Xadrez escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 15
14 - Você Só Precisa Pedir Desculpas


Notas iniciais do capítulo

OLÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁ
Eu tenho muitas coisas para dizer.
Primeiramente, eu me desculpei individualmente em cada comentário pela minha demora em postar e responder aos comentários, mas faço aqui meu pedido de desculpas público: mil perdões. Como eu disse, eu estou no terceiro ano agora e a carga de estudos normais e extraclasse está me deixando um bocado cansada. Não, não pretendo abandonar Xadrez, mas o ritmo pode ficar ainda mais lento. Espero que entendam.
Segundo que, conversando com a fofa da Melissa, eu percebi que esse aviso se faz necessário: gente, eu sou lesada para responder reviews, mas eu sempre respondo. Geralmente eu faço isso logo antes de postar outro chap, mas eu SEMPRE FAÇO
Não achem que eu ignoro vocês e.e
EU NÃO SEI SE EU AGRADECI À MISS NOWHERE PELA RECOMENDAÇÃO
MAS MESMO SE EU JÁ TIVER
TE AMO






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Eram sete e meia quando ele começou a subir a escadaria do quarto casarão, caminhando de maneira lenta e desanimada — cada degrau se apresentava como uma montanha a ser escalada, ao passo que seus músculos pareciam ter sido mergulhados em anestésico. Naquele ritmo, ele demoraria quase uma hora para chegar ao último andar, o garoto sabia, mas naquele momento, não era como se estivesse particularmente preocupado com aquilo; tinha meia hora de antecedência, uma coisa que acontecia de nunca em nunca, e dado os acontecimentos dos últimos dias, ir para o xadrez não estava sendo a atividade mais animadora de sua rotina.

Na verdade, se ele fosse pensar bem, toda aquela última semana tinha sido completamente desanimadora, uma sequência de dias deprimidos que, se tivesse uma futura oportunidade, Davi jamais quereria repetir.

Guilherme não estava abertamente com raiva dele, mas, salvo sua pergunta diligente sobre o rosto machucado de Davi quando o garoto se sentou com ele na segunda-feira anterior, o garoto tinha agido de forma tão fria que o terceiranista se sentou sozinho em todas as refeições seguintes; o próprio mau humor era por demais destrutivo para que o terceiranista se dignasse à tortura de aguentar também o do amigo, que, mesmo sem conversar com ele, ainda lhe enviava olhares atravessados e ríspidos em todos os momentos que os dois se esbarravam na escola.

Tiago, completamente por fora da história, tentara sondá-lo sobre seu ânimo azedo várias vezes, mas olhar para o amigo lembrava a Davi de Matheus e assim, mesmo sem ter a menor culpa, o garoto estava sendo zelosamente ignorado. Não adiantava de fato fugir de Tiago o tempo inteiro, porque eles sempre terminavam no mesmo quarto, então Davi colocou o player de seu celular para trabalhar na potência máxima. Naqueles últimos dias, ele quase se levara ao nível da surdez, chegando a prometer a si mesmo que, quando aquilo acabasse, excluiria todas as baladinhas deprimentes de seu celular, todas mesmo. Escutá-las só o fazia ficar ainda pior e sabia disso; seria ele algum tipo mais burro de masoquista? A hipótese foi considerada mais de uma vez no decorrer daqueles dias.

Marcelo, sensitivo como era, não precisou de duas palavras para perceber que o humor de Davi não estava para conversas e os dois fizeram todas as aulas de química em silêncio, sentados lado a lado, embora parecessem estar a quilômetros de distância um do outro. Sem ânimo para nada, Davi literalmente montou na alma do amigo em todos os exercícios, praticamente apenas assinando seu nome enquanto Marcelo fazia todo o resto; ele não conseguia olhar para o papel e raciocinar. Era visível nos olhos de Marcelo que o garoto estava muito preocupado com ele, assim como era visível nos olhos de todo mundo, mas ele não conseguia se forçar a fingir que estava tudo bem.

E assim, como desgraça pouca era bobagem, ele tinha conseguido se afastar de seus quatro melhores amigos em apenas uma semana, passando pelos sete dias mais reclusos de sua vida. Em seus raros momentos de energia, Davi perguntou a si mesmo o que Matheus tinha de tão diferente para deixá-lo daquele jeito, porque poxa, nem William tinha conseguido colocá-lo naquele estado miserável — William, que só para deixar a coisa um pouco pior, não parecia se lembrar de nada, continuando a implicar Davi sempre que se encontravam e levando vácuos impessoais todas as vezes —, mas os pensamentos indignados eram sempre substituídos pela mesma ladainha de eu me arrependo, eu não me arrependo. Eu estou errado, eu menti. Ele está errado, ele me feriu. Estamos ambos errados, que diferença faz?, está tudo acabado mesmo, acabou e eu não queria que tivesse sido assim... E os momentos em que ele não estava pensando naquilo, Davi estava pensando em seu pai, de uma forma que vinha evitando fazer há muito tempo.

Faz tanto tempo que não converso para valer com ele. Davi subiu mais um degrau da escada, reconhecendo, com certa alegria, que tinha acabado de chegar à metade, e ainda nem eram sete e quarenta da manhã! Talvez ele chegasse a tempo de assistir às aulas do clube; a perspectiva não o deixava particularmente animado, porque comparecer ao clube significava ter que evitar Matheus de maneira deliberada, mas Marina era uma das poucas pessoas que ainda estava conversando com ele e o terceiranista nunca pensou que se sentiria tão grato por aquilo. Mesmo antes de nós brigarmos, ele sempre foi meio distante, meio duro, difícil de lidar... Como se não estivesse satisfeito. Mas eu nunca perguntei seus motivos e nunca pensei em perdoá-lo. Ainda não penso. Mas quero perdoar Matheus e se eu perdoar Matheus, não seria hipocrisia não perdoar meu pai...?

Ele suspirou quando chegou ao último degrau, já conseguindo visualizar a porta do Clube de Xadrez no fim do corredor, e, tal como nos últimos dias, preparou-se para a provação de uma manhã inteira no Clube. Cada passo para mais perto da porta servia de preparação para encarar o rosto machucado de Matheus, os roxos horríveis em sua face, a boca inchada e o olhar cortante em cima de si. Porque o segundanista, ao invés de ignorá-lo, o que seria muito menos doloroso, mantinha seus olhos o tempo inteiro em cima de Davi, afiados, cheios de uma acusação que o terceiranista não podia negar. Era como se ele passasse o tempo todo a gritar, com seu olhar invasivo, que isso é sua culpa, você mentiu para mim, eu não vou esconder de ninguém o que você fez, vou deixar todo mundo saber que você me bateu — e não era como se as pessoas não tivessem deduzido o que acontecera, vendo os dois chegarem simultaneamente com os rostos feridos e sentindo o modo como o clima pesara no exato momento em que passaram a coexistir no mesmo ambiente.

E assim, graças àquela atmosfera terrível, Davi estava detestando o clube, estava detestando jogar xadrez, estava detestando aquilo tudo e, como uma criança birrenta, sua mente sempre brigava com ele, esperneando-se, procurando razões para levar o terceiranista para longe dali; a porta pareceu pesar trinta quilos quando Davi segurou a maçaneta, entrando muito lentamente, preparando-se para o golpe e respirando de forma penosamente aliviada quando percebeu que não havia ninguém lá. A sala estava vazia e ele se sentiu tão feliz com aquilo que nem sequer se lembrou de perguntar-se sobre a estranheza da situação. Afinal, segunda-feira, quase oito horas da manhã e não havia ninguém ali? — era algo para refletir sobre. Contudo, ao invés disso de ficar matutando sobre sua sorte, o garoto apenas caminhou até a janela e se sentou, tal como tinha feito em seu primeiro dia ali, para olhar os garotos da equitação; mesmo três anos depois, a cena não deixava de ser engraçada.

