Silver Hair escrita por Kallina


Capítulo 1
A Floresta Negra de Hellysh


Notas iniciais do capítulo

Heeey o/

Nem acredito que depois de cinco anos, estou aqui novamente, postando o primeiro capítulo. Essa história significa muito para mim, e espero que, para os leitores novos, possa ser um boa experiência. E, caso haja algum leitor antigo, muito obrigada pelo retorno!

Os capítulos que vou postar semanalmente aos sábados, serão uma versão reeditada dos que comecei a publicar em 2014, então haverá também partes inéditas ;) Acredito que minha escrita evoluiu um pouco em cinco anos, mesmo que esteja longe de ser perfeita XD

De qualquer maneira, espero que gostem, e boa leitura!



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Meus olhos ardiam como se algo brilhasse tanto que mal me permitia focalizar a visão. Várias imagens começaram a rodar, como fotos em lento movimento que exibiam algumas memórias. O dia em que conheci Kayllon; o último festival da Estrela Nascente, enquanto dançava com minha mãe ao redor da fogueira; o momento que Yaiken decidiu ir para Fallyndel. Todas pareciam turvas em sem contraste.

E então eu.

Olhava para mim mesma, deitada. Meu rosto havia perdido a cor, e era tão ofuscante que não conseguia olhar direito. Os cabelos esparramados por uma superfície escura, mas pelo meu corpo cresciam algo que se pareciam com... Raízes?

Antes que eu pudesse pensar ou ver qualquer outra coisa, abri os olhos.

Alguns raios de sol transpassam a cortina fina e traziam a luminosidade matinal para o meu quarto. As cobertas estavam emaranhadas nas minhas pernas, e um pássaro passou assobiando perto da janela.

Cocei meus olhos sonolentos e me sentei, espreguiçando-me longamente. Meus braços e pernas estavam um pouco doloridos, e minha cabeça latejava levemente. Provavelmente tinha dormido como uma pedra, e me admirei em ter sonhado com algo, mesmo que não me lembrasse direito.

—Você finalmente acordou! —Minha mãe falou quando cheguei até a cozinha.

Cerrei meus olhos com a abundante luminosidade que invadia pelas janelas abertas. Pude ver que ela já vestia seu usual avental antigo, e se encontrava em frente ao fogão de lenha mais velho ainda, mexendo alguma coisa em uma panela esfumaçando. O cabelo escuro preso em um coque frouxo deixava alguns fios escaparem.

—Sim, desculpe, eu sei que demorei hoje. —Puxei uma cadeira e me sentei à mesa retangular. Um trio de maçãs e um prato contendo a torta desse mesmo sabor estavam dispostos ali, ao lado da leiteira. —Acabei pegando no sono muito tarde. — Parti um pedaço do bolo e despejei meio copo de leite.

—Assim que terminar poderia me fazer um favor? —Me olhou brevemente, esticando um braço para pegar um pote de vidro em uma das prateleiras da parede vizinha. —Preciso que vá pegar um pouco de água. Um balde será o suficiente.

—Não me importo, mas... —Engoli mais um pedaço da torta. —A senhora já está fazendo o almoço? Eu sei que demorei para acordar, mas não é um pouco cedo ainda?

—Hoje não quero correr o risco de atrasar. —Abriu o recipiente, salpicando na panela um pó avermelhado, que reconheci como sendo sua famosa pimenta moída, a qual só mamãe conseguia comer. —E você não deveria estar tomando café-da-manhã mais há essa hora. Vai tirar seu apetite.

—Já disse que não tive culpa. —Enfiei mais um pedaço de bolo na boca. —Aposto que a senhora também mal deve ter dormido essa noite!

Ela me lançou um olhar reprovador por cima dos ombros, e fechei a boca imaginando se tratar do fato de eu estar falando enquanto mastigava. Entretanto, sua expressão logo se suavizou em um sorriso cálido.

—Então, se apresse. —Virou-se novamente para o fogão, dessa vez retirando uma faca da gaveta da pia e partindo uma cenoura em cubos.

—Certo... —Ela dificilmente me pedia favores quando eu acabava de acordar, então realmente era importante. Acabei com a última porção do bolo, e tomei o restante do leite em um único gole.

Era raro vê-la preparando comida tão cedo. Não era como se mamãe não gostasse de cozinhar, mas sempre se atrasava um pouco, pois tinha que voltar do trabalho todos os dias. Contudo, parece que tinha faltado dessa vez. Tirei a mesa, e ela me deu um beijo na testa antes de eu ir para o meu quarto.

