Xadrez escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 14
13.2 - O Pavimento de Nossas Boas Intenções


Notas iniciais do capítulo

DEPOIS DE UM MÊS, EU TENHO EM MINHA DEFESA O FATO DE QUE...
Eu não tenho defesa ;-;
Olá, gentes! Eu não morri, ainda não, mas com o calor que tá fazendo aqui, juro que cheguei perto, viu? Jesus, tô ao ponto do derretimento! Essas férias eu prometi a mim mesma que ia tirar para escrever, mas acabei caindo de cabeça num semibloqueio chaaato...
Passou
Tô aqui!
Agradecer à todos que leram e comentaram e às duas pessoas fofas que vieram me perguntar sobre Xadrez por MP. Parem de me bajular, gente, eu acredito, tá? :3
Antes de vocês lerem, última coisa: não me matem. Eu sou do bem.
Ou quase.



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A despeito do que tudo o que ele poderia ter previsto e esperado, a tarde correu bem. Eles chegaram ao shopping e foram direto para o boliche, onde jogaram de duplas — Guilherme e Davi contra Matheus e Tábata —, Tábata contando historinhas vergonhosas sobre a infância do aniversariante, que Davi ficou feliz em escutar. Ele não se sentiria bem em dormir sem saber que Matheus tinha chupado dedo até os oito anos, que ele tinha ficado de castigo aos nove anos porque estava de namorico com uma menina da casa do lado — segundo Matheus, eles nunca tinham feito mais do que sorrir para o outro através de suas janelas, mas Patrícia não entendera a coisa daquele modo inocente —, e, principalmente, sem ver a expressão envergonhada de Matheus quando Tábata começou a descrever a época de seu namoro com Rebecca, ilustrando a coisa com gestos bem convincentes. No fim, distraído em escutar a garota falar, Davi errou metade de suas bolas, garantiu a derrota de sua dupla e gastou minutos tentando convencer a Guilherme que a culpa não tinha sido dele e sim de Tábata, que usara aqueles casos engraçados para trapacear — a garota rindo maldosamente no fundo enquanto isso.

Acabaram desistindo do boliche e passaram a andar de forma idiota pelo shopping enquanto tentavam decidir o que fazer em seguida. Tábata queria ir para um clube de paintball, mas Guilherme foi contra a ideia por afirmar que tinha uma “péssima mira”; Matheus sugeriu que eles fossem assistir a algum filme, mas a lista das películas não agradou a ninguém e a ideia foi logo descartada. Depois de alguns minutos de silêncio pensativo, Guilherme disse que talvez eles pudessem ir ao karaokê, e aquela estava sendo sugestão aceita por todos, até Davi, em um acesso de brilhante idiotice, perguntar se eles não queriam fazer hora com a cara dos vendedores.

Era cruel, mas como os bons adolescentes que eram, todo mundo aceitou.

As horas seguintes os encontraram entrando de loja em loja, fazendo perguntas idiotas, experimentando roupas apenas para não comprá-las e travando amizades com os vendedores mais bem-humorados; os irritados, que foram a maioria, os colocaram para fora dos estabelecimentos assim que perceberam que os quatro estavam ali apenas para fazer bagunça e, em retrospectiva, Davi não os culpou. Eles se comportaram como pequenos diabretes durante todo o tempo, rindo a cada vez que conseguiam irritar uma alma honesta e trabalhadora, vangloriando-se por conseguir um grito ou xingamento, fazendo poses com as mais ridículas combinações de roupas que renderam fotos, no mínimo, interessantes — imagens que com certeza renderiam arrependimentos no futuro, mas que, naquele momento, só pareceram felizes, como o espírito do grupo.

Quando finalmente se cansaram da criancice, sentindo a típica fome que procede a atividades intensas, decidiram ir até a praça de alimentação; comeram crepe, sanduíche, sorvete — Matheus pediu suas três bolas de limão, menta com chocolate e manga, fruta a qual ele quase bateu em Davi quando o garoto disse que odiava; aparentemente, ele levava aquela coisa de fruta favorita para o lado bem pessoal —, iogurte congelado e balas nada saudáveis, que deixaram Davi com a sensação de ter comido xícaras inteiras de açúcar puro. Todos estavam se sentindo empanzinados e satisfeitos com a comida, mas não com as atividades do dia; quando Guilherme novamente propôs o karaokê, todos aprovaram a ideia e fizeram seu caminho até o local, razoavelmente distante do shopping.

