Beating Heart escrita por Sah Cyrell


Capítulo 4
III - Alexia




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Não havia sido exatamente minha culpa, eu sabia. Estava totalmente sem equilíbrio e eu poderia ter certeza que ninguém em condições normais veria bolinhas coloridas dançando diante de seus olhos. Mais um chute ou soco me levaria ao chão em questão de segundos. E foi o que aconteceu, logo depois de colidir minha cabeça e costelas contra a superfície dura e fria. Gemidos e rosnados reprimidos eram a única coisa que escapavam por entre meus dentes cerrados, e eu me sentia como um animal encurralado e ferido.

– De pé, Alexia. – Aquela voz grossa e masculina já estava me dando nos nervos. – Se não conseguir resistir a isso, já pode se considerar morta.

– Será que você pode ser apenas o meu pai por um segundo? – Urrei, sentindo o gosto de metálico e salgado de sangue na língua. Passei a manga da camiseta pela boca, limpando-a. Controlei-me ao máximo para ficar de pé sem soltar um grito de dor. Cada fibra do meu ser parecia estar explodindo em chamas.

Jeremy – ou como ele gostaria que eu o chamasse, meu pai – me observava de um jeito divertido. Eu podia apostar que ele estava vendo à sua frente uma garotinha patética e indefesa, indigna de perder seu tempo. Ele cruzou os braços enormes, repletos de tatuagens e cicatrizes, e ergueu as sobrancelhas enquanto caminhava até mim em passos firmes. Tentei me manter ereta, mas minha coluna estava me matando. Tudo o que eu queria era ficar deitada, esperando a dor passar.

– Deveria usar toda essa raiva nos treinos, Lexi. – Ele tocou em minha bochecha carinhosamente. Seu gesto me surpreendeu. Se eu fosse mais ingênua e mais burra, teria ficado surpresa o suficiente para que seu soco me acertasse em cheio. Mas meu pai não me dava uma demonstração de afeto desde a morte da minha mãe, onde nós dois nos tornamos máquinas frias de matar, sem emoções o suficiente para dar carinho um ao outro. Então, segurei seu braço antes que seu punho atingisse o meu rosto, dando-lhe um chute entre a coxa e a panturrilha. Jeremy vacilou e dei uma joelhada em suas costas, arrancando-lhe um grunhido, e segurei o braço dele em volta do próprio pescoço, fazendo-o sufocar a si mesmo.

O problema era que Jeremy era mais forte. Eu poderia tê-lo machucado um pouco, mas eu já estava destruída. Ele se livrou de minhas mãos, ficando de pé em um salto. Suas mãos apertaram meus ombros com força antes que eu pudesse fugir, arrancando-me um grito, e ele me lançou contra o chão pela enésima vez naquela noite.

Eu poderia muito bem erguer a bandeira branca.

– Eu odeio você. – Cuspi, apalpando meu tronco para ter certeza de que nada estava quebrado. Doía como os diabos, mas não a ponto de ter algum osso fraturado. Eu não odiava Jeremy. Eu odiava aqueles treinos. Eu não havia pedido para nascer naquela família de malucos.

Na verdade, o mundo inteiro parece ter ficado maluco. As pessoas não sabem, mas eu sei o bastante. Os melhores sobrevivem. E quando digo os melhores, não falo sobre os lutadores. Falo sobre os assassinos.

Eu, definitivamente, odeio matar.

– Tudo o que eu faço Alexia, tudo, é para o seu bem. – Jeremy disse, sentando-se ao meu lado no chão. Ele encolheu as pernas, colocando um braço sobre os joelhos. – Você precisa estar preparada. Você sabe qual é a sua função.

– Eu já ouvi isso milhões de vezes. – Falei, escondendo as mãos com o rosto. Estavam trêmulas e frias. – Não precisa repetir. Só irá piorar as coisas.

– Você não pode ser amiga de Samantha Wishart, Alexia. Pessoas como ela não pertencem ao nosso mundo.

Deixei escapar uma risadinha sem humor.

– Tem certeza? Não estamos falando da filha do maior sanguinário do mundo?

– Mas ela não sabe disso. – Ele me censurou com rigidez. – Essa é a sua função. Você precisa proteger essa menina do pai dela e de qualquer pessoa que tente chegar até ela. E acredite, isso irá acontecer em algum momento. Tem noção de como é importante que você esteja preparada para mantê-la em segurança?

