O Refúgio Online escrita por Nedhand


Capítulo 9
Capítulo 53




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O martelar do metal entoava uma canção que espalhava-se por todas as montanhas de Perion, ecoava nas cavernas e ressoava no aço já pronto e nos escudos esmerados. O sol forte reluzindo nos metais era como centenas de minúsculas estrelas terrestres. Embora fosse uma das cidades de iniciantes, Perion era também a cidade dos guerreiros, e também onde se encontravam os melhores ferreiros.



Todos eles, sem exceção, estavam ocupados e com pelo menos quatro trabalhos pendentes em espera. O grande torneio que aconteceria em breve havia sido anunciado em toda parte, e eram muitos os jogadores que esperavam sobressair-se na categoria Guerreiro. Jogadores solitários passaram a realizar Quests para a confecção de armas novas e melhores, e clãs inteiros uniam-se para selecionar seus campeões que iriam representá-los na competição. Ferreiros, armeiros e mineiros trabalhavam pesado desde que o sistema de customização de armas tinha chegado ao jogo.



Perion em si era uma enorme montanha rochosa e plana, cheia de caminhos, cavernas e saliências que tinham o tamanho de bairros e desfiladeiros que podiam fazer o papel de ruas. Tudo era duro e marrom, com pedras grandes aqui e ali. Dark Corpse driblava-as com as canelas magras, queixando-se sempre de uma pedra ou ponta de rocha que o atingia, o ombro raspando na parede de pedra à direita. Passava pelos diversos ferreiros, inspecionando-os com aspereza.



—Trabalhem duro, trabalhem mesmo, estamos procurando mais que um socador de latão... Droga de pedra!



—Pedra burra! Bate nela, Poke! — incitou Vile Slayer.



Dark Corpse resmungou alto. A sensação do pedregulho na canela, se não era real, era bastante dolorida.



—Por que estou aqui procurando equipamentos? Eu nem sou Guerreiro, vê se pode! Por que o Italo precisa ficar vendo lanças? A dele já não basta?



—A Stormshear é suficiente — Italo concordou atrás dele.



Seguiam atrás Leslie, Rakyaat e Vile Slayer, que gostava de ficar girando a cabeça para fazer a cara de cavalo movimentar-se subitamente de um lado para o outro. Dark Corpse parou numa barraquinha de madeira atolada de elmos, placas de peito e os mais diversos tipos de armas, mas eram todos itens comuns que não tinham valor. Perto dele havia a de um homem de cabelos azuis vestido com uma ornamentada armadura em fitas espirais vermelhas, num fundo negro, e um capacete com cem espinhos. Apresentava-se como Moharis, o Caçador de Lendas, e dentre seus equipamentos caros havia alguns de nível alto, negros ou pintados de várias cores.



—Essa espada, azul como o céu limpo e certamente tão afiada quanto bela — ele lançou um olhar exagerado para a katana de Rakyaat quando eles passaram — Um pouco fina, e estranhamente curvada demais, mas o aço é belo, e aço aprende depressa. Posso transformá-la numa genuína espada de verdade, ou até mesmo numa de duas mãos, se seu ouro compensar a falta de metal. O que me diz?



Evil Corpse levou a mão ao cabo da katana automaticamente, como se tivesse medo que o NPC tentasse roubá-la. Grunhiu uma resposta desajeitada, fazendo o homem aproximar a cabeça. "Hã?". Quando Rakyaat corou, envergonhado, depois de repetir a recusa pela terceira vez, em voz muito baixa, Dark Corpse fez um aceno insolente ao homem.



—Sai daqui, velho. Ninguém precisa das suas frescuras.



Numa península de rocha que se projetava como uma língua na beira de um despenhadeiro, a loja era mais sólida e isolada. Feita de tijolos da mesma cor que Perion, metade redonda e a outra metade quadrada com um telhado, as peças que vendia ficavam expostas em suportes ou penduradas em ganchos nas paredes. A pequena forja ocupava quase todo o espaço atrás da casa, deixando poucos metros entre o fogo e a borda do penhasco. Um vendedor calvo, ficando barrigudo e de olhar severo conversava com uma menina quase da altura dele, coberta de placas de aço e cabelos castanhos meio sujos que caíam como uma cortina na armadura.



