

—Aonde você quer chegar?

O garoto fez uma pausa antes de responder.

—Se você vai sair vai nos levar junto. Para fora dessa Floresta.

—Daz! —Karst interviu surpreso. —Não diga besteiras! Mesmo que Aryn consiga ocultar a energia dela, não quer dizer que ela consiga ocultar as nossas junto!

—Já disse que não posso fazer isso! —Repeti. —Nem a minha nem a de ninguém, porque eu não tenho nada, ok?

—Nós podemos tentar, não é? —O moreno voltou a dizer. —E então?

Coloquei-me a pensar. Mesmo que eu conseguisse sair da floresta, eu não sabia onde eram as suas fronteiras. Sem falar que poderia acabar sendo morta por algum louco como o da última vez. Parecia um acordo justo, mesmo que eu não tivesse certeza se poderia tirá-los dali também. Nem se deveria tirá-los de lá. Eles eram criminosos, bem a minha frente, e pelo que sabia, nada me garantia qualquer confiança para com eles. Porém, eles queriam sair e por isso precisavam de mim, certo? Não me fariam mal até lá.

—Entendi

.Karst e Daz trocaram um olhar antes de responder.

—Tudo bem. —Virou-se para a porta. —Saímos amanhã quando o sol estiver nascendo. —O moreno disse, e saiu da casa.

Soltei um suspiro nervoso enquanto olhava para as minhas mãos com pequenos riscos vermelhos dos arranhões que eu havia arrumado na Floresta.

—Sinto muito. —Karst quebrou o silêncio. —Esse é o jeito dele. Mesmo que não tenhamos certeza se você conseguirá, ele quer tentar de qualquer maneira. Digamos que já passamos tempo o bastante nessa Floresta.

Isso reforçou o que eu já sabia: Não podia confiar neles. Se estavam lá, era porque eram criminosos usuários de Magia Negra, mesmo que parecessem ter minha idade. Então a única certeza que eu tinha aquele instante era que não devia me aproximar. Por mais gentil que Karst parecesse, eu não tinha como saber sobre quem eles realmente eram. Sobre o que havia por trás daquele sorriso animado.

—Tudo bem. Eu farei o que puder. Mesmo que não saiba ao certo o que seja.

Meus olhos se abriram no meio da noite. Karst dormia na cama ao lado, mas não vi qualquer sinal de Daz, mesmo depois de estreitar os olhos para tentar enxergar algo em meio à penumbra. Eu não podia ficar ali. Por mais que tivesse me esforçado para dormir, e acreditar no acordo que havíamos firmado, não podia depender da honestidade de pessoas que tinha acabado de conhecer e que eram confinados em Hellysh. Ainda mais aquele tipo de pessoas malucas que ficavam dizendo que eu possuía algo de especial.

Fui até a mesa no meio do quarto, e ergui o lampião enferrujado pela alça. Ainda tinha cheiro de óleo, então provavelmente ainda funcionava.

Tateei pelas paredes até encontrar a porta. Engatinhei pelos galhos, pensando duas vezes antes de me mover. Era impossível enxergar qualquer coisa, como se a Floresta tivesse fechado os olhos. Minhas pernas tremiam mesmo enquanto eu descia a escada pendurada pelo tronco. Quando meus pés tocaram o chão, minha respiração ficou presa ao ouvir uma voz que murmurou, vindo das minhas costas.

—Então, essa é sua tentativa de fuga?

Eu não podia vê-lo, mas tinha certeza que era Daz. Perguntei-me como ele estava me enxergando. Talvez seus olhos já estivessem acostumados com a escuridão.

—Você... Vai tentar me impedir? —Gaguejei, chegando a conclusão de que minhas chances se resumiriam a zero se ele realmente quisesse fazer isso.

—Talvez você seja ainda mais idiota do que eu pensei.

—O que?

No próximo instante havia uma mão tampando minha boca.

—Eu lhe disse para ser menos barulhenta. —Segurou meu pulso e deixou algo entre os meus dedos. —Pegue.

Apertei um cabo de couro carcomido, e identifiquei como sendo seu punhal velho o qual Daz estava sempre remexendo. 