— Davi? — A voz soou do nada e, distraído como estavaendo as cavalgadas de seus colegas de curso, Davi tomou um susto, dando um pulo sobressaltado no mesmo lugar enquanto virava a cabeça bruscamente para encarar Marina, quase quebrando o pescoço no processo. A mulher estava parada em frente à porta, vestida com roupas casuais, o que era uma cena estranha de ver, considerando-se que ela estava sempre vestida ao estilo dos professores do Vespasiano, e o encarava com clara confusão, como se não esperasse vê-lo ali. — O que você está fazendo aqui, menino?

— Vim para a prática de xadrez...?

Marina ergueu levemente as sobrancelhas, surpresa.

— Você está passando bem, Davi? Eu disse na sexta-feira que nós não teríamos aula hoje, porque eu fui convidada para a Reunião Anual dos Enxadristas Mineiros. — Ela o encarou com espanto. — Eu devo ter falado isso, no mínimo, umas quinze vezes! Onde é que você estava com a cabeça?

— Ah... — Ele riu e coçou a cabeça de maneira desconcertada. Em sua memória, havia realmente algumas vagas lembranças relacionadas àquilo, alguns lampejos de uma Marina muito animada, das pessoas a parabenizando por algo e de sua professora dizendo que tinha um “aviso muito importantepara dar, mas, distraído como ele estava atualmente, sua atenção para aqueles detalhes havia sido quase nula. — Foi mal, Mar. Eu... viajei. Nem prestei atenção. Parabéns! É um evento importante, não é? Que horas você precisa estar lá?

A mulher o encarou de forma sintética, cerrando os olhos brevemente como se o avaliasse.

— Às dez. — Ela começou a caminhar em sua direção, a estranheza de vê-la de calça jeans e blusa ao invés do jaleco se tornando ainda mais acentuada. — Mas eu tenho algum tempo sobrando. Tive que sair mais cedo para vir aqui buscar meu relógio, esqueci ele aqui na sexta-feira... Tenho que procurá-lo. Enfim. — Sentou-se de frente para ele, os dois se encarando brevemente por um minuto antes de voltarem os olhos para a janela. A paisagem, após algumas chuvas recentes, estava aos poucos se colorindo de um tom ainda mais vivo de verde, uma cena bonita de se admirar. — O que está acontecendo com você, Davi? Não, não, não, melhor: o que é que aconteceu entre você e Matheus?

Davi fechou os olhos, respirando profundamente. Estava demorando. Embora distraído com tudo naqueles últimos dias, o terceiranista não tinha deixado de notar o modo como a mulher vinha tentando sondá-lo, sutilmente tentando extrair dele os detalhes do que acontecera — e depois de seus consecutivos fracassos diante de sua frieza melancólica, Davi não conseguia culpá-la por optar por uma abordagem mais agressiva.

Ela não era a primeira pessoa a perguntar aquilo naquelas exatas palavras, mas era a primeira pessoa para quem Davi sentia vontade de contar o acontecido. A aura de confiança em volta de Marina era um ponto definitivo ao seu favor, assim como o fato de que ela era a única pessoa que estava conversando normalmente com ele — e aquele detalhe, recheado de uma pitada de humor negro, serviu para destravar um pouco o retraimento de Davi, que respirou fundo, ainda evitando encarar a mulher, tentando encontrar as palavras certas.

— Não sei dizer — começou, porque era a verdade; ele ainda não sabia, e desconfiava que, de fato, nunca saberia como um dia tão bom como aquele havia culminado naquele tipo tão particular de inferno. — Não sei mesmo. É uma história um pouco comprida.

A mulher ficou em silêncio por um minuto.

— Eu também não sei de muitas coisas, mas em compensação, sei de outras — disse enfim, num tom doce. — Vou contar a você o que eu sei: você e Matheus não gostavam um do outro quando ele entrou no clube. Na verdade, durante todo o ano passado, ele ficou olhando feio para você enquanto você o ignorava solenemente... Contudo, esse ano, vocês começaram a interagir; sem mais olhares feios, mas muito mais olhares. Nas últimas semanas, vocês estiveram bastante próximos e agora estão profundamente magoados um com o outro. A mágoa no Matheus é uma espécie de gatilho, o deixa focado de maneira meio perturbadora... Enquanto, em você, ela tem um efeito bastante oposto. Você está um lixo.

Oi?

— Uau — exclamou ele, virando-se para ela de maneira brusca, perfeitamente ciente de sua expressão apalermada; mas, caramba, aquilo tinha sido incrível! — Você é enxadrista, psicóloga, vidente ou o quê?

Marina riu de maneira contente.

— Um pouco dos três, acho. A gente, depois de alguns anos dando aula, acaba aprendendo a conhecer nossos alunos. — Desviou os olhos da janela para encará-lo. — Vou te dizer outra coisa sobre Matheus; ele é um atormentado. Meus poderes não vão tão longe a ponto de adivinhar o porquê, mas que ele é, ele é.

Davi piscou, de repente vendo Marina sob uma perspectiva completamente diferente; não como a professora que ela era, séria e demandante, mas como uma espécie de irmã mais velha, o olhar gentil dela lhe inspirando um ânimo confidente. O quão incrível aquela mulher podia ser? Valia a pena confiar nela — senão nela, em quem mais?

— Vou te contar desde o começo para ver se você entende, porque eu estou tendo bastante dificuldade — suspirou ele. — Eu vi o Matheus pela primeira vez quando eu estava no primeiro ano...

Ele se viu contando tudo, desde o começo; os dois meses de inferno, a ida à boate, o modo como ele desconfiara de Matheus a respeito de Tiago, o incidente com Artur, o beijo, o aniversário do garoto — ao contrário do que ele tinha esperado, falar aquelas coisas lhe causou uma sensação agradável de leveza, como se um peso estivesse sendo retirado de seu peito. Marina era uma boa ouvinte, seus olhos sóbrios pousados nele todo o tempo, incentivando-o a ir adiante, e ele chegou ao fim da narrativa quase sem perceber, suas palavras morrendo para dar lugar a um silêncio pensativo.

Marina não parecia enojada ou desgostada com o que ouvira e ele interpretou aquilo como um bom sinal. A curva dos lábios dela e seu olhar levemente desfocado indicavam que ela estava maquinando algo, o que se provou inteiramente verdadeiro quando a mulher falou, um longo minuto depois:

— Você está apaixonado por ele?

Seu primeiro pensamento foi não sei — mas não era verdade. Desde o dia em que perdera sua noite para ajudar Matheus com aquele estúpido trabalho de literatura, passando pelo momento em que fora beijado e todas aquelas semanas absorvendo Matheus, mapeando-o em sua cabeça, pintando seus detalhes em um admirado quadro mental, sonhando acordado com ele, dormindo com ele em sua mente, procurando todas as desculpas possíveis para começar conversas, planejando minuciosamente seu aniversário, passando pela tormenta de encontrar para ele o melhor presente que conseguiria dar... Ele sabia.

O único problema era que não bastava apenas dizer aquilo e pronto — uma vez ele admitindo a verdade, uma vez ele dizendo para si mesmo o que Guilherme já sabia, o que Marina já parecia saber, o que provavelmente até Matheus já sabia, ele teria que efetivamente lidar com aquilo, e Davi simplesmente não sabia como.

Mas como mentir para mim mesmo nunca foi a minha especialidade...

— Sim. — Era uma simples palavra, mas Davi sentiu o poder da declaração no exato momento em que a fez. Já era. Não podia voltar atrás. Estava preso na verdade daquela palavra e sabia disso, mas de uma forma paradoxal, pronunciá-la o fez se sentir inesperadamente livre. — Sim, eu realmente estou.

— E ele sabe?

— Não. Pelo menos eu acho que não. Eu não sou exatamente discreto. Mas... Não. Ele não sabe. — Se soubesse, não conversaria mais comigo, afinal, ele morre de nojo de gays e afins. — É uma situação chata.

