Um mundo além do mundo escrita por Lobo Alado


Capítulo 30
Leito da Imortalidade


Notas iniciais do capítulo

Olá, leitores!
Mais um capítulo para vocês, e espero entregar muitos outros.
Enfim... boa leitura!



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Serje folheava contente o livro. Ele decifrava pouco do que estava escrito, mas decifrava. Passava muitos minutos para compreender uma frase, e às vezes confundia palavras com outras, mas ficava feliz sempre que via os desenhos do Draurm-Boëtq Faghrória.

Havia um que ele gostava em especial: Um Fäghro com as asas batendo em água espumante e o corpo magro curvado. O animal tinha o corpo extremamente magro e suas costelas eram visíveis. Os membros traseiros eram finos e as patas fortes com garras bem afiadas. Tinha um olho escuro e um claro. A boca estava bem aberta, fincada com vontade em um grande peixe marinho. Os olhos pareciam devorar o peixe antes mesmo da boca.

O desenho era feito com riscos, tornando-o um tanto eriçado. Ele gostava da selvageria do registro.

Quem fez este livro? Perguntou-se não pela primeira vez enquanto admirava o desenho, recostado na parede de madeira, deitado na cama da casa-árvore em que estava.

Não gostara nada da idéia de ficar alguns dias naquela floresta, tinha deveres a cumprir, mas sua vontade própria havia acabado há muito, quando deixara os muros de Carvahall e o posto de soldado, quando fora presenteado com aquela criatura de olhos desiguais.

Fazia dias que não via o lobo branco, e nada na cidade era capaz de alegrá-lo, mais ainda. Estava farto de frutas, enigmas e canções calmas, porém todo aquele verde era feliz para si, e, não negava, preferia estar ali à ter que percorrer o Império novamente.

...Mas a sua situação estava estranha. Sentia que havia algo errado. Os elfos prometeram ajudar na medida do possível com relação à Carvahall, mas Dávya e Lady Yonärea insistiam para que permanecesse a todo custo na floresta dos elfos, e recusavam-se dar mais explicações.

O que o surpreendera foi saber que a notícia do ocorrido já havia chegado a Iliera, e que, há muito, os elfos já sabiam do que acontecera. Saber que Martelo Forte fora capturado, mas já havia escapado, o havia feito repensar as proporções daquele problema. Só desejava saber de Ismira, mas nada sobre ela era dito... Ele deveria ao menos ver seu corpo, para poder pensar em paz na garota, em sua memória, tendo a consciência de que estava morta... não saber de nada era torturante.

– Por que não fizeram nada? – Perguntara Serje batendo o punho enluvado na mesa, encarando Yonärea com os olhos insatisfeitos. Naquela noite, Dávya o havia levado para onde Yonärea estava hospedada em Ellesméra. – Por que a Rainha nada fez com relação ao que aconteceu com seu povo? Por que ficaram em silêncio? – Ele gritara com a elfa.

A elfa desgrudara seu punho da mesa e o torcera até Serje perder o orgulho e parar de relutar contra a força do ser de orelhas pontudas e olhos azuis.

– Você precisa aprender a observar em que posição está, e esta não é a de desrespeitar ninguém... Não quando precisa de ajuda. – Ela dissera largando o braço dele. – A Rainha dos elfos viajou para a ilha dos cavaleiros há algum tempo, ela não sabe o que está acontecendo, e nem deve saber! Ela é acima de tudo uma Cavaleira de dragão, e não seria ela que resolveria este problema, não agora...

Alguma coisa na forma como ela falara aquelas palavras incomodou Serje. Ele sentia que ela escondia algo, e ele sentia bem... Não importa o quão cheirosos ou enigmáticos podiam ser aquele povo, eles eram iguais a qualquer um, e ele cheirava, desconfiado, aquelas palavras.

Enfim, Dávya o havia conseguido convencer a ficar ali, e que nada mais ele podia fazer a não ser causar confusão e revelar a existência dos Fäghros para as pessoas na Alagaësia.

A grande questão era, quando seria a hora de partir? E para onde iria? Voltaria para Carvahall? Abandonaria Zoräes? Não, ele definitivamente não abandonaria Zoräes.

Olhou para a figura do Fäghro faminto abocanhando o peixe. Fechou o livro e levantou-se da cama macia.

Colocou a chama do inverno na bainha, em seu cinto, e a túnica branca com detalhes laranja e vermelho que Dávya havia arranjado para si. Serje ainda não entendia a afinidade que Dávya tinha com aquele lugar, com aquelas criaturas e, principalmente, com Yonärea. A forma como a Elfa falava com a velha e vice versa era peculiar e intima. Franziu o cenho diante da lembrança.

