Xadrez escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 13
13.1 - O Caminho Para O Inferno


Notas iniciais do capítulo

FELIZ NATAL, GENTE!!!!!!
Esse é o meu presente especial para vocês, leitores maravilhosos. Espero que tenham muitas felicidades, ótimas festas e que o 2015 de vocês seja incrível!
SEUS LINDOS AMO VOCÊS S2

Esse capítulo, originalmente, era muito maior. Mas por consideração a vocês, eu e a Moni decidimos dividí-lo em dois, até para não ficar tão cansativo. Espero que gostem dessa parte 1 :3

ENJOY!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/503511/chapter/13

Em um futuro não muito distante, Davi não sabia exatamente se ele se arrependeria ou não daquilo — ele não era do tipo que voltava atrás, mas para tudo havia uma primeira vez, era sabido —, mas sabia que única coisa que o fazia continuar ali, encarando o visor de seu celular com uma antecipação anormal, era justamente a sua incerteza sobre a idiotice do que estava fazendo. Era normal alguém contar os segundos para um acontecimento que não mudava a própria vida em absolutamente nada? Os minutos pareciam estar se passando com uma lentidão desnecessária enquanto o garoto esperava, suas piscadas parecendo durar uma eternidade, ao mesmo tempo em que nunca preenchiam os minutos restantes para o momento que ele esperava; faltavam dois minutos para a meia-noite do dia vinte de setembro de dois mil e quatorze e tudo o que Davi queria era que o aniversário de Matheus chegasse oficialmente logo, para que ele pudesse finalmente enviar a mensagem que tinha escrito e ir dormir.

Não uma grande mensagem... Só uma mensagem, ele repetiu para si mesmo pela milésima vez nos últimos cinco minutos. O tipo de mensagem que todo amigo envia para o outro em uma data especial, reafirmou, como uma espécie de mantra, embora não tivesse muita certeza se era comum receber, de um amigo não muito próximo, uma mensagem de aniversário contendo uma retrospectiva completa de todos os momentos memoráveis da relação até o estágio atual. Guilherme, pelo menos, nunca tinha recebido nenhuma, e Davi estava plenamente consciente de que onze anos de amizade rendiam um retrospecto muito mais interessante e encorpado do que aquele que ele estava prestes a enviar para o amigo, recontando aqueles magros seis meses — e era até meio engraçado pensar nisso, porque a relação de Davi e Matheus tinha começado da pior maneira possível e, mesmo em dias atuais, não era exemplo de nada para absolutamente ninguém. Por que ele tinha se sentido bemescrevendo aquilo? A resposta não tinha sido encontrada, mas, em um nível não exatamente consciente, as possibilidades o estavam assustando como o diabo.

Onze e cinquenta e nove. Tem alguém segurando o relógio? Está passando muito devagar! Ele se remexeu na cama, apertando o celular com força entre seus dedos, preocupado que o aparelho pudesse queimar; estava anormalmente quente em seus dedos, mesmo considerado o calor normal que emitia quando estava carregando. Ah, mas agora você não queima não, celular, pode queimar meia noite e um, mas não pode queimar agora. Eu te quebro se você queimar. Davi piscou. Era impressão sua ou tinha acabado de pensar algo completamente sem sentido? Não que fosse culpar a si mesmo; estava morrendo de sono, acordado unicamente por causa de Matheus e daquela mensagem estúpida, mas, mesmo assim... Ah... Só não quebre, ok? Eu realmente preciso enviar essa mensagem... Meia-noite!

Ele deslizou o dedo pela tela ansiosamente, abrindo a mensagem gigantesca que tinha deixado salva nos rascunhos, especialmente para aquele momento, e a releu pela última vez. Aquilo estava ridículo e, se Guilherme estivesse ali, lhe daria um tapa na cabeça para que parasse de agir como um idiota, mas Davi não estava se importando muito; fosse o sono ou qualquer outra coisa, no fim, queria que Matheus lesse aquilo. Ele podia até mesmo imaginar a expressão que o garoto faria, porque, nas últimas semanas, tinha ficado craque em observar e decorar as expressões e reações de Matheus a todo tipo de minúcia — ele provavelmente leria o texto com o nariz franzido e, no fim, reviraria os olhos, como quem diz joguei pedra na cruz, só pode — e saber que conseguia idealizar Matheus com tais detalhes o encheu de um tipo estranho de orgulho. No fim, tudo aquilo só tornava a realidade ainda mais tangível; o dia do aniversário do amigo tinha finalmente chegado, depois de semanas correndo atrás de um presente e de preocupações idiotas sobre aonde iriam, o que fariam, como comemorariam... E Davi não fazia a menor ideia do que esperar.