– Eu sei! – Berrei, explodindo de uma vez por todas. Levantei, mesmo com dificuldade, porque simplesmente não conseguiria ficar mais tempo na presença daquele homem.

A esse ponto de minha vida, cheguei à conclusão de que sou uma garota estranha. Saí da sala de treinamento e me tranquei em meu quarto, nem ao menos conseguindo chegar até a cama. Desabei, agachada no chão ao lado da porta enquanto as lágrimas escorriam, fazendo um caminho gelado por minhas bochechas.

Queria arranjar alguma forma de me livrar daquilo. Dos “negócios da família”, como Jeremy falava. Éramos como uma sociedade secreta, contratados para proteger pessoas inocentes – mas protegê-las não nos tornava inocentes, porque precisávamos fazer tudo o que fosse preciso para isso. Aquilo era desgastante. Era assustador. Eu me sentia assustadora. Nunca tivera muitos amigos, como uma garota normal de dezessete anos. Porque eu não sou normal.

E então, pela primeira vez, eu havia conseguido. Tinha duas amigas. E eu estava mentindo para elas. Sobre minha identidade, sobre o motivo real de sermos tão próximas, sobre tudo.

Eu mesma sou uma mentira.

...

Elworth estava triste. Eu também estava. De certa forma, ficava feliz pelo clima me entender. Depois da noite passada senti como se meu corpo não fosse mais capaz de produzir mais nenhuma lágrima. Passei a manhã trancada em meu quarto, abraçando o travesseiro e tentando chorar outra vez. Nada.

Agora, eu observava o lado de fora da casa pela janela da sala de estar, sentada na escada. A garoa diária fazia pequenas gotas escorrerem pelo vidro e – sei que isso soa completamente depressivo – eu me concentrava em cada uma delas. Algumas conseguiam chegar até o chão, outras se fundiam entre si. Não sei quanto tempo gastei naquilo, mas fiquei grata pela chuva que estava chorando por mim.

– Por que não foi para a escola? – Jeremy apareceu, segurando uma caneca fumegante em uma das mãos e o jornal local na outra. Ele quase parecia um pai comum desse jeito. Quase.

– Estava com dores demais. – Respondi dando de ombros. Voltei a me concentrar na chuva.

Ele riu, encostando-se ao corrimão da escada.

– Você deveria sair. Ir à casa das Wishart.

Mesmo sem encará-lo, eu ergui as sobrancelhas.

– Ontem você deixou bem claro os milhões de motivos para eu não ser amiga de Sam e hoje sugere que eu vá até a casa dela? Cuidado, Jeremy. Talvez seu gêmeo do mal esteja se passando por você pra me enganar.

Observando-o de soslaio, vi quando ele rolou os olhos.

– Então vamos ignorar a vozinha de uma garota de uns doze anos que acabou de ligar dizendo “Sr. Bennet, a Alexia poderia vir passar a noite conosco? Oh, obrigada mesmo!” – Ele fez uma péssima imitação de Izzy, mas foi o suficiente para me fazer levantar. Talvez ficar um tempo com as garotas me deixaria melhor.

– Ela não tem doze anos. – Foi o que eu disse a ele, apesar de ter noção de que Isabelle ao telefone realmente faria qualquer pessoa confundi-la com uma pré-adolescente.

Tirei do guarda-roupa uma jeans escura, minha camiseta preta favorita e um cardigan azul; eles não deixariam à mostra meus machucados. Na frente do espelho, fitei meu próprio reflexo por alguns segundos até ficar com desgosto demais para continuar e decidi me concentrar na maquiagem que cobriria minhas olheiras e o batom para esconder o corte em meu lábio inferior. Imaginei como seria se eu aparecesse na casa dos Wishart com meus braços expostos, revelando as marcas arroxeadas que os cobriam. As meninas e seus pais ligariam para a polícia dizendo que Jeremy me espanca em casa. Tecnicamente, é exatamente isso o que ele faz, mas isso não vem ao caso.

A garota que me encarava de volta depois que finalizei o trabalho estava bonita, inteira. O longo cabelo castanho claro caía por cima dos ombros em ondas. Ela parecia feliz, se não fosse por seus olhos – que eram, de forma assustadora, da mesma cor que os cabelos – afundados em melancolia. Havia coisas que nem mesmo eu podia esconder.

Coloquei meu celular e a cópia de minhas chaves dentro da bolsinha que levaria comigo. Visto que a cidade era pequena o suficiente para a casa das meninas ser apenas a algumas ruas de distância da minha, eu iria a pé. A pior coisa que poderia acontecer era desmaiar no meio do nada, finalmente derrotada pela dor.