A mulher crispou os lábios.

— E ele está apaixonado por você? Você já pensou nisso?

Hã? A ideia era tão ridícula que Davi a rejeitou imediatamente. Não mesmo.

— Não. Definitivamente não.

— Mas ele beijou você e, mesmo depois do beijo, continuou por perto.

Ele sorriu, reconhecendo a armadilha.

— Matheus me usou como um teste. Ele não é exatamente experiente, sabe? Mas definitivamente, ele não gosta de mim desse jeito. Você não viu o modo como ele disse que sente nojo de gays!

— Não importa o quanto ele fale, é isso que ele é, não? — Havia uma nota definitiva na voz dela. — O que ele disse foi terrível, principalmente levando em conta que seu pai já tinha te dito isso antes. — Torceu a boca com desprezo. — Mas você também precisa ver o lado do garoto. Todo mundo conhece os Cadore, aquele povo é conservador até o tutano dos ossos. Se um garoto cresce escutando esse tipo de coisa... Como ele vai se aceitar? Você diz que ele jamais se apaixonaria, mas eu não acho que seja assim; na verdade, eu acho que foi justamente o contrário. — Hesitou brevemente, como que considerando algo, antes de continuar, o tom suave: — Quando ele descobriu que você é bi, você se tornou possível. E eu não acho que ele saiba lidar com isso.

Davi não respondeu, muito em parte porque não havia nada a se dizer; havia muita verdade naquelas palavras, principalmente quando elas saíam da boca de Marina. Em sua cabeça, a possibilidade de Matheus gostar dele era simplesmente absurda, algo que ele se sentia ridículo só por considerar, mas vindo de sua professora, parecia apenas mais uma probabilidade no meio de muitas, algo a ser analisado, uma hipótese — nada incoerente. E ele se descobriu amando Marina por isso.

— Eu também não sei lidar com isso — retrucou, enfim, soando como uma criança mimada. — Na verdade, estou me sentindo um idiota. Você está certa, mas eu não vou pedir desculpas para ele!

Marina riu.

— Eu não disse que você tinha que fazer isso! Mas tenha o que eu disse em mente quando ele vier se desculpar com você, para não virar um babaca vingativo. Ele é muito bom em xadrez, mas em habilidades sociais, Matheus tem muita coisa para aprender ainda. Muita coisa. Para caramba. — Ela sorriu fracamente quando ele começou a rir e baixou seus olhos de relance para o próprio pulso, checando as horas rapidamente. — Eita, já são mais de nove horas. Preciso ir. Meu namorado está me esperando, vou ganhar carona até a conferência.

Namorado? A ideia não batia com a imagem mental que ele tinha de Marina. Devia existir algum decreto que dizia que todos os professores tinham que ser solteiros, não? O mundo seria muito mais feliz. Está podendo, hein?

— É tão estranho pensar nos nossos professores como seres dotados de vida sexual e afins... — começou ele, um tom apologético na voz, parando quando levou um tapa estalado na cabeça. Marina o encarou com olhos cerrados por um instante, como quem diz continue e nós vamos brigar e, depois de uma leve briguinha de olhares, os dois caíram na risada novamente. — Ok. Parei. — Ele ergueu as mãos para o alto em rendição. — Obrigado, Marina. Eu acho que estava precisando disso.

— Você acha? — Ela se inclinou para abraçá-lo brevemente, dando-lhe um beijo estalado na bochecha antes de caminhar em direção à porta. — Eu tinha certeza. Você precisa estar zen para quando ele vier se desculpar.

Você está sendo otimista.

— Ele não virá.

— Virá sim, meus poderes não falham. — Ela acenou levemente para ele, a luz do sol vinda da janela se refletindo levemente no metal de seu relógio, e Davi piscou de maneira intrigada. Mas ela não tinha... — E se não vier, eu acredito que você vai sobreviver. Me deseje sorte, essa reunião vai definir minha vida como enxadrista... Tchau!

Ela saiu e fechou a porta, rapidamente, deixando o garoto ali, parado, as sobrancelhas franzidas. Marina estava usando relógio; mas não fora aquele o motivo pelo qual a mulher aparecera ali, para procurar pelo maldito objeto?

Ela não perdeu relógio nenhum...

Davi sorriu quando a compreensão lhe veio, sentindo uma onda gostosa de felicidade. Ele realmente amava aquela mulher — e a repentina perspectiva de que só teria mais alguns meses de aula com ela lhe causou uma pontada de tristeza.

O terceiro ano está acabando...

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As previsões de Marina se mostraram falhas e Matheus não o procurou, mas, à medida que o tempo passou, os dias lentamente se transformando em outra semana, ele descobriu que era capaz de conviver com aquilo. Aos poucos, Davi foi voltando à normalidade, conversando novamente de forma natural com seus amigos — menos com Guilherme, porque ele sentia que não devia ao garoto as explicações que ele queria —, conseguindo coexistir de maneira pouco dolorosa com Matheus. Nos espaços onde os dois obrigatoriamente tinham que ficar juntos, Davi simplesmente fingia que o outro não existia, mentalizando sempre o fato de que não estava com raiva de Matheus, mas que também não devia absolutamente nada a ele, nem mesmo os vestígios de culpa que estava sentindo.

Felizmente, também, seu tempo para começar a pensar naquilo começou a ficar limitado; os dias se desdobravam de maneira difusa, empurrados pelos compromissos acumulados do final do terceiro bimestre. Outubro já começava a estender suas garras e, com ele, vinham os compromissos de final de ano, os preparativos para festa de formatura, os trabalhos de conclusão de curso, os planejamentos de prendas divertidas — Caldarias era inesperadamente conivente com aquelas práticas —, ao mesmo tempo em que havia aquele sentimento amigável entre as turmas, motivado pela consciência de que estava tudo estava muito próximo de seu fim. Davi passou vários de seus dias conversando com colegas seus, dos quais não era muito amigo, apenas porque sabia que não os veria mais, ao passo que desperdiçou várias noites com trabalhos atrasados, rodeado por livros, sentindo-se quase satisfeito por ter seus dias por completo para ele de novo — todo tempo seria necessário a partir daquele momento.

O dia primeiro de outubro o encontrou entre vários de seus livros, copiando loucamente passagens de livros de biologia que falavam sobre células do tecido nervoso — ou seria do tecido respiratório? Depois da meia-noite, ele nem sabia mais o que estava copiando —, lutando contra si mesmo para não dormir, o que não adiantou muito; quando seu celular tocou, às sete da manhã, ele levantou a cabeça bruscamente, sentindo a marca das páginas do livro em sua bochecha e uma leve dor no pescoço, provavelmente vinda da posição terrível em que dormira.

E o Tiago nem para ser um bom amigo e me acordar... Ele olhou para trás, cerrando os olhos, mas o amigo não estava lá, os lençóis intocados; ele nem sequer dormira no quarto. Aquele puto. Dormiu com a Isadora de novo. Do que adiantam as amizades se elas nunca estão aqui quando você precisa delas?

O volume da música aumentava, fazendo-o pensar que talvez, só talvez, colocar Iggy Azalea de toque no celular não tinha sido uma boa ideia. Ele tateou em volta, desorientado, xingando alto, até encontrar o aparelho em seu bolso.

— Alô — atendeu de maneira meio rude, sem nem mesmo olhar o nome do remetente da ligação no visor. — Quem fala?

— Sou eu, menino. — A voz tinha uma nota exasperada. — Bom dia. Eu estou ótima, obrigada por perguntar, e você, como está?

Ele se empertigou imediatamente ao identificar o remetente da ligação, um sorriso desenhando seus lábios de forma até mesmo involuntária.

