Beating Heart escrita por Sah Cyrell


Capítulo 3
II - Samantha




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Senhorita Wishart!

O grito estridente do sr. Jenkins me fez dar um pulo – o que resultou em uma quase queda da carteira e risadas dos meus colegas. Precisei piscar umas três vezes para que minha vista desembaçasse. Devo dizer que dormir na sala de aula não é tão confortável: meu braço doía – e eu tenho certeza que minha cabeça não é tão pesada – e parecia que um caminhão havia passado pelas minhas costas. Confusa e ainda sonolenta, comecei a abrir os livros que estavam sobre minha mesa em páginas aleatórias, me concentrando em qualquer coisa que não fosse o meu vexame.

– Srta. Wishart, pode me responder quais foram as alianças entre países formadas na Primeira Guerra Mundial?

Encarei meu professor de história com a raiva ardendo nos olhos. Mamãe dizia que ele apenas “implicava” comigo, mas eu sabia que era mais que isso. Ele me odeia, e, veja bem, é recíproco. É simplesmente impossível não odiar aquele sujeito insuportável. Sua voz anasalada, seu cabelo grisalho ridiculamente partido para o lado, seus casacos de tweed com cheiro de areia de gato…

– Eu fiz uma pergunta, srta. Wishart.

– Eu não sei. – Respondi a ele, seca. Jenkins não conteve sua risadinha maligna cheia de sarcasmo quando baixou os olhos para erguê-los para mim novamente, pingando veneno.

– Então, gostaria de respondê-la à diretora?

Irei poupá-lo de outros detalhes inúteis e resumirei a história: me retirei da sala com passos arrastados e fui parar na diretoria, mas não antes de mostrar meus dois dedos do meio para Jenkins sustentando um sorrisinho falso na cara. A sala explodiu em gargalhadas e ele ficou arregalou olhos, gritando comigo para que saísse de sua frente. Dei de ombros, batendo a porta atrás de mim. As coisas não poderiam piorar, certo?

Estava sentada com a postura horrível na cadeira à frente da mesa da diretora Sprouts. Brincava com meus fones de ouvido enquanto Make Me Wanna Die tocava no volume máximo. Eu batucava a mochila no meu colo juntamente com a batida da música, esforçando-me ao máximo para ignorar a cara de velório que a Sprouts fazia falando no telefone.

– Sra. Wishart, estou preocupada com Samantha… A senhora sabe, sua filha tem um grande potencial, ela é muito inteligente. Seu problema é dormir nas aulas e, bem, algumas atitudesimpulsivas

Revirei os olhos. Mamãe já deveria estar cansada de escutar aquelas merdas.

– Sim, eu entendo. Bem… Obrigada. Até mais. – A diretora falou, antes de desligar o telefone. Ela juntou as mãos sobre a mesa e me olhou com uma mistura de pena e decepção. Bufei.

– Posso ir embora?

Jenkins havia pedido para que eu fosse suspensa. A diretora não concedeu a suspensão, mas ainda assim, eu teria que pagar minhas “atitudes impulsivas” na detenção. O que, obviamente, eu não faria. Não queria mais ficar nenhum segundo naquela escola idiota. Sprouts só precisou assentir uma vez para que eu me levantasse com ímpeto e saísse dali com pressa, fugindo pelos corredores vazios.

O clima em Elworth faz jus ao meu humor: não é nada alegre. Úmido, nublado, cinzento. Odeio essa cidade. Fazendo o percurso da escola até minha casa, eu me sentia naqueles filmes de velho oeste onde apenas uma bola de feno rola pelas ruas desertas, desconsiderando que Elworth é fria demais para isso, e seria mais fácil ver uma bola de neve ou gelo por aqui.

Encostei-me a porta de casa enquanto procurava a chave em minha mochila. Frustrada, derrubei tudo o que estava dentro no chão e revirei a bagunça de livros e cadernos. Nada. Lembrei que havia esquecido minha cópia da chave em cima da cama.

Definitivamente eu estava errada. As coisas sempre podem piorar.

– Izzy. – Sussurrei para mim mesma no momento em que a ideia surgiu na minha cabeça. Eu não ficaria ali fora, mas também não iria ligar para meus pais trazerem a chave, já que isso resultaria em “por que não está na escola?” e uma sequência de sermões. Isabelle carregava sua cópia da chave em um colar para que ela nunca a esquecesse (o que eu deveria fazer também, por sinal) e ela não contaria para papai e mamãe que eu havia matado aula outra vez. Digitei seu número e cruzei os dedos para que ela não demorasse a atender.

– O que está fazendo? – Izzy sussurrou do outro lado da linha e suspirei aliviada. Ela deveria ter atendido o celular dentro da sala de aula.

– Preciso que invente uma doença para sair da sala e venha para casa. Estou trancada do lado de fora. – Eu disse.