Corri até o meu guarda-roupa e peguei o primeiro vestido que encontrei. Chegava até o meio das minhas canelas e possuía mangas compridas, com uma cor clara. Esforcei-me um pouco para conseguir amarrar o feixe que ficava nas costas, e joguei uma echarpe de malha longa e velha sobre os ombros, que se estendia até a altura do quadril. Penteei meu cabelo da melhor forma que pude, mas não me incomodei em calçar sapatos. O poço não ficava muito longe de casa. Joguei alguma água no rosto, tirando os resquícios de sono dos olhos, e desatei porta a fora, pegando um dos nossos baldes que estavam nos fundos, e seguindo pela vila.

Não era mais cedo, por isso havia várias pessoas nas ruas. Nossa vila era pequena, e bastante esquecida, por isso recebíamos poucos viajantes, e todos conheciam todos. Não nos importávamos nem mesmo em dá-la um nome. Mas isso não quer dizer que não gostávamos dali. Eu sempre amei minha aldeia, sempre pacífica e familiar, até porque, era o único lugar que eu já tinha estado.

Segui pelo caminho de cascalho que levava até nossa pequena praça. Uma senhora caminhava com um garotinho ao lado, que conhecia de vista como uma antiga moradora passou sorrindo para mim.

As casas eram todas pequenas, baixas, e com uma pequena porta no centro. Praticamente todas seguiam esse padrão, com as divisas feitas por tímidas cercas de madeira. Assim como a maioria dos quintais se resumia a uma pequena faixa de grama, onde alguns plantavam flores; outros, singelas hortas. Uma pequena e clara fumaça saía pelas chaminés, se misturando com o céu sem nuvens.

A maioria dos armazéns ficava ao lado das casas, disputando o espaço comercial com o residencial. Mas poucas eram essas lojas, sendo que a maioria do nosso comércio era voltado para alimentos vendidos em uma pequena feira no centro da vila. Ás vezes algum morador viajava para negociar itens na Capital, mas nunca era nada muito grandioso.

Passei pelo calçamento de paralelepípedo, onde algumas barracas e butiques estavam abertas. A sombra de um ipê amarelo estava vazia. Lá era aonde montávamos nosso loja e comercializávamos nossas maçãs que cultivávamos nos fundos de casa.

Nosso vilarejo ficava a alguns poucos dias de viajem de Fallyndel, a Capital Humana. E era lá que Yaiken havia ido servir como guarda do palácio, há oito meses. Semanas atrás finalmente tínhamos recebido notícias dele, que vieram por uma carta. Ele estaria de volta em alguns dias.

Nós mal pudemos acreditar, e estávamos esperando por aquele dia. Yaiken podia ser um irritante na maioria das vezes, mas ainda era meu irmão mais velho. Ele e nossa mãe eram a minha única família e companhia.

O poço de pedra logo se tornou visível. Musgo velho se esgueirava entre as fendas das rochas, criando veios verdes de umidade. Amarrei a haste do balde à corda, e comecei a descê-lo pela alavanca. Ouvi o som dele mergulhando na água e o puxei de volta, dessa vez mais pesado.

Apressei-me para chegar logo em casa. Apesar de que aquele balde cheio d’água estava consideravelmente pesado, e quase cai algumas vezes, tendo que desviar da dupla de meninos que passou correndo, e quase confundiram meu pé com a bola que chutavam. O sol já estava alto no céu, o que indicava que já era quase meio-dia, e queria chegar a tempo de ajudar a mamãe com o almoço.

—Bom dia. —Cumprimentou uma voz feminina. Olhei sobre meus ombros para a mulher parada atrás de mim. O cabelo casta-nho estava preso em um rabo-de-cavalo, e os olhos amendoados me fitavam com um sorriso gentil genuíno. O vestido azulado apresentava algumas manchas de terras, e a cesta de flores em uma de suas mãos indicava que deveria estar cuidando de sua plantação para floricultura. Com a outra mão retribuía o aperto de uma garotinha. Liz mostrou uma expressão carrancuda por trás das pernas de sua mãe, o que não era novidade quando ela se di-rigia a mim.

—Bom dia, senhora Cílya. —Saudei de volta, tentando virar o corpo para sua direção.

—Sua mãe não apareceu na feira hoje. Está tudo bem?