— Mãe! exclamou, sinceramente satisfeito. A mãe nunca deixaria de ser um tônico para o seu humor, independente da situação. — Desorientado. Cansado. Virei a noite fazendo trabalho. Mas estou vivo, obrigado por perguntar. — Mônica riu levemente ante o tom dele, o mesmo que ela tinha usado anteriormente. — O que foi, mãe? Não é seu costume ligar tão cedo.

— Ah... Eu andei meio ocupada esses dias, preparativos para a festa de seu pai. — Ela hesitou por um instante, provavelmente se lembrando da briga, e Davi apertou o celular com força em sua mão, praguejando de maneira silenciosa com os lábios; tinha esquecido completamente daquela maldita festa, tão ocupado estava em ficar deprimido por causa de Matheus e, depois, em fazer seus trabalhos acumulados. Droga. — Eu sei que é um assunto delicado para você e eu não quero forçar você a nada, mas... Você virá? Eu ficaria muito feliz se aparecesse.

Havia uma nota de vulnerabilidade esperançosa na voz de sua mãe, e isso o desarmou completamente. Como não dizer sim para ela, principalmente depois dos recentes acontecimentos? Davi estava conseguindo lidar bem com Matheus, com seus olhares incisivos sobre ele, com a própria mágoa a respeito do garoto — e aguentar seu pai durante uma noite, onde Túlio estaria preocupado demais fazendo social para sequer perceber a presença de Davi, não seria tão difícil, seria? Mônica provavelmente chamaria muitos amigos da família, figuras importantes e influentes no cenário nacional, e a última pessoa com quem Túlio pararia para conversar seria seu próprio filh. Davi sabia disso e, de repente, sentiu-se grato. Ele seria capaz de aguentar aquela festa.

Pela minha mãe... E por mim, também. Ela tinha razão; não adianta ficar agindo como um babaquinha pelo resto dos tempos. Eu preciso crescer.

— Claro que vou — respondeu, neutro. — Onde será e quando será?

Houve um curto silêncio surpreso.

— Ah... Vejamos. — O tom de voz de sua mãe não escondia o fato de que ela não esperara que o Davi fosse aceitar, o que não o surpreendeu; não fosse Matheus e seu discurso idiota, ele sabia que provavelmente não estaria dizendo sim para a mãe naquele momento. Mesmo brigado com ele, o segundanista ainda tinha influência em sua vida, algo que não deixava de ser irritante. — O aniversário do seu pai vai ser no próximo sábado. Eu já tenho tudo arranjado, só estou confirmando as presenças... Você pode até levar algum amigo seu daí ,se você quiser! Eu sei que essas festas nunca são divertidas para você, já que você e seus primos não se dão muito bem, então um amigo seu seria uma boa ideia, não?

Não, não seria. Suas amizades próximas não eram exatamente qualificadas; Matheus estava fora de cogitação, por motivos óbvios, Guilherme e ele ainda não tinham voltado a conversar, chamar Tiago para uma festa de família era suicídio e Marcelo, apesar de tudo, não era o tipo de pessoa que Davi conseguia se imaginar convidando para uma festa “íntima”. Vou ter que enfrentar essa sozinho.

— Vou ver se meus amigos aceitam, mãe — mentiu. — Eles têm seus compromissos também, não? Enfim. Eu vou sim. Pode colocar minha presença aí, eu vou tentar ficar feliz em aparecer...

— Vai ter comida gostosa, eu encomendei todas as comidas favoritas minhas e de seu pai. — Salmão grelhado, eca. — Mas pensei em você também e pedi umas coisinhas que eu sei que você vai gostar.

— Você pediu aqueles bolinhos de chocolate recheados com creme que meu pai detesta?

— Claro que pedi, oras!

— É por isso que eu te amo, mãe!

Mônica riu gostosamente do outro lado e ele acompanhou, mas por outros motivos; ela estava contente. Era possível sentir a satisfação da mãe apenas pelo modo como a mulher estava falando, o que o fez pensar em quão egoísta ele era por, durante tanto tempo, privar a mãe de seu sonho de reunir a família; aquilo era claramente algo que ela queria fazer.

— Eu sei. Eu amo você também. Ainda mais quando você está bonzinho desse jeito. — Ela suspirou, retomando a frase com um tom de voz brando, mas sério: — Obrigada, Davi. Obrigada mesmo. Eu sei que não é fácil para você, mas... Isso me deixou muito feliz. Muito feliz mesmo. Agora eu vou desligar, porque eu sei que você vai ter que ir para as aulas daqui a pouco e não quero te atrapalhar... Volto a ligar no meio da semana para te passar mais algumas informações, você é o melhor filho do mundo (e o único), te amo, beijos!

Davi riu brevemente antes de se despedir e então desligou o telefone, jogando-o de qualquer jeito em cima da cama e se voltando para encarar seus livros desanimadamente, um suspiro alto escapando de seus lábios. Ainda faltava mais de uma página para copiar e o trabalho tinha que ser entregue naquela manhã, o que significava que ele provavelmente teria que sacrificar o café para conseguir entregar a maldita pesquisa a tempo — e Davi detestava passar fome de manhã. Na verdade, ele estava detestando tudo naquela situação, porque era tudo culpa dele mesmo; o professor tinha dado quase um mês de prazo na pesquisa, mas absorvido em Matheus como estava, o garoto não tinha encontrado cabeça para fazer nenhuma das tarefas dadas, empurrando-as todas com a barriga para o momento milagroso onde se resolveriam sozinhas.

Obviamente, o momento não tinha chegado e, naquela última semana, ele vinha provando do amargo gosto do próprio desleixo — Marcelo não perdeu a oportunidade de zombar dele por causa de seu rosto de zumbi e de suas cochiladas extensas nas aulas, chegando a perder horários inteiros para tentar repor o sono perdido nas noites ativas. Davi ia sobreviver, claro, como vinha fazendo desde que tinha seis anos, mas não sem sequelas; quando a maravilhosa semana de folga de outubro chegasse, ele já conseguia ver a si mesmo dormindo durante doze horas seguidas todos os dias, uma perspectiva tão agradável que Davi estava aguentando aqueles dias horríveis só para realizá-la.

Contudo, ainda faltam quase duas semanas para minha folga e eu tenho um trabalho de biologia para terminar. Ele se chamou para a realidade, tentando passar a mão pelos cabelos desarrumados e desistindo quando se deteve nas pencas de nós que havia ali. E eu estou com tanta fome... Acho que não vou matar o café, e sim o Clube de Xadrez. É só um dia, a Marina não vai me matar... Não muito. Talvez ela deixe um pouquinho de vida restante. Davi balançou a cabeça, percebendo que o cansaço o estava fazendo delirar. Vou tomar um banho. É melhor.

Ele se levantou da escrivaninha e se espreguiçou longamente antes de caminhar com preguiça em direção ao banheiro. Tomou um banho razoavelmente longo, água quente escorrendo sobre seus cabelos enquanto o garoto travava uma luta inútil para desembaraçá-los, relaxando seu corpo à medida que deslizava por ele, causando certa moleza; quando saiu do chuveiro, Davi sentia um sono incontrolável e, apoiado pela já anterior decisão de matar a aula de xadrez, não pensou duas vezes antes de voltar a dormir.

Mergulhou em um pesado sono sem sonhos e acordou duas horas depois se sentindo quase um ser humano novamente. Os pensamentos subitamente claros, o garoto percebeu, com certa raiva, que no fim acabara matando o café, o xadrez e seus planos de terminar seu trabalho calmamente naquela manhã; já eram quase dez horas e ele não contava consigo mesmo para copiar todo o conteúdo restante da pesquisa em menos de duas horas. Chorando por dentro, Davi se sentou à escrivaninha e voltou ao trabalho, escrevendo freneticamente, a letra saindo em garranchos médicos que ele não se importou nem um pouquinho em aperfeiçoar; seu professor não era quadrado, ele que se virasse para desvendar aquilo.

Estou fazendo a minha parte, oras, estou copiando! Ele não disse que tinha que estar legível.