Foi uma das coisas mais engraçadas que Davi jamais testemunharia novamente. Ele já contava que iria passar vergonha, pois suas habilidades de canto eram nada menos do que vergonhosas, mas ele não esperava que Matheus e Tábata conseguissem ser piores do que ele. Guilherme era um cantor razoavelmente bom, afinado e habilidoso, o que tirava metade da graça da coisa, mas ver Matheus cantando You’ll Be In My Heart, completamente ignorante da letra, entrando com agudos onde deveriam vir graves, a careta em seu rosto traduzindo perfeitamente seu estado de espírito, e Tábata desafinando propositalmente em Applause, foi mais do que suficiente para compensar a afinação pouco emocionante de seu amigo. Davi mesmo fez performances memoráveis em Hey Brother e Single Ladies, a última com direito até mesmo a uma dancinha “sensual” em cima da mesa, Tábata literalmente chorando de rir na parte debaixo enquanto Guilherme procurava o celular para filmar, mas não o encontrava.

O passeio teria durado mais se Tábata não tivesse recebido uma ligação de uma amiga de faculdade, avisando-lhe sobre a data de entrega de um trabalho que elas nem sequer tinham começado — dali a dois dias —, o que forçou a garota a declinar do resto das atividades, levando com ela Guilherme, seu cãozinho fiel. Satisfeita e levemente melosa, ela encheu Matheus de beijos em sua despedida, dizendo que ainda ia lhe ligar novamente no dia seguinte, que não suportava a ideia de seu Matheuzito estar crescendo e que esperava que ele usasse bastante a camiseta que ganhara, enquanto Guilherme apenas acenava de longe, parecendo ansioso para ir embora. Quando eles finalmente viraram as costas para se afastarem, o garoto parecia quase aliviado, ao mesmo tempo em que apreensivo e levemente irritado; o último olhar que ele enviou a Davi antes de virar a esquina confirmava isso, o mesmo recado novamente claro dançando em seus olhos:

Você mentiu para mim.

Davi suspirou; por que ele tinha que escolher pessoas tão complicadas para serem seus amigos?

— Então sobramos nós dois — disse Matheus, parecendo contente, a voz ligeiramente rouca pela cantoria no karaokê. — O que vamos fazer? Ir embora? Meu aniversário já está mais do que comemorado. Na verdade, eu acabo de descobrir que eu estou cercado de doidos e isso nunca pareceu tão legal.

O terceiranista sorriu, captando o agradecimento implícito na frase e se sentindo agradavelmente alegre com ele.

— Só acabamos se você quiser que acabe. Ainda há a Savassi e toda aquela centena de barzinhos. Podemos ir para algum deles, se você quiser.

— Oras... A Savassi é meio longe daqui, né? Eu não tenho pernas para tudo isso. — Matheus olhou interrogativamente para ele. — Você por acaso tem meios de chamar um táxi?

— Sim. Eu sempre ligo para o mesmo taxista quando vou sair para as minhas festas, então ele é praticamente de casa, já. Na verdade, ele é mais meu amigo que praticamente todo o Vespasiano. — Davi deslizou o dedo rapidamente pela lista de contatos, arquejando satisfeito quando encontrou o nome que queria. — Aguente aí um segundo, já termino.

Matheus aquiesceu lentamente e se pôs a observar os carros que passavam freneticamente na rua, seus olhos com aquele típico ar distante de quem olha, mas não enxerga de fato o que está vendo. Era uma cena tão bonita que, após desligar o telefone, Davi parou para observá-lo por um segundo, ou pelo menos pelo que lhe pareceu um segundo; quando Matheus balançou a mão em frente a seu rosto para chamar sua atenção, ele teve a impressão de o tempo decorrido em seu encarar idiota havia sido bem maior do que o socialmente aceitável.

— Aê! — comemorou o segundanista, encarando-o com divertimento mal disfarçado. — Acho que seu relacionamento com esse taxista é bem mais intenso do que você deixa aparecer, hein? Você ficou todo avoado depois que ligou para ele, não sei não...

— Não seja idiota. — Davi sentiu um fantasma de constrangimento. — Até porque, ele gosta de mulheres gostosas, sensuais, e tal... E eu não sou mulher, só gostoso, mesmo.

— E você não ficou uma linda mulher sensual dançando Single Ladies mais cedo? Ainda não perdoei o Guilherme por não ter filmado aquilo, ia dar uma chamada tão legal no YouTube...

O terceiranista mostrou a língua para ele.