—Não sei o quão estúpida você pode ser em sair por aqui à noite, sem armas, e levando um sinal de luz. Mas se deixar que alguém roube essa adaga, posso te garantir, que mato você. —Grunhiu ele. E fiquei até feliz por não estar o enxergando. Não queria ter que presenciar que tipo de expressão ele estava mostrando.

Minha boca foi destampada, e ouvi seus passos se afastando. Até não haver mais nada, além da escuridão e do silêncio inabalável da Floresta.

Caminhava a passos fracos. Tropecei várias vezes, cheguei a cair de cara, e trombar em uma árvore. Até que finalmente decidi acender o lampião. Uma ilha de calor e visão se formou ao me redor, ligeiramente reconfortante. O brilho avermelhado deixava as árvores ainda mais fantasmagóricas, com olhos cintilando em dourado.

Fechei os dedos com força ao redor do cabo da faca. O revestimento era áspero e gasto. E então a quietude foi interrompida. Folhas sendo despedaçadas, gravetos sendo quebrados. O ruído de passos. Vinham da minha esquerda, e ergui o lampião nessa direção. Tudo que iluminou foi mais um galho de garras magras e longas. Meus ouvidos ficavam cada vez mais surdos com o bater do meu coração, que ecoava pulsando insanamente. Mais passos correram pela minha direita. Suor frio escorria por todo meu corpo.

—Pesssssoa sssozinha... —Sibilou de algum lugar.

—Amiga dosss Humanosss... —Respondeu outra. Ergui a faca, para seja lá de qual direção vinham as vozes. Uma terceira emitiu um som que estava entre um silvo e uma risada.

Queria gritar para que fossem embora, mas minha voz não saía, assim como meu fôlego já estava perdido em algum lugar da minha mente aterrorizada. Olhava ao redor compulsivamente. Aparentemente, o óleo na minha lamparina estava acabando. A pequena chama dentro do vidro fraquejou, diminuindo minha ínsula de visibilidade.

—Não, não, não, não, por favor... —Murmurei sem ar. A flama deu um suspiro final, e o combustível se extinguiu, de forma que a escuridão me engoliu uma vez mais.

Novamente veio a risada sibilante. Larguei a lamparina agora inutilizável e segurei a adaga com as duas mãos, o que na verdade foi inútil. Um estralar de folhas soou ás minhas costas, tarde demais para que eu tivesse alguma reação. Algo puxou minhas pernas, e o chão recebeu  meu rosto dolorosamente.

Nunca soube exatamente o que me acertou. Talvez um pedaço de galho, um soco, mas bem provavelmente uma pedra, grande o suficiente para me fazer apagar.

Imagine a sua pior dor de cabeça. Multiplique por cinco e adicione um corte cruzando sua testa, como se tivesse passado muito perto de dividir seu crânio em dois. Era mais ou menos isso. 

Arfei e trinquei os dentes para minha enxaqueca, sentido os fios de cabelo da franja empapados de suor e sangue. Mas talvez a dor ainda fosse o menor dos problemas.

Não podia dizer que estava de pé. A melhor definição seria que estava na vertical, mas porque o que mantinha meu corpo erguido era o lodo. Estava afundada até a altura do estômago em uma piscina de lama escura, densa e pegajosa, que cheirava a carniça. As árvores ladeavam a lagoa de barro, então tive certeza que ainda estava na Floresta. Reconheci minhas coisas caídas no abraço de uma raiz. Meu colar, o cristal que tinha encontrado, e a adaga de Daz.

—Vamosss sssó devorá-la logo... —A mesma voz de antes vinha de trás das árvores.

—Carne... —Sibilou a segunda, com um ar sonhador. — Há muito tempo não comemosss alguma carne que não esssteja podre.

—Não. —Proibiu a seguinte. —Vamosss esssperar antesss. E então teremosss trêsss vezesss maisss carne.

—Como você sssabe ssse elesss realmente virão? — Perguntou a primeira.

—Ssse ela essstava messsmo com elesss, então certamente virão.

—Olhem, olhem! Osss olhosss azuisss essstão acesssosss.

Três pares de orbes verdes brilharam nas sombras da floresta, direcionados para mim. Um tremor me percorreu, e comecei a me debater, tentar puxar meus braços para fora do lodo. A voz riu rouca.