—...sessenta garras de Drake. Quatro para o cabo, seis para a guarda e o restante para a lâmina, e dez garras de Drake Vermelho, de Bronze ou de Gelo para esmerá-la, dependendo da propriedade que queira — ele dizia — O pêlo de Cellion garante propriedades mágicas e o de Grupin é mais duro. Será útil em seu escudo. Vou precisar de duzentos.



—Você está me roubando — Leslie erguia-se na ponta dos pés para chegar ao queixo dele, parecia aborrecida — Como uma espada pode levar tantas garras? E o que eu quero é uma [i]maça[/i]. Como você pode gastar duzentos pêlos de Grupin pra fortalecer meu escudo, e isso fora os mesos? Você só usa uma parte e fica com o resto pra você!



—Nunca me importei com o insulto de uma garota, menina, choramingue o quanto quiser. Meu trabalho é mais genuíno do que o que vai encontrar nas outras lojas. Se não acredita, vá lá levar seu escudo a alguém que o melhora por dez garras de Drake e veja como ele te ajuda contra a espada do Caçador de Legendas. Tem sorte por eu oferecer um trabalho decente por essa quantia em [i]mesos[/i], garota.



Vile Slayer tinha consigo um milhar de pêlos de Grupin, e convenceu Leslie a entregar duzentos ao ferreiro para que ele trabalhasse no escudo dela. Depois jogou cem pêlos pelo ar, para que caíssem como confetes. Sem o escudo, Leslie não segurava qualquer equipamento nas mãos cobertas por metal. Tinha vendido a maça a um jogador que tinha chegado de repente, ansioso pela arma. Oferecera um valor maior do que aquele pelo qual ela pagara, então ela resolveu arriscar. A maça realmente era feita pra alguém vários níveis mais baixo do que o dela.



—Não sei se existem maças de nível 85, devem existir, existem as de 60, de 65, 70, 75 e a de 80, então como não ia ter a de 85? — ela falava com Italo enquanto percorriam a cidade, franzindo a testa como se ele tivesse sugerido que não havia maças daquele nível — Eu vi uma 110, será que eu compro e espero alcançar o 110? Ainda falta muuuuuito, mas você não vai aumentar aquela habilidade que dá Experiência? Eu ouvi o pessoal falando que entrou um Clérigo pro clã, e ele tem magia negra! Como ele conseguiu isso, ele é trapaceiro?



—Bah — Dark Corpse parou um pouco para esfregar uma perna dolorida — Ali, Italo, uma placa de armadura. Dá pra gente ir embora logo?



—Meu escudo ainda não tá pronto, e eu ainda não comprei minha maça — Leslie reclamou.



—Vamos comprar sua maça — prometeu Italo — Por que vocês não ficam procurando uma, enquanto eu resolvo umas coisas? Não vou demorar a voltar. Encontro vocês na caverna do chefe Balrog.



—Isso pede uma canção! — Vile Slayer aplaudiu animado — Consigo sentir na minha mente, está vindo! "[i]Lá na minha terra tinha um bode muito feio, e o nome dele era Italo...[/i]"



Os sons da música de Vile Slayer foram sumindo quando Italo se afastou pela cidade. Puxou o capuz azul sobre a cabeça, estudando as redondezas enquanto procurava um ponto alto o suficiente. Encontrou-o facilmente; chegar nele foi a parte difícil. O cume que desejava parecia enganosamente próximo, e Italo passou por pequenos vales, depressões e vários outros montes de rocha antes de chegar lá, um pico alto que se erguia no todo de uma cadeia levemente inclinada para cima, quase uma rampa.



Sentiu-se sozinho; não havia ninguém ali além de um homem sentado numa beirada, de ombros curvados de costas para ele e um chapéu formado por feixes de palha, lembrando o telhado de uma casinha de pesca. A túnica fina era azul como o casaco de Italo. Não deu sinal de que o tinha ouvido chegar, e Italo não o incomodou.



Ficou por mais de meia hora na parte mais alta da cidade, indeciso, refletindo. O próprio cume onde estava bloqueava a maior parte da cidade de Perion, mas podia ver os arredores. Montanhas rochosas, picos estreitos, planaltos e planícies dispostos numa confusão por toda parte, dando a impressão de que se encontrava no meio do nada. Não podia ver o mar ao norte, nem os edifícios de Kerning a sudoeste - mas conseguiu ver as árvores de Ellinia ao leste, que transformavam os montes mais altos de Perion em meras sombras corajosas. Orientou-se por ali, e quando se decidiu, desceu e foi até a saída.