—Sim. Só estamos ocupadas. —Esperei que ela perguntasse o motivo, mas só manteve-se calada esperando que eu continuasse. —Yaiken está voltando. —Meu sorriso se encontrando de orelha a orelha.

Talvez dizer aquilo em voz alta tivesse finalmente feito com que eu realmente compreendesse. Nós estávamos juntos desde sempre, e mesmo assim permanecemos afastados todos esses meses.

Iria ver meu irmão.

—É hoje? —Cílya arqueou as sobrancelhas. —Sua mãe havia comentado comigo uma semana atrás sobre ele estar retornando, mas não fazia ideia que voltaria hoje. As semanas passaram tão rápido...

Passaram mesmo? Nos primeiros dias depois que Yaiken se foi a casa pareceu incrivelmente vazia, e de alguma forma, grande demais. Estive tentando matar o tempo ocioso escrevendo. Eu e Yaiken tínhamos inventado vários contos quando éramos crian-ças. No entanto, todas as minhas tentativas de histórias desses últimos meses foram falhas. Tudo parecia ora infantil demais, ora idiota demais. Ao menos tive a confirmação de que não tinha nascido para ser escritora.

—Ah, é mesmo! —A senhora Cílya pareceu lembrar-se de algo, e soltou a mão de Liz para pegar algo de seu bolso. — Meu marido pediu que a devolvesse. E que não se preocupasse com o pagamento.

Larguei o balde no chão e recolhi de sua palma um medalhão oval de prata, com uma pedra vermelha cravada no centro, preso a uma corrente já parcialmente oxidada. A pequena rachadura onde a joia pouca reluzente e a prata se encontravam não era mais visível.

—Está tão bem feito... —Admirei. —Tem certeza que não preciso pagar? Um trabalho tão meticuloso como esse...

—Não se importe com isso. —Gesticulou Cílya. —Não era uma rachadura muito grande, e ele conseguiu concertá-lo em alguns minutos.

Isso havia acontecido no dia anterior, quando eu acidentalmente derrubei o colar de dentro do meu guarda-roupa. E eu não podia deixá-lo lascado da maneira que estava, e muito menos contar para mamãe que havia trincado seu precioso colar, que ela me permitia usar. Guardei a joia em um dos bolsos largos da echarpe.

—Agradeça ao senhor Heric por mim. —Pedi com um sorriso, virando-me com dificuldade para continuar o trajeto com o balde.

—Ah, quando seu irmão chegar, passem em casa! — Convidou Cílya. —Farei uma das minhas sopas de rosas para vocês!

Tudo que pude fazer foi lançar mais um sorriso por cima do ombro, ver como Liz desviou o olhar, e tentar não tropeçar.

Pude sentir de longe o cheiro delicioso da comida que era preparada, mas não pude reconhecer o que era, além do aroma picante e um pouco temível da pimenta. Acho que realmente precisaria de toda aquela água depois da refeição. Tentava adivinhar o restante dos ingredientes quando sem perceber, trombei com alguém, e o balde que me esforçava a levar, quase caiu.

—Quer uma ajuda?

Reconheci a voz masculina, e em seguida a camiseta surrada que aquela pessoa vestia. Olhei para cima e encontrei os familiares olhos escuros e a barba por fazer em volta daquele sorriso. Ele pegou o balde pesado das minhas mãos cansadas, e levantou-o com três dedos, como se zombasse da minha falta de força.

—Yaiken!

—Como você está Cabelos Brancos? —Sua voz falando meu velho apelido soou nostálgica.

—O que você está fazendo aqui?

—Eu resolvi chegar um pouquinho mais cedo.

Estava sem palavras. Tínhamos calculado que o veríamos à tarde, com sorte no almoço. Mas ali estava ele, em carne e osso... Quase não parecendo de verdade. Só o observava com uma cara de boba surpresa. Não o via a tanto tempo que era estranho olhá-lo de novo. Abraçar emotivamente ou coisas do tipo não era muito o nosso estilo, mas naquele momento tive que controlar esse impulso.

—A mãe pediu que levasse essa água?

—Sim. Vamos logo. —Consegui dizer depois de finalmente afastar os olhos.

—E ela, como está? —Perguntou enquanto tomávamos o caminho novamente.

—Está bem. Está muito ansiosa para te ver.