—Ela pode ter carne masss não parece ssser muito inteligente.

Voltei a me mexer, tentando bater as pernas e impulsionar meu corpo para cima, mas a lama retardava todos meus movimentos. E com horror percebi que agora havia imergido até a metade do peito.

—Ssserá ruim ssse a humana afundar por completo, não é?

—Sssem isssca e sssem carne.

—Precisssamos fazer osss outrosss virem logo.

 —Então, vamosss fazê-la gritar...! 

Uma criatura surgiu das sombras.

Eu e Yaiken já havíamos criados alguns vários monstros para nossas histórias. Uns conseguiam ser bem estúpidos, outros até graciosos, e ainda tinham aqueles que já me causaram pesadelos. Não sabia exatamente onde o ser daquele momento se encaixaria, mas com certeza não era na segunda opção. E como era o primeiro monstro que eu realmente tinha visto ao vivo e em cores, acho que o colocaria na terceira seção.

A face se projetava para frente em um focinho escamoso cinzento e verde-musgo. Os olhos ainda conservavam a aparência humana, com a íris numa cor entre roxo e verde. As escamas rareavam em seus braços, sendo que os dedos eram envoltos em pele normal e as unhas eram quebradas. Fiapos de roupa cobriam seu corpo, mas estava descalço, com garras escuras se esticando nos dedos dos pés. Tufos de fios espalhados pela cabeça indicavam que talvez um dia tivesse possuído uma cabeleira completa. Tinha uma altura de um homem normal, e até estava magro. Entre os lábios rachados, cavados por veios marrons e com sangue ressecado, escapava uma língua bifurcada. 

—Humana... —Sibilou ele, indo até mim.

Tive que controlar o impulso de me debater, pois sabia que só afundaria mais. Mas estava completamente imobilizada, e um homem escamoso se aproximava, parando na borda do lago de lama, e estendendo um braço. De perto, seu hálito não cheirava muito diferente do próprio lodo. 

—Agora, o que precissso fazer para que você traga ssseusss amigosss pra cá...?

Esforçando-me para manter o contato visual afastado da face desconfortavelmente próxima da criatura, ao fundo, meus olhos encontraram novamente a adaga de Daz, descansando perto de uma árvore.

Ele disse que me mataria caso alguém a roubasse, então isso significava que voltaria para pegá-la, não é?

Só daquela vez... Só daquela vez desejei poder vê-los.

—Ei, humana... —Silvou o monstro. Sua língua esguia serpenteando a centímetros do meu rosto. —Não vai chamá-losss?

—E-eles não são meus amigos. —Gaguejei.

—Então, essstá dizendo que podemosss apenasss começar já a devorar você? 

Droga.

Por alguma razão, não queria gritar seu nome. Sentia que isso cruzaria alguma espécie de linha, e não queria qualquer tipo de relacionamento. Não queria precisar deles.

Enquanto me perdia em uma discussão mental a qual tecnicamente não tinha tempo para ter, fixei o olhar na margem rochosa da piscina de lodo. As pedras estavam ali, quietas, frias, e indiferentes. Não era lá grande coisa, mas na situação, foi o melhor que pude pensar sem chamar pelo seu nome.

Com desgosto de ter que respirar fundo perto do hálito fedorento do réptil, enchi meus pulmões de ar, e torci para que ainda tivesse voz depois.

—Ei! Rocha-Humana! Eu estou aqui!

Senti-me tentada a complementar com “você é detestável!”, mas isso não aumentaria as chances dele vir. Minha voz ecoou pela quietude da floresta de forma perturbadora, me causando uma terrível sensação. 

Por favor... Só dessa vez...

—Agora nósss esssperamosss — Sibilou a monstruosidade, roçando a garra pela minha bochecha e se afastando, para o meu alívio. —Pela carne. 

Oh deuses... Eu sou tão idiota. Provavelmente eu nunca me odiei mais do que nessa situação. Nem mesmo quando eu quase explodi a nossa cozinha tentando fazer bolo para o Kayllon. Por que eu achei que seria uma boa ideia tentar fugir sozinha? Não podia andar sem companhia por cinco minutos nessa floresta sem algo tentando te matar.