Davi se deitou na cama enquanto o símbolo de enviado aparecia na tela de seu celular, pensativo a respeito de suas próprias expectativas; a ideia de comemoração para o dia seguinte era um passeio divertido por algum shopping que eles tinham prometido decidir na hora, onde jogariam boliche e algum paintball. Se possível, caminhariam pelo shopping sem nenhum compromisso, faliriam a praça de alimentação e assistiriam a algum filme. Se sobrasse alguma animação, ainda havia um leve plano de irem até a Savassi fazer bagunça em algum barzinho, mas ele não dava aquilo como certeza — na verdade, Davi não conseguiria dar nada como certeza nas horas que se seguiriam. Aquele passeio podia parecer despretensioso, mas despretensão era tudo que não podia definir o cenário; ele e Tábata tinham passado duas semanas planejando cada detalhe daquela tarde, de forma que tudo funcionasse bem, silenciosamente unidos pelo objetivo de dar a Matheus um dia completamente livre de problemas.

E ainda assim, ele conseguia imaginar complicações; dezenas delas, se fosse sincero consigo mesmo.

Inquieto, Davi se revirou nervosamente na cama. Aquilo não podia deixar de incomodá-lo, porque, tal como Tábata, ele tinha realmente se esforçado para pensar em um programa democrático que agradasse aos quatro — Matheus, Tábata, Guilherme e Davi — ao mesmo tempo em que fosse comemorativo o suficiente para o segundanista e todos aqueles problemas, subitamente brotando em sua mente, estavam minando seu sono.

Nós pensamos num programa alternativo para um dia de chuva? Davi encarou o relógio. Meia noite e meia. Não pensamentos em uma logística para o caso de o trânsito estar ruim... Uma e dois da manhã. E a programação do cinema? Eu sei que checamos, mas e se os filmes não o agradarem? Eu tenho certeza de que a Tábata disse que conhece o gosto de Matheus para filmes, mas... Duas e quatorze da manhã. Caramba, em qual shopping nós vamos? A gente disse que ia discutir isso na hora, mas e se realmente render uma discussão, algo como uma briga? Não seria bom, ia estragar o dia... Três e quarenta e três da manhã. Ah... Será que ele vai gostar do presente que eu comprei para ele? Quer dizer, eu conto com isso, porque passei semanas procurando por algo legal, mas, e se... Quatro e cinquenta e seis da manhã. Cacete, e se ele achou minha mensagem melosa demais? Ela ficou melosa demais, eu sei que ficou, mas... Mas... Cinco e meia da manhã. Será que eu estou mesmo apaixonado por ele? Quer dizer, eu já admiti para mim mesmo que gosto dele mais do que deveria, mas já admiti que sentia algo como isto até mesmo pelo Jonan gringo que conheci na boate dois anos atrás e nós só conversamos cinco minutos antes de nos beijarmos, mas... E se eu estiver? Isso não vai dar certo. Seis e oito da manhã. E se ele estiver notando o jeito que eu tenho olhado para ele? Eu sei que não sou discreto, não consigo ser... E se ele decidir brigar comigo por causa disso? E se o dia for uma merda? Sete e quarenta e nove. E se eu simplesmente não for?