– Está armada?

Respirei fundo e tirei a mão da maçaneta, me virando de frente para meu pai. Ele não parecia estar brincando.

– Quer que eu leve uma arma para assistir um filme com minhas melhores amigas?

– Bem, será que você se sairia melhor em estripar alguém com uma faca? – Disse, com sarcasmo. Revirei os olhos. – Leve a Cyclops, cabe em sua bolsa.

A contra gosto abri o cadeado que selava o armário de armas que estava em nossa sala. A Cyclops estava lá, junta a tantas outras armas. Ela já não parecia tão pesada em minha mão como havia estado na primeira vez que a segurei, mas seu metal continuava frio. Segurar aquela coisa ainda me causava mal-estar, fazia meu coração parecer uma bola de chumbo em meu peito.

A munição estava o.k. Seis tiros. Era o suficiente, afinal, se você perde o primeiro tiro, tudo já está perdido. E como eu não era paranoica como Jeremy, não iria levar mais balas “só para garantir”. Nada iria acontecer.

Seria só mais uma noite normal, certo?

Como eu estava enganada.

Era mais ou menos 19h23. Pelo menos era isso o que o relógio marcava da última vez que chequei. Nós três estávamos discutindo sobre qual filme assistir, até Izzy e Sam falarem algo que me fez gargalhar. Estávamos tão distraídas em nossas próprias “preocupações” naquele momento que o barulho da janela da cozinha explodindo me deixou estática, em choque.

Foi um tempo que eu não deveria ter me dado ao luxo de perder.

Eram cinco homens, todos armados, maiores do que eu. Maiores até mesmo do que Jeremy. O grito de Izzy fez com que eu retomasse os sentidos rapidamente, sacando a arma que estava em minha bolsa com uma agilidade que eu não sabia que tinha até então. Agarrei o braço de Samantha e a puxei para trás do sofá, deixando-a atrás de mim. Fiquei de pé e atirei apenas uma vez no homem mais próximo. Foi um péssimo tiro. Sam também gritava, e enquanto eu me concentrava em protegê-la, desviar dos tiros que vinham em nossa direção e atacar os invasores, lembrei que ela não era a única que estava em perigo.

– Izzy, esconda-se! – Berrei, abaixando-me junto com Sam enquanto mais balas voavam sobre nossas cabeças. O lustre da sala de estar dos Wishart explodiu e salpicou o chão com cacos de vidro. Mais gritos.

Meu coração estourava em meus ouvidos. Parecia que meu corpo todo estava encharcado com suor e a adrenalina corria em minhas veias. Mantive Sam abaixada e me coloquei de pé num pulo, olhando por cima do ombro o mais rápido que pude para me assegurar que Izzy estava bem. Quando vi seu corpo encolhido atrás de uma cômoda nos fundos da sala, voltei a olhar para frente e atirei no peitoral de um dos homens. Eu não o matei, mas ele estava incapacitado de lutar, jogado no chão e agonizando com um ferimento que jorrava sangue. Ele gritava.

Minha arma só tinha mais quatro munições e ainda havia outros três homens. Eles continuavam a disparar e a única coisa que eu poderia fazer era manter Samantha escondida atrás do sofá e continuar a tentar atingi-los. Eu sabia que tudo já estava perdido. Nós três iríamos morrer e eu fracassaria em minha missão. Os quatro saíram da cozinha e chegaram mais perto apontando as armas. Pisquei com força e voltei a disparar e desviar da resposta deles. Três munições. Duas...

Algo ainda mais absurdo aconteceu. A porta de entrada da casa foi arrebentada e me joguei ao chão antes que ela se chocasse contra mim. Três outros caras surgiram mais jovens do que os do primeiro grupo, mas eles não atacaram a nós. Atacaram aos homens. Cada um sacou sua arma e, em sincronia perfeita, atiraram nas cabeças dos invasores. Um deles disparou duas vezes, e foi só. Quatro tiros, e um silêncio mortal se instalou.

Eu sentia como se todo o ar tivesse sido drenado de meus pulmões.

Os garotos entraram na casa, e eles não pareciam ser muito mais velhos do que os alunos do Ensino Médio que frequentavam nossa escola. Um deles era loiro, e foi o que atirou na direção em que o único sobrevivente – aquele que eu atingira – estava, no chão.