— Fala o cara que conseguiu simplesmente acabar com You’ll Be In My Heart. Eu devia ter deixado você cantar Elton John; se eu soubesse que ia estragar Phil Collins daquele jeito, eu com certeza teria deixado você cantar Elton John.

— Não sei qual é a da sua pirraça com o Elton John...

— Ele é brega?

— Você também é e nem por isso você se proíbe de andar comigo. — Matheus sorriu vitorioso ao ver Davi cerrar os olhos para ele, deixando claro que a piada não havia tido a menor graça para ele. — Esse cabelo, você devia pentear ele de outro jeito... — Ele bagunçou os cabelos do outro com um breve afago em seu cabelo. — E vestir umas roupas mais modernas. Eu vejo você e me lembro do Sidney Magal.

Davi cruzou os braços e virou o rosto de costas para o outro orgulhosamente.

— Quer que eu cante para você agora? Você agora é a cigana Sandra Rosa Madalena? — Ele bufou, contrariado. — Poxa, eu mereço mais da vida do que ser comparado com o Sidney Magal.

O outro garoto riu alto.

— Com certeza merece.

Davi, pela segunda vez no dia, disse a si mesmo que iria ignorá-lo e cruzou os braços com mais força, disposto a fazer o silêncio durar, mas acabou o quebrando depois de dois segundos quando qualquer coisa do cenário chamou sua atenção e ele achou a informação suficientemente relevante para compartilhá-la com Matheus. Ele disse a si mesmo que não estava procurando desculpas para uma conversa — na verdade, ele fez isso várias vezes durante aqueles curtos minutos antes de seu transporte chegar —, mas o pensamento não soava convincente nem para si mesmo e o garoto desistiu.

Eu estou tão ferrado. As palavras ecoavam e se repetiam, soando cada vez mais desoladoras a cada vez que se reproduziam. Tão, tão, tão ferrado.

O táxi finalmente chegou e os dois logo entraram, travando uma conversa divertida com o taxista — João Cléber, alma honesta e de um senso de humor terrivelmente ácido —, que rendeu constrangimento para os dois; o homem não tinha muito senso de moral e falava coisas pouco apropriadas para pessoas de cinquenta anos escutarem, o que resultou em um Matheus simplesmente roxo saindo do táxi com um Davi se sentindo ligeiramente quente ao seu lado. Talvez ele nunca mais chamasse aquele cara de novo; depois das coisas que haviam escutado, não tinha certeza se valia muito a pena.

A Savassi estava cheia, embora ainda não fossem nem seis horas da noite, e os dois, ainda sentindo os vestígios do constrangimento amainarem lentamente, ficaram um segundo em silêncio, observando o movimento com olhos meio torpes. Para que eu vim aqui mesmo? Davi seguiu uma mulher bonita com os olhos de maneira distraída, apreciando o modo como o vestido azul tinha caído em seu corpo. Uma bela estranha. Ah é...

— Para onde vamos? — perguntou, virando-se para Matheus e novamente observando o fenômeno interessante que era o rubor do garoto recuando de maneira gradual. — Há quinhentos bares aqui. Você pode escolher.

— Vamos andar e escolher o que parecer mais simpático. — O segundanista começou a caminhar, os olhos varrendo as placas e letreiros com interesse, um meio sorriso desenhando seus lábios. — O que parecer mais simpático para mim, ok? Não quero ser arrastado para outra roubada novamente, tipo esse seu taxista maldito e as dez merdas que ele fala a cada cinco palavras.

Davi deu de ombros e riu, sentindo-se minimamente culpado, mas o seguiu. E enquanto Matheus, com seu gosto exigente, esforçava-se para escolher um bar que parecesse refinado e bom para frequentar, os dois continuaram conversando, enredando mais profundamente pelo assunto de seus gostos musicais — Davi era do eclético, Matheus era do cult; o segundanista nunca deixaria de se vangloriar por isso —, de suas experiências literárias — Davi tinha muito para contar, enquanto Matheus falou parcamente de sua má experiência com Crepúsculo e de seu início difícil com A Cidadela, que ele ainda não tinha terminado — e de suas amizades verdadeiras e falsas, o que levou os dois a falarem sobre Guilherme e Rebecca.

Matheus já sabia sobre Guilherme, então Davi não se enrolou muito nessa conversa; estava ansioso para ver o amigo falar sobre Rebecca. Ele sabia que a garota era importante para Matheus — aquilo era claro no modo como ele citava seu nome —, ao mesmo tempo em que sabia que os dois haviam namorado, e que a coisa não tinha dado muito certo; mas ele não conhecia nem os motivos nem o contexto da história, e perceber que o garoto confiava nele para contar aquelas coisas deixou Davi se sentindo quase presunçoso.