Abriu a porta da casa-árvore e saiu para a cidade. O lugar parecia um paraíso com criaturas estranhas em suas formas de anjo. Ele caminhou entre eles tentando fazê-lo normalmente. A princípio achou normal toda aquela atenção voltada para si, mas então reparou que olhavam para A Chama do Inverno com olhares franzidos e assustados. Ele segurou o cabo da espada e seguiu seu caminho, confuso.

Parou em frente à entrada grande e abobadada da outra casa árvore onde o esperavam. Olhou para a espada vermelho-dourada antes de entrar hesitante. O grande corredor terminou na sala redonda e confortável da cor de madeira dourada.

Dávya estava em pé, segurando seu cajado de maneira, solene como Serje nunca tinha visto, e trazia um rosto desprovido de expressões, bem diferente da companheira de viajem engraçada e irritante que conhecera. Lady Yonärea comia uvas, sentada à mesa colada à grande janela da casa-árvore.

– Serje das montanhas. – Disse Yonärea. – Sente-se. Aceita frutas?

Serje suspirou diante do clima estranho do local.

– Aceito. – Disse sentando-se. – Então... alguma novidade do Império? – Perguntou pegando um cacho de uvas da tigela de madeira e elevando-o acima da cabeça, abocanhou uma uva.

– Nada que possa ser relevante para você. – Disse Yonärea formalmente. – Os rebeldes continuam por aí, atacando as escondidas com mordidas pequenas, mas nada você pode fazer. – Ela segurou sua mão. – Serje, você tem que esquecer isto. Está além de seu alcance.

Ele desgrudou-se da mão dela, frustrado.

– Então o que farei? Qual o sentido de continuar aqui se não tenho mais importância? – Perguntou ele.

Dávya segurou forte o cajado, com a mão trêmula... A velha parecia abatida.

– Você se esquece dos Fäghros? Ou acha que montará a criatura e partirá daqui para onde quer que seja e as pessoas o aceitarão? Serje... Serje... Há muita coisa que precisa saber. – Ela franziu as pálpebras. – Você sabe... Sabe e não quer aceitar que o que está acontecendo no Império não lhe diz respeito mais... Este aqui é o mundo que lhe presenteará, agora, Rapaz. Se soubesse agarrar as oportunidades da maneira certa, mais delas viviam. – Ela estalou a língua em reprovação. – Você voa em uma criatura de asas e parece negar isto... – De repente a velha estourou em tossidas e caiu de joelhos.

Yonärea levantou-se sobressaltada e foi até a velha. Serje também a ajudou a se levantar.

– Vamos, desfaçam essas caras de tolos e me levem para o quarto! – Disse ela entre tossidas.

Os dois a ergueram e voltaram ao corredor, subindo as escadas e levando-a para o quarto avarandado que chegava às folhas verdes das árvores.

Dávya deitou-se sozinha na cama, livrando-se de Serje e Yonärea.

– A hora está próxima... – Disse ela com esforço.

Yonärea segurava a mão de Dávya. Uma lágrima escorria pelo rosto liso da elfa. Serje observou aquela proximidade das duas sem compreender, mais uma vez.

– A hora? Que hora? – Perguntou Serje ansioso.

– Você... vai dar tudo certo. – Disse Yonärea soluçando. Esta não é a hora... foi muito rápido. – Ela abraçou a velha.

Dávya gargalhou tossindo.

– Sim... vai dar tudo certo, Yonärea, mas esta é realmente a hora. Eu escolhi isto, e é um alivio que não tenha mais que esperar. Agora, me dê um momento com o rapaz. – Disse afastando a elfa, segurando nos ombros entre os cabelos vermelhos dela. – Por favor.

Yonärea demorou alguns segundos, mas saiu do quarto sem dizer uma palavra, com o rosto duro, enxugando as lágrimas...

Dávya respirava com dificuldade, mas parecia tão calma quanto divertida. Serje não compreendia bem. Em um minuto ela estava bem, agora...

– Vai ficar aí parado, garoto? – Ela bateu a mão na beirada da cama, pedindo que ele sentasse. – Tem coisas que você precisa saber antes de...

– Antes de quê? – Serje sentou-se. – O que está acontecendo, velha? – Ele perguntou com um nó na garganta... havia passado os últimos dois meses convivendo com ela, e ele não estava com um bom pressentimento.

– O que pode imaginar que está acontecendo? – Ela abriu os braços. E Serje sabia que se estivesse com o cajado ela o bateria em sua cabeça. – Eu estou morrendo. E, antes tarde do que nunca! – Ela jogou as mãos para o alto e pôs-se a tossir.