Os guardas de Perion cumprimentaram-no com vigor quando ele passou. O nível de Honra era impecavelmente verde, e Perion valorizava os guerreiros honrados.



Seguiu na direção de Ellinia, afastando-se boas centenas de metros. Procurava o ponto de referência que tinha visto na cidade - lá do alto, conseguira vê-lo claramente, mas lá embaixo os ângulos de visão eram diferentes, e era como se ele estivesse em outro lugar. Chegou a uma formação rochosa que pensou ter visto antes, mas não conseguiu achar o lugar que procurava. Contentou-se com um campo aberto, uma extensão de terra dura com alguns buracos e sem elevações exceto uma, como uma espinha num rosto sardento. Calculou que o tamanho devia ser uns duzentos metros, talvez.



Analisou melhor o que tinha. Um terço do lugar era cercado por montanhas altas, impossíveis de serem atravessadas a menos que se escalasses. Essas montanhas ficavam mais baixas à esquerda e à direita, até liberaram caminho. Italo foi para mais perto delas e tirou uma bandeira do inventário. Tinha o símbolo da Sunrise of Astoria: metade de um sol nascendo num fundo laranja brilhante e azul, com nuvens rosadas. Fincou-a no chão duro e escolheu a opção "Fundar Aldeia".



Cinco NPCs materializaram-se ao redor. Quando um deles lhe deu algumas instruções rápidas, Italo distribuiu-lhes ordens. Um deles construiria uma muralha, outros dois ergueriam um edifício no centro da aldeia, que seria a base principal, a mulher cuidaria das torres de vigia. O quinto contou que eles eram poucos, mas que poderiam recrutar mais cidadãos se ele fosse até Perion, e Italo mandou que ele fizesse isso. Quando o jovem voltou com seis outros NPCs para a aldeia, as três torres de vigia estavam prontas, assim como o edifício princial e três quintos da muralha.



—Precisaremos de madeira, rochas e bastante cimento — disse-lhe o mesmo homem que dera as instruções— Estes recursos já estão começando a faltar, e temo que meus anos de trabalho braçal já tenham se esgotarado há uma década. Mas posso servir o senhor de outras maneiras, se assim desejar. Se construir uma tesouraria e guardar nela o ouro necessário, posso manter a aldeia sempre provida de recursos enquanto o senhor está fora.



O projeto custaria caro, mas Italo duvidava que houvesse algum jogador que soubesse de fato como administrar uma aldeia. Além disso, a idéia de ficar ali durante dias dando ordens e pagando taxas não o agradava. Promoveu o homem a administrador da aldeia e deu-lhe uma pequena lista dos edifícios que queria. O homem fez uma reverência e garantiu que Italo não iria se arrepender da decisão.



Quando voltou a Perion à procura dos outros, não os encontrou na porta da caverna do chefe Balrog. Em vez disso, foi achá-los no estande de um jogador, que vendia alguns equipamentos meio raros. Leslie estava em dúvida entre três capacetes, e Dark Corpse viu-o chegar.



—Ah, e aí. Já de volta? — ele sorriu.



—Parece que sim. Cadê o Raky?



—Mandei caçar. Já é mais do que hora de ele pôr aquela espada pra funcionar sozinho, e ver como ele se sai. Falei pra ele seguir o caminho até a Selva do Sono e se aventurar até onde for possível. Os monstros não devem ser muito desafio pra ele naquele nível, mas sei lá — encolheu os ombros.



—Você perdeu a canção que eu fiz sobre um bode feio que se chamava você — Vile Slayer o repreendeu com alegria — Então, você já terminou seus afazeres?



—Te mostro quando a gente chegar lá — Italo prometeu.



Entre os três elmos, Leslie decidiu-se por nenhum deles. Suspirou audivelmente quando chegaram ao ferreiro e descobriram que ele tinha terminado o trabalho em seu escudo. Grande, retangular e curvado nas duas bordas maiores. As cores eram um tom de roxo cheio de entalhes metálicos, como serpentes de prata espalhando-se preguiçosamente num mar violeta. O escudo sempre tinha sido assim. Agora também tinha linhas azul-claras, espalhando-se como finos arranhões no metal, sutis e extremamente sugestivos, e conferiam um brilho diferente ao escudo. Era tudo o que podia ser visto de pêlo de Grupin. O escudo agora tinha uma defesa maior, e protegeria 10% mais contra danos elétricos. Ataques de eletricidade também a ajudariam a usar a Carga Elétrica, uma habilidade de encantamento de arma que ela tinha como Cavaleira Branca.