— Nos conhecemos quando eu tinha seis anos. Meus pais me colocaram em uma escola fundamental ligeiramente mais “modesta”, mas que ganhava pontos por ter período integral e alguns ótimos índices educacionais. — Matheus indicou para ele um bar pequeno, rústico e despretensioso do outro lado da rua, o rosto orgulhoso como quem diz eu tenho um ótimo gosto, não? Davi avaliou o lugar por fora, medindo-o rapidamente com os olhos, mas antes que pudesse dar seu aceno de aprovação, eles já estavam lá dentro, sentados, o segundanista passeando os olhos rapidamente pelo cardápio enquanto continuava a falar: — Rebecca era a aluna mais popular da turma, porque ela era simplesmente radiante; a mãe dela gostava de vesti-la com poás e ela sempre fazia penteados diferentes no cabelo, o que a colocava com uma atmosfera meio de fada, assim. Todo mundo cercava a menina, é claro que eu não ia fazer diferente. Nós ficamos amiguinhos.

Ele falava com apatia, como se aquela fosse a vida de qualquer outra pessoa que não a dele, mas o modo triste como ele encarou o garçom e o jeito como ele pronunciou seu pedido, as palavras ondulando com certa melancolia, fizeram Davi ver que talvez ele não fosse tão indiferente àquilo quanto gostava de parecer. E que, definitivamente, ele andava observando Matheus excessivamente; não era normal alguém conseguir ler outra pessoa daquela maneira, era?

— Essas amizades de infância são como cara ou coroa — continuou o garoto, quando sua caipivodka chegou. — Ou duram, ou acabam, e é puramente sorte. Eu acabei dando sorte de continuar na sala da Rebecca no ano seguinte e no outro também e, de alguma forma, meu pai ia com a cara dela, então ela começou a ir lá para casa quase todos os dias. A gente foi ficando mais amigo, tanto que, quando eu mudei de colégio, ela deu um jeito de mudar também; Rebecca estudou quase seis meses para a prova de seleção das bolsas e conseguiu uma. Nós estudamos juntos também no fundamental e era bom, ela era divertida e tal... Até que um dia ela me perguntou por que a gente não namorava. E quando eu pensei, fazia realmente sentido: por que a gente não namorava? Aí a gente começou a namorar.

“Foi bom no início. Mas havia um cara na nossa sala, chamava-se Lúcio, e ele foi ficando nosso amigo aos poucos; quando fomos ver, ele já era parte da turma. E eu fui me pegando cada vez mais próximo ao tal Lúcio, porque minha vida inteira havia sido Rebecca e uma amizade daquele naipe com um homem era uma coisa completamente nova, sabe? Só que deu errado, porque eu acabei... me... apaixonando por ele.”

Davi conseguiu sentir a dificuldade que o garoto teve para pronunciar as palavras, seu rosto se contorcendo em uma expressão teimosa. Ele havia acabado com o primeiro copo de caipivodka com uma rapidez ligeiramente excessiva, e o terceiranista não tirava da bebida seu mérito na língua solta de Matheus; ele provavelmente jamais diria aquelas coisas completamente sóbrio. Sobre Rebecca sim — mas sobre Lúcio, aquele nome que ele nunca tinha escutado antes, mas que sentiu a importância no momento em que Matheus o pronunciou pela primeira vez, não.

— Eu consigo adivinhar que não foi uma coisa exatamente fácil — ele comentou, tentando deixar o segundanista à vontade, bebericando seu copo cuidadosamente. Não posso me embebedar; isso é importante, eu não quero acordar amanhã e esquecer. — Ainda mais para um garoto novo e inexperiente.

— Não foi uma coisa exatamente fácil? Não. Foi um inferno, mesmo. — Matheus levantou a mão languidamente para pedir outro copo de bebida. — Ele estava sempre por perto, tanto como meu amigo quanto como de Rebecca, e eu não podia simplesmente ignorar o que eu estava sentindo. Aí eu comecei a ficar cada vez mais arisco e distante para minha namorada e é claro que ela sentiu a diferença. Como não sentiria? A situação foi ficando pior, até o dia em que ela me chamou na casa dela e terminou comigo, o mesmo dia em que eu descobri que ela vinha me traindo. Com Lúcio. — Ele riu sem humor da expressão surpresa de Davi. — Foi uma situação chata. Nós éramos inseparáveis e, de repente, eu tomei duas facadas nas costas no mesmo dia. Isso aconteceu em setembro e, até o final do nono ano, eu evitei os dois o máximo que deu... E quando meu pai veio conversar comigo sobre ensino médio, eu, aos poucos, fui o induzindo para me colocar no Vespasiano. Disse que lá tinha o sistema das associações e tal, que tinha xadrez e que eu aprenderia mais sobre me virar sozinho. Ele acabou aceitando.