– O quê? Sam, eu não poss…

– Por favor! – Insisti. – Alguém pode aparecer e me estuprar, e a culpa vai ser toda sua.

Izzy deu uma risadinha.

– Dramática você, hein? Me dê cinco minutos.

– Eu te amo! – Gritei antes que ela desligasse.

Eu tinha todas as razões do mundo para odiar Izzy, mas se analisarmos os fatos, ela é a pessoa mais adorável do mundo, não há como odiá-la. O certo seria dizer que eu tinha todas as razões do mundo para ter inveja dela, mas, em vez disso… Tudo o que eu sinto por Isabelle é admiração. Ela é a filha perfeita, que dá orgulho para nossos pais, ótima na escola, é uma garota maravilhosa… Sem contar que ela é mesmo filha deles, diferente de mim. Gostaria de ser como ela, mas sei que isso não vai acontecer.

Depois de duas músicas terem tocado no meu iPod, Isabelle apareceu no fim da rua. Ela vinha correndo, seus cabelos pretos balançavam com o vento e suas pernas pequenas pareciam poder quebrar a qualquer momento. Izzy parou, ofegante, e vi que suas grandes bochechas estavam coradas. Me esforcei para não rir dela e peguei a chave que ela estendia para mim.

– Você sabe… Que eu… Nunca faria isso… Por mais nenhuma outra pessoa… Certo? – Falou ela, entre várias tragadas de ar. Não consegui segurar a risada.

– Por isso você é a melhor irmã do mundo. – Sorri, me jogando no sofá da sala, o lugar mais confortável do mundo. Izzy desapareceu na cozinha e eu chutei os tênis para longe. Quando ela voltou, com um copo de Coca-Cola em cada mão, ficamos assistindo o primeiro programa idiota que apareceu até que Izzy não aguentou e desembuchou a pergunta:

– O que foi que você fez?

Pode-se dizer que ela já estava acostumada.

– Dormi na aula outra vez… E fiz um gesto “obsceno” para o Jenkins. – Fiz aspas com as mãos. – Ele não ficou muito feliz.

Ela me olhou com desaprovação e eu dei de ombros, com desdém. Nossas conversas sobre minhas encrencas na escola basicamente se resumiam àquilo.

Nossos pais chegaram alguns minutos depois, apressados e com várias sacolas em mãos. Eles nos cumprimentaram com um “oi, meninas” rápido antes de irem para o andar de cima. Os dois são médicos e estariam partindo para Nova York em poucas horas para uma convenção ou seja lá o quê médicos fazem ao se reunirem do outro lado do mundo.

Como eu já previa, mamãe nem mencionou a ligação da diretora. Provavelmente ela achava que eu não tinha mais jeito. Embora eu fingisse não dar a mínima em relação a isso, secretamente eu tinha aquela sensação incômoda de querer sua atenção, por mais estúpido que possa parecer.

– Querem ir até Manchester conosco? – Mamãe perguntou, pegando a última mala para levar para o táxi que os aguardava do lado de fora. Nem tive tempo de dizer que não estava afim – estava passando um episódio de F.R.I.E.N.D.S que eu nunca tinha visto – quando Izzy se colocou de pé rapidamente.

– Sim! – Disse ela, empolgada. A garota adorava Manchester. Senti vontade de morder uma almofada para não grunhir.

– Ótimo. Sam, vamos. – Mamãe falou, mostrando que eu estava enganada se achava que tinha escolha.

Manchester era a cidade mais próxima de Elworth onde havia um aeroporto, e nosso trajeto de carro até lá levava quase uma hora. Mamãe, papai e Izzy conversavam sobre tudo ao mesmo tempo; já eu, como se nem ao menos fosse integrada àquela família, apenas escutava minhas músicas em silêncio. Sempre era assim, em todas as vezes que saíamos juntos.

Dessa vez, no entanto, algo estava diferente. Algo parecia errado. Enquanto eu observava a paisagem deprimente do interior inglês, notei que o movimento daquela estrada se resumia ao nosso táxi e mais um carro, preto, logo atrás de nós. Queria poder dizer que era apenas paranoia minha, afinal, não tínhamos motivos para estarmos sendo seguidos. E eu teria acreditado nisso se o carro não tivesse estacionado no aeroporto ao mesmo tempo que nós.

Senti o estômago gelar e meu corpo se retesando. Tive medo... medo de que algo pudesse acontecer conosco.

– Está tudo bem? – Izzy segurou minha mão e eu dei um sobressalto.

– Sim. – Confirmei a ela, mas minha voz saiu tão fraca que ela nem ao menos pôde me ouvir. Os olhos verde-dourados de Isabelle me estudaram com desconfiança por alguns segundos até mamãe desviar sua atenção de mim ao chamar por nós.