– Mas...

– Mas o quê?

– Mas... – Uma lágrima escorreu pelo seu rosto e entrou em sua barba. – Você não parece tão ruim!

Ela olhou-o de soslaio.

– Velhos morrem, rapaz. E eu lhe garanto que hoje será o meu dia. Então sejamos breves, existe... – Ela tossiu. – Existem algumas coisas que precisa saber.

Serje ficou quieto, olhando para ela, perplexo.

– Diga. – Foi tudo o que conseguiu dizer.

– Bem... – Ela olhou para a sua espada. – Nunca se perguntou de onde veio isto?

– Sim... – Ele franziu o cenho.

A velha segurou as próprias mãos, como se conversasse consigo mesma. Parecia algo difícil de fazer naquele momento, ela começar a falar, logo ela, que sempre falava e irritava Serje.

– Esta espada... – Começou. – A Chama do Inverno é mais antiga que eu e você juntos... Pertenceu à um antigo Cavaleiro de dragão que lutou duramente durante a queda dos Cavaleiros de Dragão. Mas não é isto que quero que saiba. – Ela puxou a espada da bainha, revelando o aço dourado e vermelho tão bonito, brilhando à luz do sol entre as folhas ruidosas próximas. Era como se o quarto ficasse na própria floresta em si. – Você provavelmente ouviu a história de Eragon e a Queda de Galbatórix, não é?

– Eu tinha dois anos quando Eragon matou o rei tirano... sim, conheço.

Ela assentiu.

– Eragon conseguiu restaurar a ordem dos cavaleiros. E isto foi algo grandioso, sim! Aos poucos o mundo enchia-se de Cavaleiros novamente. – Ela segurava a espada com as mãos trêmulas, ela suspirou e sorriu, voltando-se para Serje. – Um ovo, entre tantos outros, chegara a Ellesméra há treze anos. Ele fora apresentado, e como tantos outros, eclodiu para uma elfa. A elfa ficara feliz com seu dragão... Foi para a ilha dos Cavaleiros, concluiu seu treinamento e recebeu sua espada... Uma espada antiga que havia pertencido a um Cavaleiro da antiga ordem. Que dia mais feliz aquele, para a elfa... Ela observava o por do sol com seu dragão. E os dois estavam orgulhosos daquele feito. Voaram sobre o mar, brincando e divertindo-se. Mergulhavam e saltavam na água. A elfa molhava os cabelos ruivos de água salgada. – Ela suspirou. – Eles não perceberam o perigo aproximando-se. – Ela fez um movimento fatal com a espada. – Um maldito ser gigantesco e impiedoso abocanhou o pobre dragão vermelho dourado. E a elfa relutava em acreditar, mas, mesmo assim teve que sair do mar, às pressas, vendo o seu companheiro morrer. – Ela olhou para Serje. – Ela não podia fazer nada, o dragão já estava morto.

Serje ouvia ansioso.

– Mas que criatura era esta? Uma criatura capaz de Comer um Dragão?

A velha sorriu.

– Isso não preciso lhe dizer... certamente ouvirá por aí a respeito. – Ela franziu o cenho com raiva. – Agora deixe-me continuar, e não interrompa mais! – Suspirou. – Depois disso, e de ouvir muitas baboseiras do Líder dos cavaleiros, ela escolheu voltar para a Alagaësia, sem saber o que fazer. Pensou em tirar a própria vida, mas era fraca... então escolheu sofrer fisicamente, para esquecer a grande dor que a assolava. Um ano inteiro passou, e então ela decidiu abandonar a imortalidade de sua raça, e sair da floresta dos elfos. Com encantamentos negros e força de vontade conseguiu libertar-se da imortalidade, e em um ano inteiro envelheceu o que deveria ter envelhecido nos seus cem anos de vida. – Ela fechou os olhos. – Ela vagou e vagou. Partiu para o norte inabitado da Alagaësia... e lá descobriu um novo mundo. Um mundo com criaturas fantásticas... porém estas criaturas eram poucas.

– Fäghros... – Serje começava a entender.

– Sim... E ela dedicou-se àquilo enquanto envelhecia cada vez mais. Ela tinha como propósito, agora, cuidar daquelas criaturas até o dia de sua morte. Prometera que não deixaria aquela raça se extinguir. E com o passar do tempo ela começou a compreender eles cada vez mais... – Dávya sorriu. – Ela, fantasiosa como sempre fora, deu um nome às criaturas, e escreveu um guia sobre elas. Estava muito encantada com eles. Ela então pensou em algo... uma forma sólida de salvar as criaturas.