Davi piscou, de repente enxergando Matheus não como o garoto de recém-feitos dezessete anos que ele era, e sim o jovem que ele provavelmente havia sido, com medo, sem apoio e lotado de preconceitos contra si mesmo; escutar aquilo tornava mais compreensível a tristeza do garoto, a melancolia presente em tudo o que ele fazia e falava. Provavelmente — Davi conseguia apostar — aqueles acontecimentos ainda não haviam sido superados; não era o tipo de coisa que simplesmente se esquecia, e o terceiranista sabia disso por experiência própria.

Traído pela namorada e pelo cara que ele gostava, agora atual da ex. Davi arregalou os olhos quando a compreensão lhe veio. Tiago... Ele tinha dito que se incomodava com ele porque ele se parecia com o atual da ex. Se é de Lúcio que nós estamos falando, então eu estava realmente certo... Ele não sentiu felicidade nenhuma com o fato. O motivo de toda aquela briga... Por causa disso. Quantas coisas mais esse garoto remói só porque é teimoso e não fala nada para ninguém?

— E funcionou? — Acabou perguntando, decidindo rapidamente ignorar o assunto sobre Tiago; os dois estavam em bons termos agora e aquele não parecia o tipo de coisa que Matheus iria gostar de reviver, principalmente no humor atual. — Ir para o Vespasiano para evitá-los?

O segundanista riu novamente, desta vez de maneira quase amargurada.

— Não os vejo desde a formatura do nono ano. O que é bom. Eu não fiz a coisa mais inteligente do mundo escolhendo o Vespasiano como destino do ensino médio, afinal, lá só tem homem, mas fiz uma coisa melhor do que aguentar mais três anos de Rebecca e Lúcio sendo esfregados diariamente na minha cara. Eles ainda estão juntos e estão felizes; para Rebecca, que sempre foi a minha melhor amiga e a pessoa de quem eu mais gostava, isso é basicamente tudo o que eu posso desejar. Eu só não quero mais ter os dois por perto.

Davi encarou Matheus com seriedade.

— Acho que eu entendo isso.

— Entende mesmo? — O garoto desviou seus olhos para o cardápio, distraidamente deslizando o dedo pela lista de opções. — Estou com fome e vou pedir alguma porção de carne. Você vai querer pedir alguma outra coisa?

Ele nem se importa de ser sutil quanto à mudança de assunto. O terceiranista deu de ombros e puxou o cardápio em sua direção, analisando. Mas tudo bem. Ele já me contou demais e eu nem precisei insistir, o que é alguma espécie de milagre.

Uma leve olhada no cardápio revelou opções pouco atraentes para o garoto, que acabou pedindo a mesma coisa que Matheus. De forma a deixá-lo novamente confortável — era notável na própria postura de Matheus que o modo como tinha se exposto o havia deixado ligeiramente acuado —, Davi se esforçou em engatar uma conversa leve, sobre aspectos banais do cotidiano dos dois no Vespasiano, que terminou em um inflamado diálogo de julgamento sobre quais professores do colégio eram legais de conviver ou não; Marina foi a única aprovada, por unanimidade.

Quando saíram do bar, já passava das dez da noite e mais algumas bebidas haviam sido viradas; Matheus, embora não exatamente bêbado, estava bem mais alegre e falante que o normal e o próprio Davi se sentia mais leve e solto, as luzes da rua perdendo seu foco enquanto os dois caminhavam juntos sem de fato irem para lugar nenhum. Em sua mente, havia a satisfação pelo dia ter dado certo, por Matheus ter gostado de todos os programas e por todas as suas previsões pessimistas não terem acontecido. Talvez, só talvez, levando em conta a anormalidade daquele dia, ele conseguisse entregar seu presente sem que o outro risse de sua cara; afinal, todas as vezes que ele se lembrava do que tinha comprado, a única vontade que tinha era rir de si mesmo. Ele não sabia ser criativo e Matheus nunca perdoaria isso, mas o clima ali estava tão bom...