Por fim, ela comprou um elmo branco sem viseira, com uma lâmina afiada no topo que lembrava uma barbatana de tubarão com a parte interna da curva acompanhando o contorno do capacete. Dark Corpse saiu para encontrar Evil Corpse, e depois ambos encontraram Italo e os demais no caminho para a aldeia. O lugar havia mudado no pouco tempo em que Italo estivera fora: cinco torres podiam ser vistas lá dentro e também o telhado do segundo andar do edifício principal, erguendo-se acima da muralha de estacas, agora completa. Havia nela dois portões, e entraram pelo portão oeste. Portas duplas de madeiras fecharam-se atrás deles.



O perímetro tinha o tamanho de um pequeno bairro, e parecia muito maior com tão poucas construções para cobrir o chão duro. Havia o principal que era o centro de comando, feito de pedra cinza e de dois andares, situado um pouco acima do meio da aldeia. As torres de vigia estavam espalhadas, duas delas entre o centro de comando. Havia uma construção baixa e comprida, onde ficavam os dormitórios, e um outro edifício começando a ser construído. Tudo o que havia dele era o começo de um círculo de pedras ao lado de uma pilha delas, e dois homens trabalhando.



Perto dos dormitórios havia também um par de árvores fazendo sombra numa rede estendida entre elas. Ao se aproximar, encontraram Professor Lord deitado sossegadamente nela. Não parecia surpreso ao vê-los.



—Vila legal que você construiu aqui, Italo. Apesar que eu preferia Kerning ou Magatia, mas Perion também é boa. Mandei construir um poço — ele apontou para os dois homens — Acho que dá pra encher com aquele líquido que você conseguiu lá em Edelstein.



—Rock puto. Não paguei milhões àquele tesoureiro pra você ficar mexendo na minha aldeia — censurou-o Italo.



—Sou Mestre Jr do clã — ele estava sem a máscara, e seu sorriso era meio de desculpas — O jogo já me deixa dar ordens ao pessoal das bases que você construir, mas vou ter que te pedir desculpa. Achei que você fosse gostar dessa iniciativa que eu tomei.



—Certamente te perdôo pelo poço de coka. Vi que também achou mais gente — notou um aglomerado de crianças brincando perto do portão leste. Professor Lord levantou-se, árvores e rede desapareceram e voltaram ao seu inventário.



—Sim, e também descobri que as crianças de Maple crescem mais rápido. Vão se tornar adolescentes na semana que vem e pessoas prontas pra trabalhar daqui a um mês. Estava conversando com seu Administrador, e ele me falou que a guerra de clãs de Perion está pra começar. Parece que vamos ter que pagar imposto ao clã que ganhar aqui.



—E se nós conquistássemos a cidade? — Evil Corpse sugeriu timidamente.



Italo sacudiu a cabeça.



—Não dá, agora que já lutamos em Edelstein, só vamos poder participar de novo na próxima guerra — franziu a testa — Eu não tinha pensado nisso, Rock.



—Pense mais da próxima vez que resolver fundar cidades — Dark Corpse recomendou com um bocejo — Estou meio cansado. Já tem cama nesses alojamentos?



Ele descansou o resto do dia, e dormiram na aldeia quando a noite chegou. Depois de tanto tempo dormindo em hotéis ou em sacos de dormir, era reconfortante finalmente ter uma cama que pudessem chamar de sua, ainda que fosse somente temporária; Italo planejava criar quartos especiais para eles e deixar os dormitórios para visitantes. Havia quem considerasse os hotéis de Perion pouco confortáveis, e estavam certos de que a aldeia seria uma novidade interessante para muitos jogadores. Mas talvez Italo decidisse fazer com que a aldeia fosse secreta. Ainda não tinha certeza; decidiria isso de manhã, à luz do sol.



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Pararam para descansar numa pequena ilha, à esquerda do tornado que os levou de volta até a superfície.



Gatts largou-se no chão, fatigado, enquanto tirava o capacete. Kiara demorou-se apena so tempo suficiente para tirar sua pedra azul do inventário e sentou-se nela, suspirando. A carga dos últimos dias pesava em seus ombros; era difícil acreditar que finalmente estava indo embora.