Sam tremia. Seu rosto estava pálido e inexpressivo, mas ela não chorava, o que significava que os soluços só poderiam estar vindo de Izzy.

Por anos eu havia sido treinada para aquele momento, e agora eu não sabia o que fazer ou o que dizer a elas.

– Ei, está tudo bem. – Usei o tom de voz mais carinhoso que podia enquanto acariciei os cabelos loiros de Sam. Ela não reagiu. Franzi os lábios e fui até Izzy, mas me afastei quando ela olhou para mim. Parecia magoada, com medo e com raiva. Afastou minha mão e, em passos pequenos, foi até a irmã, agachando-se ao lado dela e a envolvendo em um abraço.

Nem mesmo eu poderia julgá-la por me odiar naquele momento.

– Olá, você.

Engoli em seco. Os três garotos estavam me observando como se eu fosse uma aberração.

– Quem são vocês? – Perguntei. De forma surpreendente, consegui soar firme, mesmo que estivesse desmoronando por dentro.

– No momento, aqueles a qual você deve não só a sua vida – Um deles falou. Era o mais alto e tinha cabelos castanho claros, como os meus. –, mas também a da filha de Lockwood. E da outra garota também.

Todo o sangue pareceu se esvair de meu rosto.

– Vão embora. – Ordenei.

– Ah, por favor, princesa. – Outro deles disse. Era doentiamente pálido, tinha cabelos pretos arrepiados e era terrivelmente atraente. Resolvi ignorar esse último pensamento. – Se não fosse por nós, todas vocês estariam mortas. Não teriam chance.

Do quê você me chamou? – Ergui as sobrancelhas, chocada. Quem o idiota pensava que era?

– Se é tão importante para você... – O de cabelos castanhos voltou a falar. – Aquele é Nicholas Halter. – Ele indicou o loiro esquisito com um meneio da cabeça. Nicholas apoiava um ombro na parede e parecia estar se divertindo com a situação. – Este é Theo Wolff. – Ele apontou para o moreno convencido, que piscou para mim. Eu, decididamente, não gostava dele. – Sou Daniel Carter. – Falou, com um sorrisinho amigável.

Seu nome foi o único que causou efeito em mim. Porque eu o conhecia.

– Você é o filho de Tony Carter?

A expressão de Daniel se endureceu.

– Agora diga quem você é.

– Alexia Bennet. – Eu respondi, cruzando os braços. – Não importa. Não precisamos de vocês.

Daniel deu uma risada presunçosa.

– Na verdade, não podemos ir embora sem vocês. Ou deixá-las ir embora sem nós. Entende o que está acontecendo aqui?

Cerrei os punhos.

– Não, eu não entendo!

– Não é mais seguro mantê-la aqui... Espere. – Daniel olhou para as duas meninas atrás de mim. – Qual de vocês é a filha biológica?

Mesmo que aquilo soasse indelicado, Sam não se afetou. Isabelle ficou de pé.

– Sou eu.

– Interessante. – Ele respondeu. Encarou Samantha com fascínio. Izzy pareceu confusa por ter sido ignorada. – Temos muita coisa para conversar.

– Você não pode aparecer aqui e simplesmente tirá-la da minha proteção. Eu tenho sido treinada desde os doze anos para mantê-la segura!

– E você não tem se saído muito bem, certo? – Theo riu.

– Cale a boca!

– Escute, não temos muito tempo. – Daniel se aproximou e segurou meu pulso. – Não sabemos quanto vai demorar até que essa casa seja invadida de novo. Você virá conosco. A irmã dela viu coisas demais, teremos que levá-la também. Manteremos as três a salvo em nosso esconderijo.

– Espere um minuto. – Izzy disse. Mesmo que precisasse erguer a cabeça para olhar para Daniel, parecia mais destemida do que nunca. O único momento em que sua confiança vacilou foi quando ela olhou para Nicholas. Ele parecia deixá-la nervosa, e com razão. Era calado e misterioso. – O que é que está acontecendo aqui?

– Ficaremos felizes em contar se vierem conosco. Caso contrário, é capaz de algum outro grupo de assassinos entrarem aqui e matar você antes que saiba a história. – Daniel respondeu, placidamente, como se estivesse falando sobre algo completamente normal. – Tudo o que precisam saber por enquanto é que estamos do seu lado. Podem confiar em nós.

E como se tudo aquilo fosse culpa minha, ela me fuzilou com o olhar mais uma vez antes de se voltar para os garotos.

– Então nós vamos.


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