Ele se levantou bruscamente da cama quando o relógio bateu oito horas da manhã, em ponto, mesmo que, depois da onda violenta de vertigem que o acometeu, tivesse admitido que um levantar tão ríspido não fora uma boa ideia. Chega de pensar. Parado, a mente funcionando de forma meio lenta depois da forte descarga de pensamentos que tinha processado em tão pouco tempo, Davi encarou o ponteiro dos segundos dar várias voltas completas, os olhos hipnotizados pelo movimento de forma até mesmo infantil. Havia um pensamento no fundo de sua mente, nadando para chegar à superfície, mas seu cansaço mental o impediu de se manifestar propriamente até que, finalmente, a compreensão lhe veio, naturalmente e de forma arrebatadora: ele tinha acabado de perder sua noite de sono — seu sono sagrado, que ele defendia com unhas e dentes — com uma profusão de pensamentos inúteis, que, no fim, tinham convergido para a mesma questão que o vinha torturando desde que Guilherme tocara no assunto. Estava apaixonado por Matheus, afinal? E se estivesse, o que o garoto pensaria disso? Qual seria o tamanho da merda gerada? Ele não queria pensar.

Preciso me levantar. Decidiu, enfim, porque era a única decisão sábia a se tomar naquele momento. Me levantar, tomar um café e ficar apresentável até uma hora da tarde... Ou eu não vou nesse passeio. Simples assim. Iria com certeza impedir todos os problemas nos quais eu pensei. Ele imaginou a expressão chateada de Tábata e gemeu. Ok, iria me trazer outros mas...

Ele ignorou a conclusão do pensamento com um aceno debochado para si mesmo, e foi naquele momento em que Davi percebeu que realmente não estava legal — pessoas normais não conversavam com elas mesmas por pensamentos, muito menos usando gestos. Sentindo a cabeça doer com o peso da ressaca, ele se levantou da cama, lentamente, e caminhou para fora do quarto, o rosto de Marta em sua mente como um farol; ela era sua única chance de ressurreição naquele momento, com seu extenso conhecimento sobre chás e outras coisas de procedência desconhecida que a mulher carinhosamente apelidava de “levanta-defunto”. Devia ter alguma coisa para ele ali. Afinal, se ela consegue levantar defuntos, um zumbi não vai ser grande problema...

Davi precisou andar mais cinco passos até se dar conta de que defuntos e zumbis eram basicamente a mesma coisa, porém em circunstâncias diferentes — e no exato momento em que a percepção lhe assaltou, ele quis sinceramente bater em si mesmo. Sua própria sorte era que ele estava sem forças; o caminhar até a cozinha estava sendo feito de forma lenta, os pés se arrastando no chão em passos quase fúnebres, e parecia que alguém havia esticado sua casa de propósito, apenas para vê-lo sofrer. O caminho para a cozinha deveria levar no máximo dez segundos e ele já estava há quase cinco minutos naquela odisseia... Onde estava aquela maldita porta? Começou a lançar xingamentos aleatórios pelo ar, apenas pelo prazer de xingar, e, distraído na brincadeira, não notou que finalmente tinha chegado à cozinha e à porta que estava procurando...

Davi parou um exato segundo antes de bater o nariz contra a madeira.

Porra Matheus, olha o que você faz comigo! Ele encarou a porta por um momento muito longo, como se ela fosse a coisa mais interessante do mundo, ainda meio chocado com o fato de que quase tinha trombado com aquilo — poxa, ela tinha quase dois metros de altura e nem era transparente! — antes de escorar a cabeça na madeira e respirar fundo. Eu não sirvo para ser um insone, não nasci para essa vida, Deus me ajude. Desorientado, o garoto piscou várias vezes, tentando encontrar a coragem para se desencostar dali e entrar na cozinha, o que não estava se mostrando algo muito fácil; a posição, apesar de desconfortável, era melhor do que a sua caminhada insegura pela casa, que tinha se mostrado um tipo bem interessante de tortura.

A verdade é que ele não queria encontrar Marta. Ele sabia que ela nunca ralharia com ele pela noite mal dormida, afinal, não era mesmo culpa dele, mas sabia que ela tentaria sondar o motivo da insônia, coisa que ele mal estava preparado para assumir para si mesmo; quanto mais para os outros. Contudo, à medida que os minutos se passavam, seu pescoço começando a doer, ele decidiu que precisava ser um pouco mais corajoso para variar e, num um único ímpeto insano, desencostou-se da porta, abriu-a de supetão e entrou na cozinha.

Isso quase lhe rendeu um desmaio, mas valeu a pena; Marta, que estava cantando sua sinfonia habitual de palavrões misturados com qualquer música que lhe viesse à mente, completamente despreparada para a invasão, pegou a primeira arma que sua mão pôde alcançar — naquela situação, uma colher de pau cheia de feijão — e se virou para a porta, os olhos cheios de uma selvageria assustada que se transformou em uma raiva aliviada assim que ela registrou o rosto do invasor.