—Eu também estou! Aliás... —Olhou-me. —Parece que você não é mais baixinha, não é? —Passou a mão sobre a minha cabeça, bagunçando totalmente meus cabelos. Geralmente eu ficaria furiosa com isso, mas esse não era o caso. Porque eu estava realmente feliz por ver aquele idiota de novo. Reparei que ele não tinha mudado nada. A postura, o cabelo um tanto bagunçado. Até mesmo a velha espada simples que estava carregando nas costas era a mesma de quando ele saiu de casa meses atrás. Mas parecia ter um fulgor diferente em seus olhos. Um brilho de ganho de experiência, ou maturidade.

Encontramos nossa mãe distraída no fogão, enquanto preparava a refeição. Entramos sem que ela percebesse. Yaiken deixou o balde sobre a mesa, e vagarosamente se aproximou dela.

—Cheguei. —Disse baixo, colocando a mão em seus ombros.

Mas já foi mais do que o suficiente para que ela se assustasse, e derrubasse a colher de madeira dentro da panela com molho. Virou-se surpresa por vê-lo do seu lado. Abriu a boca para dizer algo, mas sua voz não saiu. Tentou novamente, e acabou optando por suspirar meio embargada.

—Que coisa! Eu finalmente te vejo, e você não tem uma única palavra!

Mamãe abraçou-o com toda a vontade que acumulou por todos os meses de saudade e preocupação. Ela tinha pouco mais de quarenta anos, mas o desgaste do seu trabalho que ela tinha para manter-nos, a envelhecia, fazendo aparecer algumas rugas e fios grisalhos. Porém, naquele instante, ela parecia rejuvenescida de uma maneira que eu não via há muito tempo.

—Você chegou mais cedo do que esperávamos. — Disse ela, desenrolando o filho do abraço apertado. Seus olhos brilhando com algumas lágrimas que ela não deixou que caíssem.

—Quis fazer uma surpresa. —Falou com um sorriso travesso.

—Que coisa! —Passou a mão pelo rosto, e retirou um fio de seu cabelo escuro preso que caia sobre o olho. —Você sempre dá trabalho! Não é, Aryn?

—É verdade!

—Não quero ouvir isso de você, Cabelos Brancos! —Fui atingida por um de seus tapas no topo da cabeça.

Por esse meu cabelo ter essa cor estranha, eu sempre era alvo dos deboches do meu irmão. Sempre o detestei, até porque, eu era a única da família com aqueles fios claros. Yaiken, minha mãe, e pelo que sei meu pai que já havia morrido antes mesmo de eu nascer, também tinha cabelos negros. É estranho, apesar de eu detestá-los, não conseguia cortá-los. Toda vez que pensava em torná-los curtos, sentia com se não devesse fazê-lo. Eles chega-vam até mais da metade das minhas costas, e os fios da franja e da nuca eram rebeldes e nunca abaixavam.

—De qualquer forma... —Falou mamãe. — Você deve estar cansado. Vá até o seu quarto e relaxe um pouco.

—Você não precisa de ajuda? —Yaiken apontou para as panelas fervendo nosso almoço sobre o fogão.

—Está tudo bem! Ficará pronto logo, então Aryn, ajude seu irmão com a bagunça que deve estar ali dentro. — Gesticulou para a bolsa pesada que ele levava nas costas.

Fomos até o quarto do meu irmão, que mamãe cuidava para manter limpo desde que ele saiu de casa. Antes nós dormíamos juntos, mas conseguimos arrumar algum dinheiro economizando para que aumentássemos um cômodo da casa, criando um quarto para cada um de nós.

—Ah...Que nostálgico... —Deitou-se espalhafatosamente na cama, depois de largar a mochila no chão. —Como senti saudade disso tudo...

—Ei, ei... Essas coisas são suas não é? Ajude-me a arrumá-las! —Arremessei a bagagem sobre suas costas, e o rapaz arfou sob o peso de seus pertences.

—Certo... Ah! Tenho uma novidade que você vai gostar!— Falou sorrindo. Jogou a bolsa entre nós e sentou-se ao meu lado na beirada do colchão.

—O que foi? —Perguntei, já fuçando em sua sacola velha de couro.

—Eu encontrei o Kayllon em Fallyndel.

Parei de retirar as roupas de dentro da mochila e olhei para ele.

—Sério...?

—Sim! Ele provavelmente vai chegar amanhã.