Eles viraram uma esquina e tudo aconteceu muito rápido. Em um segundo, os dois estavam de pé, lado a lado, conversando como amigos e, no outro, William tinha brotado do chão à sua frente, encarando aos dois com uma satisfação venenosa nos olhos, como se estivesse de cara com a melhor cena que via em anos — e no momento em que os dois se encararam e William sorriu, Davi soube, sentiu, como uma espécie de maldita intuição, que aquele encontro não ia terminar bem.

— Davi! — William o cumprimentou, aquele mesmo tom etilicamente animado que Davi conhecia tão bem; ele conseguia se lembrar de noites inteiras lidando com o ex-namorado daquele jeito, tentando manobrá-lo para que não fizesse nenhuma besteira, protegendo-o de sua própria falta de tato. A recordação o fez suspirar de desânimo. — Que interessante encontrar você, nessa noite tão linda, aqui na Savassi, com esse garoto tão atraente ao seu lado! Estava pensando em você hoje e percebi que sinto taaaaaaanto a sua falta... — O garoto se inclinou tropegamente para ele e Davi recuou um passo. Ele vai me entregar, ele vai estragar tudo. — Daqueles nossos dias... tão bons...

— Ah, claro, agora você pode ir para onde estava indo e nós vamos embora também. — Ele colocou a mão de maneira aparentemente descontraída nas costas de Matheus, empurrando com força. — A gente se vê na escola, William, aí nós podemos relembrar os...

— Espera! — Matheus se adiantou, fazendo ambos, William e Davi, olharem interrogativamente para ele. — Você é William?

O garoto piscou, parecendo confuso com a pergunta, até que seus lábios se curvaram maliciosos novamente, os olhos ganhando um brilho mal-intencionado.

— Sou. Sou o ex-namorado dessa praga aqui, ó. — Ele avançou para Davi, pendurando-se em seu ombro e plantando um beijo estalado em sua bochecha. — Você é quem? O atual? Já teve quantos depois de mim, gato? Quantos ou quantas?

Davi fechou os olhos com força, desejando que aquilo não tivesse acontecido, mas não conseguindo negar que tinha; e à medida que o rosto de Matheus foi perdendo completamente a animação, o olhar energético sendo substituído por uma fúria fria, ele soube que estava ferrado ali. William o tinha entregado, e da pior forma possível.

Quando é que esse cara vai aprender a ficar calado, meu Deus? Ele sempre falou demais...

— Olha, William, eu... — Ele observou, com uma pitada de horror, Matheus começar a andar pela rua, claramente colérico, deixando os dois para trás. — Esquece. Você tem prazer em acabar com tudo? Não consegue apenas viver na sua vidinha miserável? Você está bêbado, eu sequer posso brigar com você! MATHEUS!

Ele começou a caminhar atrás do colega, tentando atrair sua atenção, mas o segundanista realmente parecia disposto a ignorá-lo e apressou o passo. Os dois viraram uma esquina, Davi maldizendo todos os deuses e gerações antepassadas de William, do qual o terceiranista ainda conseguiu escutar uma risada completamente etílica antes de sumir na outra rua — e o pior era que, provavelmente, o ex nem sequer se lembraria daquilo no dia seguinte, pois sempre tivera tendências para amnésias alcoólicas... Mas o estrago já estava feito. E bem feito.

— MATHEUS! — Ele chamou novamente, correndo para alcançá-lo, tocando seu ombro com suavidade quando conseguiu; o garoto recuou como se tivesse levado um choque. — Por favor, só me escuta!

— Escutar o quê, Davi? Que você estava fazendo hora com a minha cara esse tempo todo? Rindo de mim secretamente quando eu não estava por perto, pensando “nossa, ele é tão encubado, preciso levá-lo para o meu lado da força?” — retrucou o segundanista, fazendo aspas imaginárias com os dedos, a acidez de seu tom fazendo Davi tremer. — Não tem nada para explicar! Você não fez nada de errado! A única pessoa errada sou eu, sempre eu, não é isso?

— NÃO! — Davi começou a sentir uma pontada de desespero. Ele não vai me escutar, ele não me escuta, ele está bêbado e com raiva e eu estou errado. — Eu só não te contei porque... Não achei que você fosse entender.