A cena — Marta, ameaçadora com uma colher de pau cheia de feijão na mão, encarando-o como se pudesse matá-lo apenas na base da pancada — era tão hilária que, se ele estivesse em condições para isso, teria gargalhado por minutos; mas, no atual estado, só se encolheu, esperando pelo sermão que sabia que viria... E que, infelizmente, não demorou nem meio segundo:

— O que é que você está fazendo aqui, menino? — ralhou ela, largando a colher em cima da mesa com violência, aproximando-se dele com olhos perscrutadores. — Eu só te esperava depois das dez e olha que eu estou sendo esperançosa aqui, hein? Entra desse jeito e a faca que eu estou usando vai parar na tua cabeça, menino.

Davi se retraiu um pouco mais.

— Ai. — Ele colocou a mão no peito em um gesto dramático. — Me perdoe,Martita. Eu nem percebi que você estava tão concentrada...

— Como se você já não me conhecesse o suficiente para saber as horas do dia em que eu trabalho, menino. O que foi? Do que precisa?

— Preciso que você me reviva, Martita. — Sabia que estava sendo dramático, mas não se importou muito; era Marta, afinal. — Estou mal.

Apertando os olhos, Marta tirou as luvas que normalmente usava para cozinhar — as mesmas desde que Davi tinha doze anos, cheias de queimaduras e manchas, das quais Marta tinha se recusado a se desfazer por puro apego emocional — e se aproximou, encarando-o de perto com uma preocupação analítica nos olhos.

— Bem você realmente não está, me chamou pelo mesmo apelido duas vezes seguidas. Isso é um péssimo sinal. — Gentilmente, ela o pegou pela mão e o conduziu até a mesa, ajudando Davi a se sentar com uma expressão que deixava clara a montanha de perguntas que queria fazer, juntamente com a dúvida sobre ser ou não prudente verbalizá-las. — O que houve? Você está cheio de olheiras, mais até do que o normal!

— Eu... — Ele deixou a cabeça cair sobre os braços. — Não dormi. Fiquei ansioso. Por favor, não pergunte o porquê — interrompeu-a, assim que viu a mulher abrir a boca, inferindo que a intenção dela era fazer alguma indagação; e a expressão no rosto de Marta não lhe deixou muitas dúvidas de que estava certo. — Mas estou um zumbi. Você sempre fala daqueles chás... Se quiser fazer um agora, eu juro que fico um mês sem vir aqui te incomodar.

Marta não respondeu, mas Davi pôde escutá-la se movimentar pela cozinha, rapidamente, os barulhos denunciando sua atividade; água em uma caneca, a chaleira sendo ligada, o ruído dos potinhos de chá sendo abertos... Aparentemente, ela tinha entendido que a situação não era para brincadeira, porque nenhuma pergunta foi feita e Davi não pôde deixar de amá-la por isso — aquela era a Marta que tinha encoberto a sua primeira ressaca, que nunca o denunciava quando o pegava fazendo besteiras quando era pequeno (ela até mesmo o incentivava, às vezes), que fora a primeira a apoiá-lo sobre a sua sexualidade. No fim, ela o conhecia muito bem; bem até demais, se lhe perguntassem.

— Aqui está. Esse é um dos melhores. — Ela se sentou se frente para ele e lhe estendeu uma xícara fumegante, cheia de um líquido verde que soltava leves borbulhas decorrentes da fervura; não tinha um aspecto muito agradável, mas ele estava preparado para lidar com isso. — Eu sei que tem uma cara terrível. — Marta riu. — Mas é um bom estimulante. Não vai acabar com a sua ressaca, mas vai te deixar um pouco mais alerta.

Davi anuiu, sem dizer nada, e Marta bagunçou seus cabelos antes se levantar e voltar à suas tarefas. Pelos minutos seguintes, o silêncio se mostrou confortável, Davi bebericando seu chá com uma careta — aquilo realmente tinha um gosto horrível — enquanto Marta continuava a temperar o feijão, mexendo a colher de pau ao mesmo tempo em que cantarolava uma música mais suave, um sertanejo que envolvia borboletas e jardins. Era uma situação aconchegante e, mesmo depois de terminar a xícara, ele permaneceu ali sentado por um longo tempo, apenas observando-a trabalhar.