Abri um sorriso enorme. Eu iria ver o Kayllon! Não nos encontrávamos muito, já que seu pai —Um antigo amigo do meu pai— era um ferreiro e viajava muito para vender suas mercadorias. E sem falar que eles eram Elfos, e não é costume dos Elfos andarem por essa região graças à disputa de território com os Humanos. Bem, as coisas haviam se acalmado nos últimos anos, mas ainda havia certas desavenças.

Mas que sorte poder vê-lo de novo! Conhecíamo-nos desde pequenos e ele sempre foi gentil. Estava rodeada de pensamentos felizes só de imaginar que o veria amanhã. Era o meu único amigo de infância. Talvez devesse fazer algo delicioso para ele comer.

—Se você cozinhar algo para ele, provavelmente vai matá-lo intoxicado. Ninguém vai querer casar com você desse jeito...! —Yaiken zombou de mim como se tivesse lido minha mente. Odi-ava ser tão transparente para ele.

—Isso não te interessa! —Aumentei o tom, brava e ligeiramente embaraçada, me levantando do seu lado. Ele riu da minha expressão de chateação. Entre os risos pediu desculpas pouco sinceras enquanto eu retirava o restante de suas roupas da mochila com descaso, jogando algumas peças sobre ele.

Enquanto revirava suas coisas, minha mão esbarrou em algo frio. Puxei pelo fio de bronze, um colar. Pendendo estava um pingente minúsculo de um floco de neve, quase em tamanho natural. Yaiken parou de rir e olhou para outra direção.

—Isso é delicado demais para você ter ganhado de algum amigo soldado, certo? —Exibi um sorriso travesso. —Ou agora eles pagam os guardas reais com colares de garotas?

Meu irmão voltou-se para mim, incomodado e sem jeito, com um olhar que acabou o entregando. E foi minha vez de rir da sua cara, quando ele tomou a joia das minhas mãos.

—Aryn, Yaiken, o almoço está pronto! —Nossa mãe chamou da cozinha.

Ela perguntou o que tinha acontecido para chegarmos lançando pequenos insultos estúpidos de um para o outro, enquanto eu ainda ria esporadicamente.

Contudo, a comida dela era tão boa que eu até esqueci a discussão boba com Yaiken. Se pudesse alcançar ao menos um pouco da sua habilidade culinária seria o suficiente. Tudo que eu conseguia fazer quando entrava na cozinha era sujá-la e desperdiçar ingredientes.

E mesmo enquanto devorava meu prato de carneiro com molho de tomate e maçã, eu e minha mãe ainda conseguíamos entulhar meu irmão de perguntas.

Entenda, eu nunca tinha estado em outro lugar que não fosse nossa pequena vila sem nome, por mais que Fallyndel fosse próxima. E depois que Yaiken havia passado tanto tempo lá, eu queria saber sobre tudo. Sobre a cidade, as pessoas, que tipos de serviços ele prestou, como era a comida da Capital. Tudo.

Yaiken tomou um grande copo d’água quando acabou engolindo um pedaço de carne mais apimentada, e quase engasgou ao rir da nossa afobação.

Depois da refeição nossa mãe pediu que eu fosse colher algumas maçãs das árvores mais jovens. Concordei brevemente e fui logo depois de ajudá-los a arrumar a mesa.

Tínhamos algumas boas macieiras no quintal. Dependíamos da venda de seus frutos, então mamãe cuidava muito bem delas. Por isso, praticamente todas as receitas que fazíamos em casa, levava maçã como ingrediente.

É isso! Torta de maçã! Kayllon sempre diz que adora! Pensei feliz enquanto voltava com a cesta lotada de maçãs bonitas e vermelhas. E então ouvi minha mãe perguntar num tom triste:

—Você terá que voltar logo?

Encostei-me na parede do lado de fora para escutar o que mamãe e Yaiken conversavam. Seja lá o que era, se eles me esperaram sair para falar, não podia ser algo muito bom.

—Na verdade... Não é só uma visita. — Yaiken respondeu. —Em uma semana alguns outros guardas de Fallyndel também estarão aqui. Para ajudar a mover as outras pessoas daqui para fora dessa vila.

—O que quer dizer?—Mamãe perguntou preocupada.

Yaiken suspirou

—A senhora conhece aquela floresta perto daqui, não é? Alguns de lá estão conseguindo sair. Essa vila é muito próxima da Floresta, então... Significa que vocês estão correndo perigo aqui. —Ouvi os passos de meu irmão se aproximando da nossa mãe. —Eu não vou estar sempre por perto, não vou poder protegê-las. A corte de Fallyndel sabe disso, e está ordenando que as pessoas que moram aqui sejam evacuadas em no máximo uma semana.