A ilha era minúscula, tão pequena que uma baleia certamente a afundaria, ao invés de encalhar nela. Mais estranho que isso, flutuava, uma massa de terra e areia no meio do oceano; e mais estranho ainda, ficava logo depois do longo tornado submerso que os tinha tirado das profundezas de Aquarium.



Estavam certos quando acreditaram que a atualização tinha melhorado o fundo do mar. O fundo agora estendia-se grande como um novo mundo, pontilhado de montanhas submarinas, cavernas, monstros e ruínas, de vilas que tinham se estabilizado ali em épocas passadas. Mas os dois pouco puderam aproveitar das novidades; pareciam-se menos com exploradores corajosos e mais como fugitivos desesperado.



Quando chegara o grande dia, Aquarium não tiha sido fechada como Edelstein fora, e assim os dois foram pegos no meio da guerra de clãs. Golfinhos armados com lanças e armaduras passaram por eles como bois, o mar ficou quente e cheio de bolhas, e redemoinhos apareciam por toda parte. Um enorme polvo gigante chegou a ser invocado e agarrara Gatts junto com metade de um clã, mas ele conseguira desvencilhar-se. Escaparam penosamente na direção dos fundos da cidade, onde uma besta ainda maior aguardava.



Conseguiram passar por ela, e depois disso correram para baixo e cada vez mais para baixo, descendo por um caminho que era como a lateral de uma montanha. No desespero de fugir da guerra, esqueceram-se por um momento de para onde estavam indo. As enguias roxas vieram às dezenas como enxames de abelhas, enrolando-se nas pernas e nos braços, fazendo-os tropeçar enquanto enormes peixes-esqueleto surgiam de buracos na rocha. Gatts matava a maior parte deles, mas então um imenso pedaço de montanha desprendeu-se de algum lugar, e libertou um milhar de peixes, enguias, esqueletos, polvos e horrores marinhos. A maioria dirigia-se à cidade, mas uma minoria consideravelmente grande foi para baixo, onde estavam Kiara e Gatts.



Ele teria morrido se não fosse ela, pois tinha certeza de que perdera o equivalente a cinco barras de HP inteiras no total, e Kiara não teria escapado se não fosse Gatts. As feras aquáticas pareciam saber que ela era a Sacerdotisa, e juntavam-se nela com um vigor voraz e assustador. Raios saíram da espada de Gatts, ou chamas, ou névoa gelada, e os monstros sucumbiam perante a fúria do rapaz. E Kiara não o deixava ficar sem HP, tendo sempre sua Cura disponível.



Tinham um suprimento ilimitado de vida e de dano, mas certamente não de energia. Os braços de Gatts foram ficando rígidos após seis horas de intenso trabalho. À sua frente o caminho continuava a descer, implacável. Não se lembrava de Aquarium ter uma estrada tão grande para as profundezas, e nem que ela fervilhasse de inimigos. Talvez fosse por causa da guerra, lá em cima.



Há muito chegaram ao fundo, entrando numa caverna no meio do caminho e depois saindo num ponto onde o caminho parava de descer, deixando-os no meio das profundezas do mar. O chão era todo formado por pedras cobertas de musgo, porém ásperas e que não os deixariam escorregar. Encontraram uma estátua num buraco coberto de algas, mas quando tentaram se aproximar dela, a maior lesma gigante do mundo resolveu que aquele seria um bom lugar para se estar. Veio deslizando de uma curva na montanha, com olhos zangados em antenas e uma boca grande com dentes grossos. Dúzias de tentáculos grossos saíam por baixo do casco, mas a lesma só os seguiu por algumas centenas de metros.



As enguias haviam sumido, mas os peixes-esqueleto continuavam aparecendo. Ali eles tinham musgo crescendo nos ossos meio quadrados, e no meio das órbitas vazias flutuavam pontinhos azuis, verdes ou amarelos. Os amarelos espalhavam eletricidade quando conseguiam morder e os outros não faziam nada, pelo menos que eles tivessem descoberto. Gigantes de pedra cobertos de limo, alga e líquens erguiam-se também nas profundezas, e Gatts tinha que puxar a espada outra vez.