“E por que então Daz me deixou ir na noite anterior?” Pensei comigo mesma. “Ele até me deixou levar sua adaga, que parece ser bem importante pra ele.” Soltei um suspiro entrecortado pelo medo e a dor latejante na cabeça. Eu não conseguia compreende-lo.

Alguns minutos se passaram, e não houve nenhum movimento.

—Elesss não essstão vindo! —Ouvi um dos homens-réptil sussurrar impaciente para o outro, em algum lugar atrás das árvores. —Eu te digo para aproveitarmosss a carne que já temosss.  

—Não! —Replicou o outro, nervoso. —Toque na garota e ssserá a sssua a carne que teremosss! Nósss esssperamosss maisss, e então banquetearemosss! 

—Então vamosss fazê-la gritar de novo para trazê-losss logo! —Opinou o terceiro.

—Ssse ela fazer maisss barulho, vai começar a atrair maisss do que sssó osss Humanosss... E nósss não queremosss issso, não...

—Sssim... Sssó aqueles doisss já sssão trabalho sssuficiente...

—Você tem medo deles. —Deixei escapar, e os olhos na escuridão das árvores voltaram a brilhar na minha direção.

—O que você dissse?

Oh, ótimo.

—N-nada, nada mesmo, eu só-

Um deles saiu de novo para vir até mim, e puxou uma mão cheia do meu cabelo, me trazendo mais lágrimas aos olhos.

—Criança insssolente! Você apenasss ainda essstá viva para atraí-losss pra cá! Massss não ssssignifica que não posssamosss começar a refeição com um braço ou doisss! —Ele deu mais um puxão, que me fez arfar. — E poderíamosss até usssar a própria preciosssa adaga daquele Humano arrogante... Ah, o quanto eu gostaria dissso...

Eu fechei meus olhos, tremendo e chorando contra algo que percebi como sendo o inevitável. Oh, céus, era isso... Era assim que tudo acabaria. 

Então, ouvi um ofego vindo do reptiliano, e a força no aperto do meu cabelo diminuiu. Abri os olhos lentamente, e havia um chifre entre os seus olhos. Não, não era um chifre. Era a ponta de uma adaga.

Daz puxou de volta sua adaga embebida em um sague esverdeado e negro, e empurrou o corpo inerte para o lado, que tombou na beira do lago de lama.

—Você é realmente uma garota barulhenta. —Daz disse. Mas àquela altura, eu não me importei nenhum pouco com o insulto.

Os outros dois monstros escondidos sibilaram de algum lugar.

—O Humano veio... —Comentou um reptiliano.

—E o outro? Onde está o outro que anda sssempre com essse? —Perguntou o segundo.

—Ele não veio porque não precisava. —Respondeu Daz.

—Então, você não liga para o que acontece com ela?

Daz não olhou pra mim.

—Não saiam tirando as conclusões que quiserem. Eu só vim para ter minha arma de volta. —Os monstros silvaram raivosos. —Se quiser transformá-la em comida ou o que quer que seja, faça o que quiserem.

Pisquei incrédula e horrorizada. Ah, maravilha.

—Ssse não tivermosss carne em triplo, ao menosss teremosss em dobro...!

Apenas uma das criaturas saiu das árvores, avançou com sua faca de pedra lascada, desferindo um golpe de cima pra baixo, que Daz desviou saltando para trás.

Não importava se ele estivesse se esquivando de tudo, ou se a própria criatura não parecesse muito inteligente. Não tinha como ter certeza se o próximo ataque iria acertá-lo ou não, então por que ele estava se arriscando daquela forma? Fazia-me sentir vontade de fechar os olhos para aquela batalha angustiante. “Vamos lá Aryn, pare para pensar em como sair! É sua chance! Não importa o que Daz está fazendo, isso está funcionando como tempo pra mim, então tudo bem!”, Gritei mentalmente para mim mesma.

Olhei ao redor. Não havia nada para que eu me puxasse. Que idiotice, mesmo que tivesse, minhas mãos estavam submersas. “Não importa, se tentar emergi-las, no final só vou afundar mais...!”