Uma das maçãs que eu levava no cesto rolou e caiu fazendo barulho. Mamãe e Yaiken olharam alarmados.

—Aryn...

—Não quero ter que sair dessa casa! —Exclamei por im-pulso. Eu sabia que eles estavam certos. Se as criaturas da Floresta de Hellysh realmente saíssem e chegassem à vila...

Entretanto, meus sentimentos gritavam mais alto do que minha razão.

 —Aqui é onde temos todas as nossas lembranças, onde eu nasci e cresci, onde vivemos com o papai, mesmo que eu não me lembre dele... Eu não quero ir embora!

Mamãe foi até mim, me olhando com ternura e tristeza, repousando a mão sobre meus ombros.

—Não podemos fazer nada... Escute, eu também não quero sair da nossa casa... Mas prefiro ter que deixar memórias do passado para trás do que colocar o seu futuro em perigo ficando aqui.

—Eu posso aprender a lutar e proteger nós duas! — Falava sem pensar, jogando opções completamente inviáveis. — Se o Yaiken me ensinar...

—Nem pense nisso! —Ele cortou minha fala rejeitando minha sugestão. —Você é só uma garota e é jovem demais! Tem ao menos noção do que está propondo? Não posso te arriscar deixando algo assim.

Olhei-o com um pouco de raiva. Já havia pedido inúmeras vezes que me ensinasse a manejar uma espada, mas ele sempre negava. Eu imaginei que ao menos em uma situação daquelas, ele aceitaria me treinar.

—Como eles podem estar saindo? —Perguntei para meu irmão. —Hellysh está lá há muito tempo, então por que isso está acontecendo agora?

Ele negou com a cabeça.

—Ninguém sabe. E se sabem, não diriam para pessoas como nós. Nossa única ordem é de tirar todos daqui.

—E ir para onde? —Nossa mãe indagou.

—Por enquanto, Fallyndel. Depois... Sinceramente, não tenho certeza. Podemos ficar por lá. Ou ir para alguma outra vila. Há várias na região, e que estarão muito mais seguras do que essa. Sei que temos nossas economias e acredito que também oferecerão algum tipo de amparo para todos nós. Mas estaremos juntos, não importa o que. Ei, —Ele olhou para mim, se esforçando em soar mais positivo. —Você sempre quis conhecer a Capital, não é? Tenho certeza que você vai adorar demais, de verdade.

Meu irmão estava certo. Eu sempre quis vê-la, ainda mais levando em conta que não estava a mais de dois dias de viagem. Mas não poderia estar mais desanimada com a ideia. Claro que queria conhecer tudo o que meu irmão descreveu sobre as altas amuradas, os gigantes campos de trigo dourado, os restaurantes lotados. Mas não daquele jeito. Não deixando todo o resto para trás. 

—Ainda temos uma semana. Além do mais, Kayllon está vindo amanhã, não é? —Minha mãe tentou me lembrar com um sorriso vazio.

É mesmo. Kayllon. Toda a alegria que eu estava sentindo por vê-lo de novo escorreu para longe.

—Certo. —Desviei meus olhos. Deixei o cesto com as maçãs sobre a mesa e saí cabisbaixa. Pude sentir os dois me olhando pelas costas, mas continuei para os fundos de casa.

Deitei sob a sombra das macieiras. Lá ou o meu quarto eram os lugares para onde eu sempre ia quando estava a beira de cair no choro. As árvores eram baixas, e com o peso de algumas maçãs, fazia os finos galhos se envergarem ainda mais. Logo não poderia vê-las também.

O vento balançava as folhas e os fios prateados dos meus cabelos compridos espalhados sobre a grama. Podia ouvir os ru-ídos da água de um pequeno riacho que corria ali atrás, não muito longe. Fechei os olhos ouvindo o farfalhar das árvores, perdida em meus pensamentos.

Um barulho baixo me tirou de dentro da minha mente, e me fez olhar para trás. A impressão de uma sombra passando entre as árvores foi provavelmente minha imaginação. Bom, não estava com cabeça para descobrir se tinha sido realmente só uma impressão, então ignorei o ruído. Enrolei-me sobre a grama, me dando por vencida e permitindo lágrimas escorrerem. Talvez tenha ficado ali por quase uma hora, nem Yaiken ou minha mãe vieram falar comigo, o que agradeci mentalmente. E então, devido a ultima noite mal dormida e conturbada por sonhos estranhos, o cansaço me alcançou, e eu caí no sono antes que percebesse.