O relógio já marcava um quarto para o meio dia quando Davi finalmente terminou, estalando os dedos doloridos enquanto encarava o resultado pavoroso escrito na folha; aquilo realmente estava parecendo uma receita médica. O professor conseguiria ler? Ele esperava que sim. Suspirando, Davi se levantou, trocou de uniforme, vestiu outro blazer enquanto amaldiçoava o calor extenuante que fazia por ali — poxa, eles estavam em Minas, clima tropical, não devia ser obrigatório usar o blazer quando começava a esquentar —, e se pôs a procurar pelo grampeador, xingando Tiago em voz alta.

— Se o grampeador fosse meu — exclamou ele, irritado, remexendo apressadamente em gavetas e pilhas de papéis. — Eu acharia essa droga rapidinho, porque EU SOU ORGANIZADO. Mas nãããão, é o Tiago, aquele demônio e...

Seus pensamentos se esvaziaram quando, debaixo de uma pilha de papéis que deveriam estar ali desde mil novecentos e guaraná-de-rolha, Davi encontrou o grampeador — e, do lado dele, largado de qualquer jeito, como se tivesse sido literalmente jogado ali, o presente que ele comprara para Matheus. O embrulho estava amassado e, de repente esquecido do grampeador e de seu trabalho, Davi o desfez, abrindo a caixeta com cuidado e checando seu conteúdo com olhos preocupados; felizmente, nem o tabuleiro, de frágil vidro pintado, nem as peças, delicadamente dispostas em fileiras de vidro branco e fosco preto, tinham se quebrado.

Ele mesmo tinha querido esquecer aquela caixeta, que aquelas peças todas se quebrassem, mas, de repente, percebeu que teria ficado triste se aquilo acontecesse. Por duas semanas, aquele presente fora tudo o que ele tivera na cabeça, o motivo pelo qual ele tinha atrasado todos os trabalhos, a causa pela qual ele se estressara e ao mesmo tempo em que se sentira feliz, realizado por estar fazendo algo bom para Matheus. Toda a preocupação para nada. No fim, eu nem sequer entreguei o presente. Ele encarou a embalagem com tristeza, pensando no que faria com ela. Eu não tenho nada o que fazer com isso. Mas não vou jogar fora. Esse xadrez é do Matheus, mas eu não tenho condições de entregá-lo. Seus dedos deslizaram brevemente na superfície da caixa, uma onda de saudade o invadindo de forma intensa. Matheus. No fim, por mais que Davi insistisse em dizer que não, aquele garoto fazia uma falta dos diabos. Vou deixar isso aí. Depois decido o que eu faço.

Sentindo o próprio humor decair de forma preocupante, Davi pegou o grampeador, terminou seu trabalho e saiu do quarto. Matheus podia fazer falta, mas a vida continuava e, naquele momento, ele tinha um trabalho de biologia para entregar — e torcer para que o professor conseguisse entender sua letra.

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Levando em conta a fome intensa que ele sentia, Davi não comeu praticamente nada no almoço. Toda a comida parecia extremamente insípida quando ele passou por ela com sua bandeja e, enquanto mastigava, o garoto ficou com a impressão de estar comendo a mesma massa inconsistente e insossa todas as vezes; no fim, abandonou seu prato pela metade, sentindo-se até mesmo empanzinado, e se dirigiu para a sala de aula. Terminou chegando quinze minutos adiantado, mas não tinha problema; todas as medidas que ele pudesse tomar para que o professor tivesse o maldito trabalho em mãos, sem nenhum contratempo, eram válidas. Biologia nunca fora a melhor matéria de Davi e não seria no último bimestre de seu último ano que passaria a ser — ele sempre precisava tomar um cuidado extra para não se atolar.

No fim, seus quinze minutos de espera valeram a pena; Davi abordou o professor no exato momento em que ele entrou na sala, entregando-lhe o trabalho e conseguindo, com uma boa dose de bajulação treinada, a garantia de que sua letra terrível não iria ser motivo para desconto de nota naquele bimestre. Particularmente, Davi atribuiu aquela vitória mais ao bom humor de Ivanil do que à sua lábia espetacular, mas não fazia diferença. O professor tinha fama de exigente e saber que aquilo não iria ferrá-lo ajudou a deixar o sono do garoto bem mais tranquilo; enquanto Ivanil novamente discursava sobre qualquer matéria de biologia que o garoto só ia se preocupar em aprender na hora da prova, Davi cochilou como um neném.

Quando acordou, não havia mais ninguém na sala; seus colegas, acostumados com seus cochilos longos e com o característico mau humor que Davi sentia após ser acordado, não o despertaram. Filhos da mãe... Desorientado, o garoto coçou os olhos, girando o olhar pela sala durante quase um minuto até lembrar que não havia nenhum relógio por ali. Ah... Tá. Ele tateou os bolsos cegamente à procura do celular, quase cochilando de novo enquanto esperava o aparelho ligar e despertando imediatamente ao ver as horas no visor. Duas e meia, caramba! Perdi o segundo horário quase todo!

Aquilo era inédito — Davi costumava ter, pelo menos, a decência de escutar o sinal. E caramba, ele tinha cochilado pela manhã, aquele tipo de sono não era humano, era? Apreensivo, o garoto revirou a memória, tentando encontrar o nome do professor daquele horário e relaxando imediatamente ao se lembrar que era literatura naquele tempo. O Hugo me ama. Nenhum dano. Ele tinha quase certeza que havia um trabalho bimestral naquele horário... Ok, talvez algum dano. Nada que eu não consiga consertar.

Faltavam ainda dez minutos para o próximo horário — geografia com Lucas, segundo sua memória subitamente prestativa —, no qual Davi também tinha quase certeza de que haveria algum trabalho bimestral; eles estavam sendo aplicados às pencas nos últimos dias. O professor de geografia era o cara mais desligado do mundo, o tipo de pessoa que provavelmente daria presença e nota para Davi apenas pela força do hábito, mas o terceiranista não queria se arriscar; aproveitando-se de sua ligeira folga em relação ao terceiro horário, Davi começou a caminhar lentamente em direção à próxima sala, localizada no outro extremo do prédio.

O Vespasiano, como era de se esperar, estava deserto, o som distante das vozes dos professores ecoando levemente pelas passagens. Todos tendo aula agora e eu aqui vagabundando. Belo exemplo de veterano eu sou. Ele se lembrou de quando era criança, os breves relances que tinha dos terceiranistas — com seus ternos azul-marinho, seu tamanho, sua postura, suas turmas — os fazendo parecer algo como heróis, pessoas surreais e simplesmente incríveis demais para que o garoto pudesse sequer chegar perto, e sentiu um bocado de saudade; agora, vivendo na pele o que era o último ano, Davi não se sentia nem um pouco incrível. Sentia-se nostálgico, cansado, ansioso para sair dali ao mesmo tempo em que desesperado para se agarrar àquele colégio, sua casa pelos últimos doze anos, lugar para o qual ele esperava nunca mais voltar — não havia nada de extraordinário naqueles sentimentos. E mesmo que não tivesse conversado com ninguém sobre aquilo — não ainda — Davi sabia que todos os seus colegas de turma compartilhavam do mesmo sentimento; ele conseguia ver em seus olhos, no tom de suas vozes, em suas posturas subitamente refeitas. Todos estavam se despedindo.

Ele não sabia se estava pronto para abandonar aquilo ali, mas sabia que se apaixonar por um segundanista em seu último ano não era o tipo de despedida que as pessoas recomendavam para um estudante; geralmente, as sugestões implicavam coisas felizes, uma grande festa, um trote inesquecível, não ficar louco por alguém preconceituoso até o branco dos ossos. Espera... Davi parou no meio do corredor, de repente se dando conta de que estava pensando em Matheus de novo e tentando entender exatamente em que momento seus pensamentos tinham convergido para o garoto, mas não teve tempo; distraído como estava, Davi se esqueceu de olhar para frente, esbarrando de forma brusca em alguém, os dois caindo desconfortavelmente no chão.