Ele se arrependeu das palavras no exato momento em que as proferiu, e com razão; Matheus, primeiramente, arregalou o semblante para ele como se tivesse levado uma facada, o rubor se espalhando por suas bochechas, e logo depois cerrou os olhos, uma fúria afiada como uma navalha queimando neles. Castanho muito escuro, quase negro... E em chamas.

— Não fosse entender. Claro. Porque além de tudo, eu ainda sou muito burro, não é? — Ele gesticulou de maneira inflamada. — Encubados como eu, claro, além de não conseguirem se aceitar, não conseguem nem entender os sentimentos dos outros. É isso?

Davi sentiu uma urgência de gritar, de sacudi-lo para frente e para trás até que o garoto compreendesse seus motivos, mas não adiantaria nada, ele sabia; então, ao invés disso, respirou fundo, tentando trazer um pouco de calma para sua fala, tentando desesperadamente não se exaltar e jogar na cara do garoto os pensamentos terríveis que lhe subiam à cabeça. Eu não quero machucá-lo. Eu sou o errado aqui.

— Não, Matheus! Eu sou bissexual, tá? Passei por uma longa fase de aceitação. Eu entendo o que você sente, a sua rejeição, mas não achei que você fosse...

— E ESTÁ CHORANDO POR SER BISSEXUAL! — Matheus gritou, rindo, parecendo tão miseravelmente ferido que Davi quase conseguiu sentir sua dor em si mesmo. — ESTÁ CHORANDO POR TER O MELHOR DE TUDO, POR PODER FINGIR SER HÉTERO, POR PODER FICAR COM MULHERES E GOSTAR DISSO, POR TER A MALDITA PORRA DA OPÇÃO QUE EU NÃO TENHO! — Ele encarou Davi com pesar. — Eu não tenho opção, Davi. Eu nunca tive opção, então não me venha dizer que você se rejeitou, PORQUE NÃO TEM MOTIVO!

— VOCÊ NÃO SABE! — Davi se exaltou, o presente em sua mão quase caindo, mas de repente, ele não podia se importar menos; jogou a caixa no chão enquanto gesticulava, o rosto furioso do outro lhe causando uma onda de mal estar, sabendo que, no momento em que começasse a falar, não conseguiria parar, mas não se vendo com ânimo para tentar se conter. — Você não faz a menor ideia, sabe? Eu tive sorte porque eu tive amigos que me ajudaram, pessoas nas quais eu tive o prazer de me arriscar a confiar, porque você colhe coisas boas quando confia em pessoas. Ao contrário de você, que se esconde nessa maldita conchinha, eu descobri o mundo, sabe? Descobri que existe muito mais gente do que essa bolhinha de preconceito. Pare de achar que tudo está perdido para você!

— Mas está, Davi, está! Eu não vou conseguir dar para o meu pai o que ele quer, não vou conseguir dar para a minha mãe o que ela quer, NÃO VOU CONSEGUIR DAR PARA MIM MESMO O QUE EU QUERO! Eu estou perdendo meu tempo com você, suprindo a sua maldita carência enquanto nós deveríamos estar treinando! Faz dias que não jogamos xadrez e não era esse o motivo pelo qual começamos a conversar? EU ACABEI DE PERDER UM DIA DE TREINO PARA DESCOBRIR QUE VOCÊ ESTAVA ME ENGANANDO TODO ESSE TEMPÓ!

— É SEU ANIVERSÁRIO!

— NÃO FAZ DIFERENÇA, MEU PAI NÃO VAI SE IMPORTAR SE ERA OU NÃO MEU ANIVERSÁRIO QUANDO EU CHEGAR EM CASA COM UMA DERROTA! — Matheus respirou fundo, o rosto vermelho como um pimentão. — Pare de achar que entende, pare de ser tão bonzinho, pare, simplesmente pare com isso! Você não é essa boa pessoa que você quer fazer todo mundo pensar que é, ok? Simplesmente pare! Você não entende a pressão que eu sofro, não entende o que eu quero fazer, não entende toda essa MERDA DE FRUSTRAÇÃO que eu sinto, então pare de fingir que sim!

Ninguém disse nada por um momento, o segundanista abraçando a si mesmo com braços apertados, balançando para frente e para trás e parecendo simplesmente desconsolável, tão desconsolável, que o coração de Davi se derreteu; ele caminhou para suavemente na direção de Matheus, estendendo a mão para tocá-lo, querendo abraçá-lo, querendo desesperadamente protegê-lo de si mesmo.