Alguém estava me chamando? Por algum motivo, tinha essa impressão. Quase podia sentir meu braço sendo tocado. Uma voz soava tão distante que seria fácil dizer que ela nem mesmo estava lá de verdade. Talvez fosse só a falta de racionalidade que me fizesse pensar que era um timbre familiar. Afinal eu tinha dormido então... Não era só um sonho?

De qualquer forma, meus outros sentidos acabaram desper-tando, e minha cabeça doía bastante quando acordei por completo. Cocei os olhos preguiçosos. Soltando um bocejo baixo estiquei meus braços me espreguiçando. Imaginei que horas seriam, e olhei para cima, esperando ver o céu. Mas só pude enxergar um telhado baixo de madeira antiga e escura. Olhei em volta assustada.

Estava deitada em uma cama velha, o único móvel completamente solitário no cubículo. O ar era terrivelmente abafado, e não pude evitar tossir. Não importava o quanto eu observasse, aquele não era o pomar onde eu havia adormecido, e muito menos minha casa.

Levantei-me hesitante, sentindo o corpo um tanto dolorido. Examinava o quartinho, sentindo minha cabeça girar por um ins-tante, e esperei sentada até ela se normalizar. Movi uma das mãos para massagear as têmporas, quando acabei derrubando algo, que tilintou ao cair no chão. Assim que meus olhos focaram-se normalmente, consegui encontrar o objeto caído. Um pequeno cristal sem brilho, parecendo feito de vidro. Prendi-me a ele por longos segundo, fascinando-me com sua visão naquele ambiente velho.

Imaginei que talvez devesse levá-lo comigo, mesmo sem entender o porquê tive aquela sensação, e com cuidado coloquei-o dentro do bolso da echarpe, percebendo com alívio que o colar ainda estava ali também. Caminhei um passo e algo estralou sob meus pés. Sobre o chão se esticava uma cobertura de folhas e gravetos secos, que se despedaçavam ao toque. Meu coração tamborilava contra meus ouvidos, e alisei o tecido do meu vestido que já não estava mais tão claro como antes. Examinando as paredes velhas novamente, achei uma porta. Caminhei até ela, receosa.

—Mãe? Yaiken? —Chamei, sussurrando. O silêncio foi minha única resposta.

Deveria abri-la? O que tinha do outro lado? Não tinha certeza se queria ou não saber.

Enfim decidi empurrá-la, já que não possuía maçanetas. Com certa força, ela abriu fazendo barulho enquanto a madeira raspava contra as folhas.

Uma claridade fosca surgiu, e fechei meus olhos por um ins-tante, que protestaram mesmo diante a luminosidade precária. Comecei a me sentir ainda mais assustada quando vi uma floresta escura e sombria que se esparramava para onde quer que eu olhasse. Eu nunca tinha visto aquele lugar na vida.

Movi meus pés descalços devagar, observando as árvores distorcidas e escuras. O pequeno quarto em que eu acordei, estava tomado por heras do lado de fora. Havia muitos cogumelos espa-lhados pelo chão, assim como a continuação do tapete de vegetação morta. Aquilo era uma floresta, mas não ouvia qual-quer som de pássaros. As árvores pareciam ter mais de cem anos, exibindo uma madeira escura e velha que cheirava a poeira. Os seus galhos desprovidos de folhas, eram compridos e finos, for-mando um teto que não permitia a luz do sol entrar muito. O próprio ar trazia um odor rançoso e morto. Nenhum inseto, ne-nhum som, afogando tudo no silêncio mais aterrador que já tinha escutado.

Eu mesma havia me esquecido de respirar. Minhas palmas suavam, e tive que ordenar para que meus joelhos gelatinosos não cedessem. Esquadrinhando a paisagem pútrida, não ousei mover um músculo, tornando-me uma adesão à quietude e ao nada do lugar.

Uma metade da minha mente tentava não enlouquecer, en-quanto a outra já havia desistido. Algumas vezes tinha sonhos que conseguia controlar, onde conseguia andar, raciocinar, sempre sabendo que se tratava de um sonho, e que estava dormindo. O que eu tinha que fazer sempre que queria acordar era só lembra de casa. Fechei os olhos com vigor.