— Desculpa! — pediu, acariciando o ombro dolorido, levantando os olhos para ver quem fora a vítima de sua desatenção; ele nunca tinha visto aquele garoto antes e, depois do olhar gelado que estava recebendo, decidiu que ia fazer de tudo para evitar encontrá-lo de novo. Aparentemente, Davi não era a única pessoa de humor negativo por ali. — Desculpa mesmo, eu estava voando.

— Eu percebi. — O garoto se levantou, espanando a poeira das vestes e, após uma leve hesitação, ajudando Davi a se levantar também. — Enfim, desculpa aí também, eu estou com pressa. Matheus, você não vem? Eu quero chegar depressa, porque eu tenho dificuldades em inglês, caso você não tenha!

Ah, você está de brincadeira comigo...

— Eu já passei de ano, Nelson, não preciso correr, você é que...

Matheus veio caminhando de maneira despreocupada, um quase riso nos lábios, e empacou no corredor no exato momento em que viu Davi de pé ali, sua postura espelhando quase de forma perfeita a do terceiranista, os olhares se interceptando de maneira quase inevitável. Ao contrário da contundência anterior, os olhos de Matheus demonstravam certo pânico selvagem, tais como os de um animal pego em uma armadilha, o modo defensivo como sua postura havia se fechado apenas reforçando aquela impressão — ele claramente não tinha pensado na possibilidade daquele tipo de encontro entre os dois ocorrer e, agora que tinha acontecido, não fazia a menor ideia do que fazer.

— Matheus, acorde para a vida, moleque, tá voando? — As palmas apressadas que o tal garoto, Nelson, bateu no ar pareceram acordar Davi de uma espécie de transe; ele piscou várias vezes e recuou um passo, subitamente cônscio do clima denso no local, de sua respiração pesada e difícil, da urgência que estava sentindo em sair dali. Contudo, ao mesmo tempo, não queria dar par de fraco, fugir, escancarar para o garoto o quanto aquela situação o desestabilizava... E naquela confusão de vontades, Davi acabou não saindo do lugar. — Eu tenho aula, Matheus, e você também, o sinal já vai tocar e eu não quero que o Júlio faça piadinha comigo por chegar atrasado junto com você! Você vem?

Matheus piscou e mordeu os lábios nervosamente, sem desviar o olhar de Davi, e o terceiranista acompanhou o movimento de maneira quase inconsciente. Eles estavam há quanto tempo naquilo? Segundos? Minutos?

— Matheus, você vem?

O segundanista piscou uma vez, duas vezes, três vezes, a boca se contorcendo em um arco pensativo que Davi reconheceu imediatamente; o garoto estava tomando uma decisão. E embora parecesse óbvio que Matheus iria embora dali, para cada um dos dois continuar vivendo sua própria vidinha medíocre como se aquilo não tivesse acontecido — ele ainda estava ponderando sobre o que exatamente era aquilo —, o que aconteceu foi o oposto: os olhos do segundanista ganharam neutralidade, um brilho amistoso, e ele lentamente largou a mochila com os cadernos no chão.

— Não, não vou. — As palavras foram pronunciadas de maneira ausente. — Eu vou ficar aqui. Pode ir, Nelson.

Você matando aula, isso... — reclamou Nelson e Davi, ao desviar o olhar de Matheus por um segundo para encará-lo, notou que o garoto parecia quase incrédulo. — Espera. É ele?

Como assim “é ele”?

— Sim, Nelson, é ele. — Ele o quê? O que estavam falando de mim? Davi sentiu uma onda terrível de curiosidade e Matheus pareceu ter notado isso, porque um fantasma de sorriso se desenhou em seus lábios antes que ele continuasse a falar, o tom entediado: — Eu passei de ano em inglês, você não, o sinal vai tocar, você tem certeza que quer ficar aqui?

Nelson ergueu as mãos em um gesto agastado.

— Ah, eu realmente não te entendo! — O garoto pegou a mochila de Matheus do chão e, pendurando-a no ombro, passou a marchar corredor afora, parecendo realmente irritado. — Espero que você saiba o que está fazendo, porque eu sinceramente não sei! E você vai me contar tudo depois!

Os passos dele, juntamente com as palavras, ecoaram por um curto segundo antes que o garoto virasse em uma das esquinas e desaparecesse, deixando para trás uma atmosfera tensa e preenchida por um silêncio nada menos do que constrangido. Matheus abaixou a cabeça lentamente, a franja escura caindo por cima de sua testa, e Davi, sem saber exatamente o que fazer, deixou seus olhos vagarem pelo entorno, armazenando detalhes inúteis — a fechadura da porta tinha um arranhão, uma colônia de formigas estava fazendo mudança numa das arestas da parede, o teto estava cheio de teias de aranha, não havia mais ninguém ali, só os dois.

— O que você quer? — As palavras abandonaram seus lábios sem que Davi mal percebesse, modeladas por uma mágoa fria. — Tem mais alguma besteira para cuspir?

Matheus levantou a cabeça bruscamente.

— Eu não falei nada mais do que a verdade! — retrucou, de má vontade. — Você mentiu para mim, só para começarmos a conversa!

Eu não... Davi sentiu a raiva ferver suas veias, o primeiro vestígio verdadeiro de energia que lhe aparecia em duas semanas. Não acredito... Nisso!

— Menti porque sabia que você iria pirar, porque sabia que uma pessoa que mal consegue aceitar ela mesma jamais conseguiria aceitar a diferença de outra! Eu sempre soube que aquilo ia ser demais para você, Matheus, porque mesmo que isso só diga a respeito de mim, você ainda se importa! Você se importa demais, com tudo, com todo mundo, mas para você mesmo, que devia ser a única pessoa na conta, você não dá a mínima! — Davi parou, ofegante, tentando recuperar um pouco de sobriedade; não era assim que ele tinha imaginado uma possível conversa entre os dois. Preciso ficar calmo. Preciso respirar. — Eu tento te entender, tento mesmo, mas você não colabora.

— Você fala de se importar, mas você por acaso liga? — retrucou Matheus, cerrando os olhos para ele. As marcas da surra tinham praticamente desaparecido, mas o terceiranista, sabendo onde procurar, conseguia identificar leves traços amarelados, reminiscências dos hematomas que tinha lhe infligido; Davi procurou por algum remorso, mas não havia nenhum. — Eu pelo menos falei a verdade, Davi, aquela verdade dolorida que todo mundo ignora, enquanto você mentiu para mim várias vezes! Não se trata apenas de omitir a verdade, mas de mentir, como quando eu perguntei do William...

— E por que o William é tão importante? — interrompeu Davi, a menção do nome novamente reacendendo sua cólera. — Você já pensou, no seu mundinho egoísta onde todo mundo tem que contar tuuuudo para você, que eu não queria falar dele? Ele é meu ex-namorado, eu fui um babaca com ele, e isso não é da sua conta! Se você não confia em mim, por que eu deveria confiar em você?

— MAS A QUESTÃO É QUE EU CONFIO EM VOCÊ, SEU ESTRUPÍCIO! — Matheus gritou, arregalando os olhos para ele quase que num desafio, que Davi não revidou a altura; a frase o surpreendera em tal nível que as palavras lhe fugiram. O silêncio se arrastou, o segundanista parecendo realmente esperar por aquela resposta e baixando o olhar num brilho magoado quando percebeu que ela não iria chegar. — Eu confio em você e sabe o que mais magoa? Saber que você não confia em mim de volta. Que merda, Davi.