As pessoas passavam arrastando suas malas e falando em seus telefones celulares. Me sentia como um corvo em meio a tantas cores chamativas e conversas alegres – ninguém prestaria atenção em uma adolescente vestindo uma camiseta preta do AC/DC, jeans rasgados e jaqueta de couro. Mamãe não gosta do jeito que me visto e diz que se algum dia eu quiser tingir o cabelo de preto para virar uma legítima gótica eu terei que passar por cima de seu cadáver. Não que eu tenha vontade de fazer isso. Gosto dele do jeito que é, loiro prateado, às vezes quase branco dependendo da luz. E eu não sou gótica. Sou apenas eu. Só a estranha e patética Sammy.

– Venham aqui. – Mamãe chamou, prestes a passar pelo portão de embarque. Izzy a abraçou primeiro e ganhou um beijo na testa. Logo depois foi minha vez. Aceitei seu abraço caloroso e carinhoso.

– Se algo acontecer, qualquer coisa, nos avise. E não fique longe de Alexia.

Poderia jurar que ela estava fazendo uma piada, mas parecia bastante séria quando fitei seu rosto.

– Mãe, Lexi tem a minha idade. Ela não faz o estilo babá, sabe? – Eu ri, mas mamãe não deu continuidade no assunto.

Alexia Bennet é minha melhor amiga. Minha e de Izzy também. Não é como se existisse algum tipo de competição, às vezes sinto como se nós três fôssemos partes essenciais de um mesmo corpo. Izzy é o cérebro: ela sempre pensa no que fazer, tem os melhores planos, é a mais racional. Eu sou o coração, impulsivo, que toma as decisões idiotas. Não sei como ela consegue, mas Lexi consegue ser ambos, dependendo da situação.

Mamãe entrelaçou aos dedos aos de meu pai e foi então que percebi que ele estava olhando para mim. Não era a primeira vez que eu percebia que havia algo esquisito em seu olhar... Como se ele tivesse um segredo que eu não poderia saber nunca. Se isso for mesmo verdade, não consigo imaginar o que seja, afinal, já sei que sou adotada. Eu descobri por acidente, e não fiquei traumatizada e comecei a chorar histericamente como acontecem nos filmes. Na verdade, só tento ao máximo não pensar sobre isso. E funciona. Menos em alguns dias, dias como...

– Comporte-se! – Papai disse. Isabelle entrelaçou o braço no meu.

– Ah, papai, fala como se fôssemos dar uma festa. – Ela revirou os olhos, rindo, e decidi não comentar nada. Eu podia apostar que ele não estava falando com ela.

No caminho de volta para o táxi, enquanto cruzávamos o estacionamento do aeroporto, não resisti e dei uma última olhada na direção que havia visto o carro preto pela última vez. Ele ainda estava lá, e dessa vez, com a janela do motorista aberta. Era um cara que não deveria ser muito mais velho do que eu, com cabelos castanhos claros e óculos escuros. Ele fumava um cigarro e soprava a fumaça devagar, parecendo entediado. Embora fosse difícil dizer pelos óculos, eu sabia que ele olhava para mim também.

Meu coração pareceu pular para fora antes que eu pudesse segurá-lo.

– Samantha! – Gritou Izzy de dentro do carro. Eu mal a vi entrando. O motorista me olhasse como se eu fosse perturbada. – Ok, quer me contar o que há com você hoje?

– Só estou distraída. – Respondi, sem querer dar mais detalhes. Achei que se dissesse “não olhe agora, mas acho que tem alguém nos seguindo” Izzy poderia entrar em pânico. Ela não gostava nem um pouco de quando eu e Lexi fazíamos maratonas de filme de terror, uma perseguição poderia ser demais para o seu coração sensível.

Quando olhei para trás, o carro não mais nos seguia. O trajeto de volta para casa pareceu menos longo.

Apesar de amar nossos pais, me sentia mais confortável quando estávamos apenas eu e Izzy em casa. Era mais fácil ser eu mesma.

– Vamos chamar a Lexie. Ela deve estar trancada em casa com o pai maluco dela. – Sugeriu Izzy, ocupando o espaço vazio ao meu lado no sofá e me estendendo uma tigela cheia de pipoca que aceitei sem pestanejar. Fiz que sim com a cabeça, de boca cheia.

Um minuto de silêncio se passou até que eu resolvi falar:

– Ultimamente eu tenho pensado sobre meus pais... – Pigarreei. – Digo, os biológicos, sabe?

Mantive o olhar na televisão, mas Izzy me encarava. Ela deixou a tigela de lado e segurou minhas mãos. Eu estava fria, e ela, quente. Éramos literalmente um choque térmico.

– Não quero que pense sobre isso. – Falou, séria. Eu dei de ombros, e então ela segurou meu rosto, fazendo com que nosso contato visual fosse direto. – Você é minha irmã, está me ouvindo? Sempre será.

E eu sabia que era verdade. Abracei-a com força, tentando apagar aqueles pensamentos da minha mente. Essa é a minha família, decidi. Sempre será.

Mas ainda era impossível para uma parte de mim aceitar isso.


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