Imagine o céu. Imagine as macieiras. Imagine a voz da mamãe ou Yaiken me chamando...

O cenário não estava diferente quando tornei a olhar. Vamos lá, eu não havia feito nada de errado! Era só querer voltar e então...              

Deixei-me cair, e estapeei o chão de folhas. Volte, volte, volte! Gritava em silêncio. Até um fiapo de dor despontar no meu dedo, e recolhi minhas mãos. Um pequeno graveto aprumado havia espetado meu indicador. Observei uma pequena e perfeitamente vermelha gota de sangue surgir, ardendo.

Não, aquilo... Não era um sonho, nem pesadelo. Era pior.

Era de verdade.              

Tentei engolir meu pânico. Limpei o dedo na roupa e me levantei, batendo das pernas as folhas que grudaram. Antes de surtar ou tentar compreender, eu tinha que achar uma saída.

Só ouvia os meus passos nas folhas caídas. Galhos retorcidos se fechavam acima da minha cabeça como dedos maquiavélicos, e evitava o máximo que podia cada uma das árvores. Era difícil fazer minhas pernas se moverem, e senti cada pelo do meu corpo arrepiado. Todo aquele lugar, o silêncio, a aparência, até o cheiro era... Doente.

Mas então, um estalo de um graveto quebrando, e olhei para trás assustada. Por entre as árvores, pude ver uma figura de um homem maltrapilha, com as vestes rasgadas, e parcialmente calvo e desdentado. Provavelmente estava em seus cinquenta anos com uma barba encardida tomando seu rosto enrugado. Segurava uma faca velha, vindo até a minha direção. Os orbes brilhavam em um alucinado nuance purpúreo que eu nunca havia visto nos olhos de ninguém.

—Oh... Uma garota Humana...? —Falou com uma voz baixa e rachada, que me fez estremecer. —Isso é incomum... —Olhou-me de cima a baixo com seus olhos demarcados por olheiras extremamente negras. —Ei... Você deve tomar cuidado andado pela floresta de Hellysh...

Hellysh...? Aquela floresta para onde mandavam os exilados e criminosos portadores de Magia Negra...?

Senti meu corpo gelando.

—Ou deveria dizer... —Ele continuou. —Nem deveria entrar.

O homem deu um passo para frente, e eu instintivamente recolhi dois. Sua expressão mostrava um sorriso de canto torto, que enrugava ainda mais sua pele moribunda. Ele apertou o cabo da faca cega, e não consegui pensar em mais nada. O único impulso que tive foi virar-me e correr o máximo que podia.

Alguns gravetos e pedras machucavam meus pés descalços, e um galho ou outro riscou minhas bochechas, deixando pequenas linhas avermelhadas. Pisoteei uma família de cogumelos débil e passei pelas árvores cujo nós dos troncos pareciam sorrir afetados. Tentava ignorar tudo isso, pois corria desesperada o mais rápido que podia, deixando algumas lágrimas de desespero para trás. Não muito distante estava o som dos passos do homem me perseguindo. Talvez ele estivesse velho e sem condições físicas para correr, mas não conseguia raciocinar naquele instante. De repente, algo me empurrou, me fazendo cair com força para o lado, até trombar com uma árvore. Não tive tempo nem de imaginar o que tinha sido. Virei-me para olhar, e tudo que vi foi uma pessoa cravando uma adaga no peito do homem. Ele gemeu, e caiu morto. O sangue se espalhava pela sua roupa e manchava a terra, alimentando o ar com um cheiro metálico e ligeiramente adocicado, que fez um nó se formar no meu estômago. Os olhos e a boca continuaram abertos em uma expressão de sofrimento.

Tudo que podia fazer era observar quando o garoto andou até o corpo agora sem vida, e pegou de volta a adaga enterrada do lado esquerdo do velho morto. Fitou-a por um instante, a arma suja de sangue, o entalhe de bronze correndo pela lâmina tingido de carmesim, mas não pareceu demonstrar nenhuma emoção para com o cadáver. Retirou sua atenção da faca, e olhou-me de soslaio, os olhos escuros e também com uma sinistra e escura matiz púrpura fizeram-me estremecer.

—Não seja tão espalhafatosa quando está nessa floresta. —Falou com uma voz fria.

Não conseguia mover meu corpo, ou afastar os olhos daquela pessoa.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler e até semana que vem!

Beijos de bolo >3



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