Eu... Durante um segundo, Davi não soube nem sequer o que pensar. Não esperara por aquilo; ele tinha idealizado aquela conversa, mas não previra uma briga, não previra que a iniciativa seria de Matheus e, principalmente, não previra que o garoto falaria aquele tipo de coisa. Estava desarmado. O lugar dessa conversa não é aqui, concluiu. Eu ainda tenho que entregar aquele tabuleiro a ele e a hora é agora. Para terminar tudo.

— Você vem comigo — disse com certa secura, ignorando intencionalmente o que Matheus acabara de falar;

ele não tinha resposta para aquilo. — Eu não vou brigar com você no corredor do segundo ano. Por favor? — pediu, o tom ligeiramente mais brando, quando viu que Matheus não tinha saído do lugar. — É sério. Tenho algo para te mostrar. Para te dar, na verdade. Você vem?

Matheus o encarou com uma incredulidade fria nos olhos, a acusação muito clara neles — como você se atreve a falar desse jeito depois do que eu disse? —, mas, depois de um segundo de hesitação, acabou acompanhando Davi pelo corredor. O clima estava pesado e terrível, os dois andando lado a lado como o fariam dois completos estranhos, mas, de alguma forma, o terceiranista sentia que estava fazendo a coisa certa — e esperava, com toda a sinceridade do mundo, que não estivesse enganado.

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A maior prova do quanto aquelas duas semanas os tinham distanciado se deu quando chegaram ao quarto de Davi. As semanas indo ali toda noite jogar xadrez haviam deixado Matheus muito à vontade, de forma que ele entrava sem nem mesmo bater, jogava-se na cama espaçosamente e ainda tinha a audácia de reclamar que Davi era muito folgado — mas naquele momento, quando Davi abriu a porta do quarto e entrou, procurando novamente nas pilhas de papéis pelo tabuleiro, Matheus parou na porta cautelosamente, observando o interior com olhos acuados, toda a postura corporal indicando o quanto ele não queria estar ali.

Mais de dois meses construindo uma familiaridade que tinha sido morta em duas semanas; Davi não se decidiu se ria (mas não tinha graça) ou se ficava com ainda mais raiva, embora não soubesse exatamente de quem.

Não foi necessária muita procura; o tabuleiro ainda estava no mesmo lugar onde Davi o encontrara de manhã. Havia muito descaso na cena, o embrulho amassado estava jogado no chão, as pilhas de papéis parcialmente encobrindo a embalagem levemente socada nas arestas, e Davi sentiu uma onda de melancolia; aquelas duas semanas procurando por aquele presente pareciam muita inocência agora. Quase estupidez, na verdade. Do que aquilo tinha valido, no fim? Ele pegou a caixeta novamente, soprando com suavidade para tirar a fina camada de poeira que tinha se instalado por cima e saiu do quarto, encontrando Matheus no corretor, as costas apoiadas na parede, parecendo mortalmente desconfortável.

— O que é isso? — perguntou, franzindo as sobrancelhas, quando o outro lhe entregou a caixeta. — Um tabuleiro?

— Era meu presente de aniversário para você — explicou Davi, encolhendo-se de leve quando Matheus lhe enviou um olhar descrente, como quem diz é sério? — Eu sei, nada criativo. Mas nada que eu procurava parecia bom o suficiente ou algo que você fosse gostar... Aí eu comprei o tabuleiro. Para você, quando encarasse a sua coleção deles, tivesse alguém para odiar além do seu pai.

— Davi, isso é... — Matheus, cujas sobrancelhas se arregalaram gradualmente com a fala do terceiranista, parou por um segundo, a boca aberta de um jeito mesmo ridículo, antes de cair na risada. Era o tipo de gargalhada gostosa, contagiante, e Davi se viu rindo também, sua primeira risada verdadeira desde o aniversário de Matheus. — Meu Jesus, eu estou tentando procurar palavras que não soem ofensivas, mas não está dando certo!

Davi recuou de maneira falsamente magoada.

— Foi o melhor que eu pude fazer, tá? Desculpa se eu e o seu pai somos farinha do mesmo saco!

— Não são mesmo! — discordou, balançando a cabeça, as bochechas coradas por causa do acesso de riso. — Olha, eu esperei tudo de você, inclusive que o presente fosse invenção sua, mas caramba, Davi, um tabuleiro? É muita toupeirice. — A despeito de suas palavras, entretanto, ele abriu a caixeta e tirou o tabuleiro de vidro com dedos muito suaves, examinando-o com algo que se parecia muito com fascinação. A peça era alta, as laterais esculpidas em padrões sinuosamente delicados, as peças pequenas e frágeis em vidro transparente e preto; Davi tinha se encantado com ele no momento em que o vira na vitrine de uma loja de quinquilharias e soube que era exatamente aquilo que compraria para Matheus, independente do quão óbvio fosse. Vendo a expressão do garoto, a decisão parecia certa. — É lindo, Davi. Lindo mesmo... Eu...

— Que bom que gostou. — Davi sentiu a própria voz vacilar um pouco. — Eu passei duas semanas procurando por alguma coisa. Queria algo que fosse a sua cara.

— Belo jeito de jogar na minha cara que eu sou branco ao ponto da transparência — retrucou Matheus, os dois rindo novamente, tudo parecendo muito leve, tudo parecendo exatamente do jeito que era antes, e Davi sentiu novamente aquela onda de saudade. Aquilo ali era uma despedida ou o quê? Em algum momento de sua ponderação, Davi se viu encarando Matheus, a risada morrendo para dar lugar um silêncio vazio, como que expectante de algo; por algum “até logo”, por um outro xingamento, por algo que abalasse aquela paz, porque era claro que não ia durar. Era possível ver, no modo como se encaravam, que o segundanista também sentia saudade, mas até que ponto? Até onde Matheus gostava dele, conseguia suprimir seu orgulho, valorizava sua amizade? Davi se viu querendo fazer aquelas perguntas, mas se falasse, Matheus desviaria os olhos e então... — Me desculpe.

Oi? Por um segundo, Davi pensou ter escutado errado. Como é que é?

— Me desculpe, é sério — reforçou Matheus, lendo a confusão clara em seu semblante. — Eu... Não devia ter falado aquilo. Eu... Tive muito tempo para pensar, sabe? Eu não sei se perdoei você por ter escondido aquilo de mim, mas eu fiz uma merda muito pior, né? Então, é sério, me desculpa... E tenta nunca mais esconder nada de mim, ok, sua toupeira burra? — Ele deu um peteleco na testa do terceiranista, os dedos leves. — Eu não sou a mais compreensiva das pessoas, mas... Eu posso tentar, sabe, sua anta!

Matheus mordeu os lábios, desviando os olhos, e Davi o encarou com incredulidade, sorrindo sem perceber; ele não tinha esperado por uma briga, nem pela declaração anterior de Matheus, mas enquanto aquelas coisas eram aceitáveis, um pedido de desculpas do segundanista chegava bem perto de se enquadrar na categoria do milagre. Era claro o esforço que Matheus tinha feito para proferir aquelas palavras; havia um rubor forte nas bochechas, a postura tinha se encolhido defensivamente e ele tinha quase cuspido a última frase, obviamente com pressa de terminar.

Davi sabia que devia gritar com ele, dizer para ele o quanto aquilo o magoara — o quanto aquilo magoara a si mesmo, surrá-lo, ficar semanas a ignorá-lo, se privar da companhia da pessoa que ele mais gostava —, como ele tinha passado dias e dias pensando e pensando e pensando e sentindo saudades, como Matheus conseguira fazê-lo odiar Mariah Carey, como aquelas semanas tinham sido terríveis... Mas aquela cena, no mínimo adorável, derreteu sua raiva com uma facilidade que beirava o absurdo. Por que ele estava sentindo raiva de Matheus mesmo?

— Você — disse, o sorriso se alargando enquanto ele se aproximava, não exatamente pensando no que estava fazendo; ele já tinha pensado demais. Duas semanas de tortura mental e o mínimo que ele merecia era poder fazer o que tinha vontade. — Não faz ideia do quanto eu senti a sua falta.