Todavia, até aquele momento, só havia tentado puxar as duas para cima de uma vez. Podia acabar fazendo com que eu submergisse ainda mais, mas se tentasse trazer só um dos braços, me mexeria menos?

Tentando ignorar os silvos do reptiliano logo à frente, experimentei mexer os dedos. Apesar da resistência do lodo, com certo esforço, eu ainda detinha pouco movimento. 

Puxar meu braço direito para cima era como sentir que estava tentando puxá-lo de uma piscina de cola pegajosa e espessa, só que com um cheiro bem pior. Quanto mais livrava um lado, mais o outro afundava. Quando finalmente meu braço estava pra fora, mesmo que ainda coberto de lama grudenta, minha lateral esquerda já tinha afundado até o pescoço, e era difícil suprimir o pânico.

A margem era alcançável, entretanto, não possuía força o suficiente pra trazer meu corpo todo para perto.

Uma mão segurou meu pulso. Não uma mão de réptil, mas uma mão humana. Karst sorriu pra mim quando encontrei seu rosto.

—Vou te tirar daí.

Não tinha me esquecido da insegurança sobre ele e Daz, mas continuar afundando até a morte ali também não era minha primeira opção. Estava prestes a aceitar a ajuda, quando uma advertência colidiu contra minha mente.

—Não, não pode ficar aqui. Há outro daqueles monstros entre as árvores que podem te-

Tarde demais. Uma faca de pedra lascada já havia feito um corte vertical no ombro de Karst. Só não desceu mais ainda, pois o rapaz afastou-se assustado.

O reptiliano silvou para ele, mantendo a adaga manchada de sangue perto do corpo. Esquadrinhei Karst com os olhos, e acabei constatando que ele não estava portando qualquer arma. Uma mão postava-se de forma defensiva na frente do corpo, enquanto com a outra ele segurava o ferimento.

—Nosssa carne ao triplo chegou...!

Aquilo provavelmente foi loucura. Mas devido às circunstâncias, acho que não tínhamos muita opção. 

Com meu braço livre, agarrei as pernas da criatura. Ela piscou, e tentou se debater para longe de mim, bem a tempo de Karst entender minha intenção. Como o ombro bom, ele empurrou o reptiliano para a lagoa de lodo, e o monstro caiu com um “splash” glutinoso.

Esperneava e contorcia-se, lutando contra a força da lama que só o puxava para baixo cada vez mais. Agonizando e exclamando palavrões em uma língua incompreensível para mim, tive que afastar os olhos quando o lodo engoliu seu último dedo esticado, buscando a liberdade.

—Ótima ideia. —Karst voltou a sorrir.

O rapaz me puxava pelo braço com as duas mãos, e pensei que iria tirá-lo do meu corpo. O lodo era resistente e me impregnava, nunca desistindo de me manter com ele. E quando finalmente fui solta, Karst foi arremessado para trás, e eu tombei sobre a borda de folhas, que grudaram na lama espalhada pelo meu corpo. Minhas pernas e braços estavam moles, de cansaço, medo, tudo. Eu não queria levantar.

Ouvi o último reptiliano sibilar e o vi, com uma mão segurando um corte na altura da barriga. Ele se afastou da batalha contra Daz e exibiu as presas, correndo para as árvores e desaparecendo.

Minha cabeça latejava tanto que achei que iria desmaiar.

—Você tem um corte bem feio aí. —Ouvi Karst dizendo, se agachando ao meu lado. Sua voz era gentil e calma como sempre. —Vamos voltar para a nossa cabana e dar um jeito nisso.

—Eu... Eu não... —Tentei falar algo, mas saiu como um balbuciar sem nexo.

—Suponho que tenha servido como lição. —Daz falou, e ergui os olhos para ele.

—O que quer dizer?

—Espero que não fuja de novo. 

Só aí percebi. Por que ele me deixou ir propositalmente. Ele sabia que em algum momento eu tentaria fugir. E então me deixou tentar, me deixou perceber, aprender da pior maneira, que eu nunca conseguiria. Não sozinha. Não sem eles. Para que então eu nunca fizesse de novo.

— Vamos voltar logo. — Falou Daz. —Quero sair dessa floresta o quanto antes.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado e até semana que vem!
Beijos de bolo >3



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