— Não me toque. — O garoto recuou um passo, a expressão cheia de nojo, a voz baixa e transbordante de um desprezo que penetrou Davi como uma faca. — Seu maldito gay encubado. Eu tenho nojo de vocês. Eu tenho nojo disso tudo. Você acha que vai ser alguém na vida, mas a verdade é que você, do jeito que está, não vai ser absolutamente nada. Vocês, gayzinhos, criaturinhas promíscuas, não vão ser nada da vida, porque afinal, vocês nem deveriam viver. Deviam estar todos mortos.

Davi estacou, as palavras de Matheus entrando por seus ouvidos de um modo que feria, como se cada uma delas estivesse rodeada de espinhos, aquelas palavras que ele já tinha escutado uma vez — ele ainda conseguir visualizar seu pai, o modo como o discurso do homem o fizera se encolher, o jeito como as palavras você não vai ser nada da vida tinham despertado o tipo mais frio de fúria dentro dele —, ao mesmo tempo em que uma voz, não a sua consciência, mas o eco de uma lembrança, repetia-se em sua mente, várias e várias vezes. Você prometeu que nunca aceitaria... Nunca mais aceitaria... Nunca mais aceitaria essas palavras novamente. Você vai escutá-las calado? De novo? Nunca mais aceitaria...

E nunca mais era nunca mais.

Davi parou de pensar.

Futuramente, baseado em relatos de testemunhas, o garoto conseguiu reconstituir o que tinha feito; mas na hora, no calor do momento, tudo o que ele conseguiu relembrar foi o barulho dos socos e o prazer que ele estava sentindo com aquilo, em socar sua raiva, em socar aquela pessoa — na hora da raiva, os rostos de Túlio e Matheus se misturaram, de modo que ele se via batendo em algo indefinido, um boneco formado por seus anos de mágoa reprimida — que novamente o ferira daquela maneira. Ele teria feito aquilo para sempre, a despeito da dor em seu rosto, em seus punhos, em sua alma — porque a única parte sã que ainda lhe restava estava chorando por chegar àquele ponto, por perceber que aquilo nunca mais deixaria de causar nele aquelas reações —, se não fossem os braços que o seguraram, puxando-o para trás, e a voz exigente que soou em seus ouvidos, um grito, uma mão chamando-o de volta para a consciência. Ele aceitou.

— Pare já com isso, garoto! VOCÊ QUER MATÁ-LO?

Foi como acordar de um sonho. Davi piscou, olhando em volta, tentando se situar, mas era difícil; havia gente demais em volta deles, uma multidão de observadores curiosos que olhavam para ele do mesmo modo que olhariam para um cavalo de corrida, o que o deixou ligeiramente indignado. Onde estava? Quem eram aquelas pessoas? Os fragmentos de memória foram chegando aos poucos, pintando um quadro nada agradável que se mostrou o tipo de pesadelo mais real quando Davi olhou para o chão — Matheus estava deitado lá, o rosto inchado, sangrando, as mãos esfoladas e parecendo simplesmente acabado, mas ainda consciente e olhando para ele com os olhos mais assustados que Davi nunca mais veria em seu rosto.

Ele quis sentir pena. Quis mesmo. Mas mesmo que a briga fosse um borrão em sua memória, as palavras de Matheus ainda estavam bem claras, marcadas a ferro quente, tal como fora quando seu pai as proferira e, da mesma forma que fora com Túlio, ele não estava com vontade de perdoar.

— Ele bem que merece. — Davi dispensou as mãos que o seguravam com brusquidão, virando-se de costas e cortando rudemente a multidão que os observava. Seu presente estava ali, caído no chão, tal como Davi o largara e, embora o garoto tivesse querido jogar a caixeta no rosto do outro para lhe quebrar um dente, ou deixá-la ali para que qualquer um a pegasse, um instinto quase protetor o fez resgatar o embrulho, abraçando-o como se fosse uma âncora. — Falando que gays merecem morrer... Olhar para o próprio umbigo você não quer, não é? Seu babaca.

Davi chegou em casa se sentindo moído, arrependido, dolorido e furioso. Lançou o presente em qualquer canto onde ele não pudesse ser visto e se sentou ao computador, procurando freneticamente por algo para distrair a mente inquieta, até que enfim parou na tradução da música que Matheus lhe mostrara mais cedo, Papaoutai.

Só pode ser brincadeira...

Ao terminar a leitura, ele estava chorando.


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Notas finais do capítulo

Então... Queria dizer que eu não blindei meu telhado, cuidado com as pedras
E que eu amo a Moni
*sai correndo*
(até o próximo ~~~)