Matheus recuou um pouco, seu semblante demonstrando uma surpresa tão assustada que Davi temeu ter ido longe demais. Os dois tinham acabado de fazer as pazes, afinal, não era mais interessante que saíssem como amigos, conversassem sobre as próprias vidas, fingissem que aquelas duas semanas não tinham acontecido? Durante um tempo que poderia ter sido segundos, minutos ou horas, os dois apenas se encararam, o terceiranista esperando por qualquer sinal de Matheus — uma recuada, um gesto de nojo, um avanço —, as respirações difíceis dos dois no mesmo mísero espaço de centímetros que os separava. Ele devia falar alguma coisa, tornar aquela situação menos desconfortável, torcer para que Matheus não tivesse visto todas as intenções em seus olhos, ele sabia; mas, ao invés disso, no provável ato mais suicida de sua vida, Davi fechou a distância e o beijou.

Foi só um toque de lábios, mas o corpo do segundanista congelou completamente por um segundo, imóvel em seu espanto, e Davi perdeu a coragem; afastou-se ligeiramente para encará-lo, os olhos cheios de desculpas. Matheus estava pálido como uma parede de hospital quando abriu os seus para fitá-lo de volta, mas as íris escuras passavam uma mensagem diferente, confirmada pelo par de mãos tímidas que subiram pela barriga de Davi, sinuosamente, até alcançarem sua gravata. Ninguém disse nada, mas não precisava; no tipo mais clichê de cena possível, o garoto usou a gravata que segurava para içar Davi em sua direção e então eles estavam se beijando novamente, um beijo de verdade dessa vez, os lábios de Matheus rápidos e exigentes sob os seus.

Por um instante, tudo o que havia era o contato de suas bocas, mas não parecia suficiente; Davi puxou o corpo bambo e flexível de Matheus contra si, abraçando-o com tanta força que ficava difícil saber onde terminava um e começava o outro. Quando o garoto estendeu as mãos para deslizá-las pelo rosto de Davi, como que decorando todos os seus traços, o contato pareceu não apenas um carinho e sim uma forma de apoio; como se aquele toque fosse tudo o que o impedia de cair, de se afogar na urgência daquele beijo.

Davi não estava preparado para a enormidade daquilo. Ele se lembrava do primeiro beijo, aquele singelo contato de lábios que tinha virado seu mundo de cabeça para baixo, mas ali tudo fora diferente porque, de alguma forma, ele sabia que não devia avançar, que aquele contato era tudo o que iria ganhar — enquanto ali, naquele momento, ele nem sequer precisava pensar sobre ir adiante. O deslizar de suas mãos pelos ombros de Matheus, retirando seu blazer, era natural, assim como o eram os toques do garoto em sua cintura, os dedos não exatamente confiantes, mas firmes o suficiente.

Foi apenas quando se separaram pela primeira vez, intercalando suas respirações com uma sequência de estalos, que Davi percebeu que ainda estavam no corredor, à vista de todo mundo, e que Matheus talvez não fosse querer continuar ali, correndo o risco de ser descoberto numa situação tão... Crítica. Visando conseguir o máximo possível de firmeza nas pernas, Davi interrompeu os beijos e começou a conduzir Matheus com firmeza para o quarto, totalmente esquecido da tensão anterior e da montanha de significados daquele gesto; tudo o que ele queria era um lugar mais confortável para beijar Matheus pelo resto do dia. O tempo apartados pareceu comprido demais para ele enquanto iam em direção ao quarto, mas, para Matheus, provavelmente foi insuportável; quando passaram da soleira da porta, o garoto se pendurou nele com um novo fôlego, seus lábios demonstrando uma urgência que Davi se sentiu mais que disposto a corresponder.

O resto do caminho foi feito literalmente aos tropeços; os dois mal sentiram quando caíram sobre o colchão de Davi, absortos demais no contato de suas bocas e mãos, e os dedos de Matheus serpentearam pelos botões de sua blusa, roçando suavemente em sua pele à medida que ele os desabotoava, a sensação boa vinda do contato despertando gemidos em ambos...

O sinal do recreio tocou.

Foi como acordar de um sonho — em um segundo estavam se beijando, no outro estavam os dois sentados na cama, lado a lado, ofegantes. Matheus estava completamente corado, os cabelos como um ninho de passarinho em sua cabeça, os lábios vermelhos e inchados e, quando encarou Davi, seus olhos tinham aquela chama de diversão incrédula, algo como o que nós acabamos de fazer, cara?

— Ah... — disse, depois de um curto momento, o rosto ficando ainda mais vermelho quando ele apontou para o peito desnudo de outro. — Vai abotoar?

Davi encarou a própria blusa desabotoada com surpresa, como se tivesse acabado de notar o próprio estado, antes de subir as próprias mãos trêmulas para consertar a situação. Durante um momento estranho, nenhum dos dois disse nada, Matheus caminhando até o espelho para ajeitar os cabelos desarrumados, Davi desamassando as próprias roupas, em dúvida sobre o que viria a seguir. Na lista de coisas insanas que já tinha feito, aquela de longe levava o primeiro lugar — beijar Matheus daquele jeito e, o mais estranho, ser retribuído com a mesma animação. Sua mente tentou entender os possíveis motivos para aquilo, esperançosa, mas sua razão o trouxe para a realidade; ele era um teste, apenas um teste.

Fico me perguntando se passei.

— Em uma escala de zero a dez... — Matheus parou em frente a ele, deliberadamente evitando seus olhos enquanto fazia um gesto demonstrativo para o próprio corpo. — Quanto minha aparência me denuncia?

Davi subiu os olhos pelo corpo dele, sentindo um arrepio de delicioso desconforto, mas Matheus estava impecável; o único sinal do que eles tinham acabado de fazer estava em seus lábios, ainda inchados e vermelhos, porque não havia nada que o garoto pudesse fazer a respeito daquilo.

Eu os deixei assim. Ainda parecia demais para acreditar. Meu Deus.

— Um — respondeu, vestindo novamente o blazer e agradecendo mentalmente pela habitual aparência desarrumada de seus cabelos; não precisaria se preocupar muito com eles. — Na verdade, dois, porque eu acho que o seu blazer está no corredor, junto com o presente que eu te dei. Espero que não tenha quebrado, sabe, eu paguei meio caro nele.

Matheus riu e caminhou até a porta, esticando o pescoço para o corredor por um segundo antes de voltar a cabeça para Davi.

— É, estão aqui. — Ele sorria com os olhos, embora a boca estivesse comprimida numa linha fina de concentração. — Encontro você de noite para continuarmos treinando para o xadrez?

— Ah... — O terceiranista e recostou na parede, ligeiramente desorientado. Aquilo significava o quê? Matheus não estava bravo com ele? Tinha decidido fingir que nada daquilo tinha acontecido? — Claro. Vou te esperar.

— Então está bem. Até mais tarde!

Matheus voou corredor além e Davi respirou fundo, tentando clarear as ideias. Tinha acabado de fazer a maior loucura de sua vida, não se arrependia, mas também não sabia como as coisas ficariam dali para frente. O segundanista talvez quisesse fingir que aquilo nunca acontecera e Davi sinceramente não se importava, se aquilo garantisse a permanência de Matheus como seu amigo — ele faria tudo para não repetir aquelas duas semanas novamente —, mas com certeza havia um limite de vezes para você beijar alguém e fingir que está tudo bem.

Davi se perguntou se estava perto de atingir o seu.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. Eu estou com o capítulo 15 pela metade, mas, infelizmente, não tenho data para terminá-lo; espero que eu não demore três meses dessa vez.
Amo vocês, gente.
Amo a Monique também, porque gente, um capítulo onde eu não agradeço à Monique não é um capítulo normal :v
Obrigada a todos que comentaram no último e até o próximo, seja lá quando ele vier; espero que logo!