Viram uma coisa imensa, do tamanho de um prédio, que tinha pescoço de lagarto, duas enormes patas escamosas e cauda de peixe, mas que se dirigia para cima e não prestou atenção nos dois. Paravam para descansar sempre que os monstros davam uma trégua, e não havia lugar totalmente seguro. Não havia cavernas ou fendas onde se esconder, e não importava o quanto andassem, sempre havia monstros. Tentavam o tempo todo usar Pergaminhos de Retorno, mas não funcionaria enquanto a guerra durasse. Nesse sentido, a cidade havia sido fechada.



Com toda a certeza havia se passado mais de vinte e quatro horas quando as pedras deram lugar a um chão plano, de areia e pedras moídas como uma praia submerta. Estendia-se por todos os lados, mas os dois seguiram a face da montanha, e não se perderam. A montanha era aquela em cujo topo erguia-se Aquarium. Se pudessem subir por ela, chegariam na cidade e poderiam caminhar até a parte submarina da Torre de Orbis, subir por ela e chegar em El Nath ou mesmo continuar até a própria Orbis.



Seguiram caminho, e a praia revelou-se um deserto. Deitaram-se para finalmente descansar, apenas para ouvirem um sibilar baixinho e uma nuvem de minúsculos peixes voar na direção deles. Kiara conjurou seu anjo brilhante, que surgiu e desapareceu e levou os peixes consigo. Depois disso não voltaram a descansar, e encontraram mais gigantes de pedra e também um que era gigante comparado aos demais gigantes, que derrubou um punhado de tijolos naufragados quando Gatts acabara com ele. Guardaram os tijolos na esperança de ser algo valioso, afinal.



O segundo dia chegou e partiu no deserto, e poucas horas antes do terceiro, encontraram uma corrente de água rodopiante que ia até lá na superfície. Era um tornado, aproximaram-se com bastante cautela. Kiara teve receio, mas Gatts apontou para o ponto onde aquilo tocava o chão, e viram que uma luz azulada brilhava ali, a luz dos portais. Na mesma hora entraram na corrente, e deixaram-se levar por um vento rodopiante e estranhamente silencioso.



Quando o tornado parou, estavam de volta à superfície, sem qualquer tipo de coisa à vista além deles mesmos e uma pequena ilha, cuja costa abraçaram e içaram-se agradecidos. Nenhum monstro veio perturbar-lhes a paz, e sentaram-se para relaxar pela primeira vez em milênios.



—Ufa — Kiara ainda ofegava, agora que finalmente tinham parado — Ufa... Isso é que foi uma aventura, hein? — ela sorria, cansada. Chegara a ganhar meio nível com todos os monstros que Gatts tinha derrotado — Bom... Não quero... ser pessimista, mas... ufa... ainda vamos ter de voltar.



—Aí usamos Pergaminhos de Retorno — Gatts estava estatelado de costas, braços e pernas abertos e ocupando quase um quinto da ilha — Ficamos aqui pra sempre, se a guerra de clãs durar esse tempo. Não desço lá embaixo tão cedo.



Embora estivessem cansados, custaram a dormir, mas finalmente o fizeram, sem dizer mais nada. Era pleno dia, e só voltaram a acordar de madrugada. Gatts foi o último, embora estivesse mais acostumado a acordar cedo. Encontrou a garota sentada em sua pedra azul que restaurava MP, observando as águas.



—Então... Pronto pra ir? — ela sorriu. A guerra de clãs certamente já teria acabado àquela altura, mas Gatts respondeu:



—Vamos ficar mais um pouquinho. Quero me despedir dessa ilha abençoada.



Kiara riu. Na verdade, não havia muito o que conhecer da ilha. Mal tinha tamanho para abrigar uma cabana e flutuava como uma tartaruga a boiar, mesmo assim era sólida como uma ilha de verdade. Era ao mesmo tempo pedregosa e lisa, e coberta por uma fina camada de areia. Kiara ficou observando enquanto ele olhava ao redor da terra e do mar, analisando. Muito lá em cima, podiam ver os blocos coloridos que formavam Ludibrium, a cidade sustentada vários metros acima da água por duas enormes torres de cem andares. Deviam estar em algum ponto próximo à torre de Helios, mas Ludibrium em si estava muito no alto, tanto que quase não bloqueava o céu azul acima deles.



—Já se despediu? — Kiara perguntou-lhe — Afinal, o que você está procurando? Não tem nada aqui!