“Ela era uma elfa, e entendia de magia o suficiente para conseguir o que queria. Então elaborou o seu plano, que era unir por magia um ser humano ou um elfo a um Fäghro, como fizeram os Cavaleiros. Ela passou anos elaborando isto... e agora...”

– Você... – Serje engoliu em seco. – Me uniu com Zoräes como acontecem com os cavaleiros de Dragão?

– Bem... é algo bem mais simples, porém é uma união, sim! E isso o torna imortal. – Ela disse com indiferença.

Serje não sabia o que dizer.

– Sou imortal, agora?

– A menos que o matem...

Ele franziu as sobrancelhas, pensando.

– Você é uma elfa...

– Sim. – Ela afastou os cabelos brancos, revelando uma orelha branca e pontuda.

– Eu... – Serje mordeu o lábio. – O que quer que eu diga?!

– Nada... Eu quero que você faça. Quero que não deixe que os Fäghros sumam... Quero que use minha espada como se fosse sua, e seja criativo. Seja como um cavaleiro deveria ser. Mas... – Ela segurou suas mãos. – Jamais peça ajuda de nenhum Cavaleiro de Dragão ou qualquer um da Alagaësia que Yonärea não confiar...

– Yonärea...

– É minha irmã gêmea. – Ela respondeu. – Crescemos juntas, mas seguimos caminhos diferentes. Apenas agora ela parece querer me ajudar, ah, claro, agora que estou morrendo. Assim são todos. Egoístas até não haver alguém com quem ser egoísta.

– Então me pede que viaje para o extremo norte da Alagaësia?

– Yonärea saberá o que fazer... E, tem algo que precisa saber. Todas as criaturas foram alteradas ao longo dos últimos cinco anos, para encontrar alguém ideal para se interligar.

– Lembrarei... – Ele pensou por um instante. – Como você pode ter tanta certeza de que morrerá?

Ela sorriu tristemente.

– Envenenamento...

Serje franziu as sobrancelhas, aterrorizado. Ela estava tirando a própria vida!

– Você tinha isto em mente o tempo todo? Nunca desistira da idéia de tirar a vida depois que... – Ele abandonou a frase. – Se já havia abandonado a sua imortalidade, por que envenenar-se, sabendo que uma hora iria morrer? Por quê tirar a própria vida quando só basta esperar?

– Você não pode entender a dor que é a ausência do que havia se tornado uma parte de você... – Ela segurou seus braços fincando as unhas na sua pele. O olhar dela era um poço de loucura cega que sufocava Serje. – Você não sabe o que é tentar enxergar o que havia e ver apenas escuridão... esquecer-se... não é comum! – Ela franziu o cenho, como que tivesse esquecido da presença dele. Depois de um tenso momento ela soltou seus braços. – Eu achava... – Ela voltou a olhar para Serje com os olhos cegos famintos de algum tipo de desejo. O rapaz não compreendia. – Eu achava que podia esperar... – Ela gargalhou. – Acalme-se, menina, o vazio está chegando. – Ela passou um tempo calada quando finalmente disse: – Vá chamar Yonärea, e saia.

Ele levantou-se, incapaz de continuar ali, naquele leito de morte. Desceu as escadas do corredor para encontrar Lady Yonärea derretendo em lagrimas.

– Ela... – Ele parou de falar quando ela correu para o quarto.

Serje sentou-se à mesa e enterrou a cabeça entre os braços, pensando em tudo o que Dávya lhe dissera.

Imortal... Por que eu? Então ele lembrou-se da conversa que tivera com Dávya quando a conhecera:

“Sabe... Os homens desejam coisas em demasia, e sabe-se lá quantos alcançam os seus grandes desejos antes de morrer, mas a maioria descobre que aquilo que realmente desejava, sempre estivera e estará fora de seu alcance, entende? Uns dão suor durante a vida toda em busca de sossego, mas acabam esquecendo-se de sua meta. Outros são ociosos e morrem aos poucos enquanto realizam suas banais tarefas, para convencerem a si mesmos de que têm realmente alguma importância. Dizemos que a vida é assim, e que de outra forma seria errado, mas os homens são cegos e nunca enxergaram aquilo de que falam, seja o que for.”

Talvez Serje não soubesse o que queria, e talvez morresse sem descobrir... Mas Dávya havia descoberto, e agora abandonava a vida, realizada.

Imortal...

Ela lhe presenteara com aquilo que era a sua própria tortura. E Serje não jogaria fora o presente, mesmo que a idéia fosse assustadora.


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Notas finais do capítulo

Ah, gostei demais deste...
Esperem pelo próximo, não sei quando postarei, mas já está pronto...
É isso, espero que tenha agradado vocês
05/09/15



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