—Não tem nada aqui — Gatts repetiu, perdido em pensamentos — Estou me perguntando. Se não tem nada aqui nessa ilha tão pequena, por que é que ela está aqui? Tem um baita tornado que traz pra cá. Por que ele está lá, se aqui não tem nada?



Kiara franziu o cenho.



—Nya, pode ser que seja só um lugar de descanso mesmo. Mas agora que você disse isso, me pergunto a mesma coisa.



—Aqui tem alguma coisa... — Gatts disse, olhando ao redor mais uma vez.



Depois de meia hora de procura, foram forçados a admitir que não encontrariam mais nada. Estavam cansados, e agora que o perigo tinha passado e tinham finalmente dormido, sentiam um tipo diferente de exaustão. Precisavam de uma cama, comida e descansar em um lugar [i]de verdade[/i]. Kiara permaneceu sentada mais algum tempo, enquanto planejavam o que fazer.



—Sabe, acho que cansei de Aquarium — Gatts declarou — Já está na hora de procurarmos algum lugar novo. Eu acho que já somos fortes pra enfrentar as Princesas Fantasma em Zipangu.



—Não conheço essas — Kiara admitiu.



—Enfrentei elas durante o beta. Eu era nível 65, e morri antes de registrar o que tinha visto. Voltei lá no nível 72, e a mesma coisa. Somente no 75 foi que eu consegui durar o suficiente pra acertar uma delas, e tirei tão pouca vida que nunca mais voltei lá. Mas agora já estou quase no 120, e você está comigo, a Cura vai ser muito útil.



—Você não está se esquecendo de nada? [i]Eu[/i] não estou nem perto do 120! — ela fez uma careta — Se você que era Guerreiro não aguentou, como eu vou aguentar?



—Você está bem mais forte do que eu era na época — ele lembrou — Além disso, você tem Proteção Arcana. Se não deixar seu MP acabar, pode curar, mas elas não vão te matar com um golpe. Eu posso ir na frente pra ver quanto elas tiram em mim e você ter uma idéia de como é o dano deles.



Tak



Gatts pôs-se de pé em um salto. Kiara não se levantou, franziu a testa, estranhada. O rapaz olhava vigorosamente ao redor, sem encontrar nada.



Tak

—Parece alguma coisa quebrando — Gatts falou — A ilha está desmoronando? Parece sólid...



TRAK



—WAH! — Kiara pulou e quase caiu no mar, recuando de susto. O barulho se fez ouvir outra vez, mais alto, e desta vez Gatts também percebeu. Vinha da pedra. O coração de Gatts batia forte. A pedra começou a sacudir, instável, e Kiara escondeu-se atrás da massa de armadura que era seu companheiro.



—Acho que você sentou nisso por tempo demais — Gatts disse em tom sombrio.



Tak. Tak. Tak. Trak. Tak. A pedra estava entre a ilha e o tornado, não havia maneira de chegarem lá. A essa altura, estavam ambos quase tremendo, pois a pedra poderia se autodestruir, explodir ou algo pior. Talvez tivesse sido projetada para explodir em terreno aberto, para que o jogador tivesse tempo de dar o fora dali e não naquela ilha minúscula, encurralados.



A pedra tremia mais do que eles, sacudia, rachaduras surgiam do auzl-claro, instável, como que prestes a explodir. E foi o que ela fez; uma fenda abriu-se no meio da pedra, maior do que as demais, e uma luz azul jorrou dela. Ouviu-se um alto "kraaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaak" e a luz cegou-os por vários instantes, fazendo tudo o mais desaparecer, azul virando negro quando tamparam os olhos. Não houve empurrão, nem dano ao HP, nem sequer um monstro feroz que apareceu para devorá-los. Ou... mais ou menos.



O que restava da pedra eram pedaços azuis, curvos e grossos. Havia poucos pedaços, e constataram que a pedra na verdade era oca. Algo se movia entre os destroços; uma coisa mole, esguia e azul lampejante.



Gatts adotou um tom sério enquanto Kiara adiantava-se para afastar os pedaços da casca do ovo. Ergueu a coisa mole nas mãos e virou-se para que Gatts pudesse ver, enquanto limpava os farelos de casca do corpo da criatura. Gatts olhou, tão estupefato quanto surpreso. E ali estava um pequeno, perfeito e cintilante dragão, piscando à luz do sol.


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