— Ué, menino — assustou-se Marta, depois de, aparentemente, dar o feijão como pronto e se virar para a mesa, arregalando os olhos ao encontrar o garoto ainda sentado lá. — Achei que você ia tomar o chá e dar linha. Vai criar raiz aqui, agora?

Davi riu suavemente, percebendo, com satisfação, que não sentia nenhuma tontura em fazê-lo; na verdade, ele todo se sentia mais animado, suas piscadas mais rápidas e os movimentos mais enérgicos.

— Não, estava te olhando trabalhar, Martilinha. Desculpa. Já vou picar a mula.

— Ah. — Ela sorriu de lado. — Agora voltou ao normal, né. Bom. O chá vai te deixar mais animado, mas não vai resolver a causa do problema... Para te impedir de dormir, imagino que tinha alguma coisa muito importante te preocupando e o chá não vai fazer o problema sumir. Enfim. Sabia que a sua mãe comentou que queria te ver hoje? Fui levar o café para ela e a gente conversou... Ah. Tchau, menino! Você está me fazendo perder tempo! Xô, xô, xô!

— Tá, tá, tá, estou saindo! — Davi abriu os braços em uma rendição simbólica e dirigiu seus passos lentamente para fora da cozinha. — Mas você disse a minha mãe... Isso quer dizer que ela está bem para receber visitas?

Marta levantou de novo a colher de pau para ele.

— Não, Davi, eu fui vê-la por telepatia, agora sai daqui!

Davi sorriu quando a porta se fechou na cara dele; não era muito difícil entender a linha de pensamento de Marta e ele agradecia a ela por isso. A mulher não havia precisado de grandes conversas para entender a causa da insônia de Davi e havia acabado de lhe fornecer um modo de resolver isso: uma boa conversa com sua mãe, coisa que, desde seus tempos de criança, sempre o deixava mais alegre e calmo. Nem sempre funcionava, claro; às vezes os dois brigavam, às vezes não havia nada a ser dito — afinal, os dois conversavam todo santo dia por telefone —, mas, ainda assim, a simples presença de Mônica conseguia lhe trazer um bocado de paz.

O que seria de mim sem a Martilita?

Lenta, mas decididamente, ele fez seus passos em direção ao quarto da mãe.

>>

Assim que entrou no quarto da mãe, como em todas as outras vezes que Davi fazia isso, a primeira coisa que o garoto registrou foi o cheiro de cânfora que impregnava todo o cômodo, que o fez sorrir levemente — a mãe adorava cânfora e era seu pedido pessoal que as enfermeiras perfumassem o quarto dessa maneira. Pessoalmente, Davi detestava cânfora — achava o aroma por demais enjoativo —, mas, toda vez que entrava, não podia negar que o cheiro era o único traço pessoal de Mônica por ali, a única coisa que tornava o cômodo um pouco mais familiar para qualquer um que entrasse; graças a ele, as paredes monocromáticas e a cama solitária no centro dos azulejos brancos ganhavam um pouco mais de brilho, desbotando a dolorosa semelhança que tinham com um quarto de hospital.

A segunda coisa que ele registrou foi a mãe.

Ela estava num de seus dias medianos, porque a vida de Mônica a partir do momento que descobrira o tumor tinha se tornado algo como uma espécie de montanha russa insana; havia dias péssimos que eram precedidos por dias bons, dias ótimos que eram sucedidos por descidas vertiginosas ao inferno e os dias medianos, que, em perspectiva, eram os dias que Davi mais gostava. No fim, eram os momentos onde Mônica ficava mais estável, ligeiramente dolorida, mas firme o suficiente para conversar e rir, duas coisas que ele pretendia naquele momento e que soube que ia conseguir assim que a mãe viu que ele estava lá e sorriu, fazendo-o sorrir de volta quase involuntariamente; porque a alegria aberta de Mônica tinha aquele efeito bom nas pessoas, aquela coisa feliz e agregadora que, por muito tempo, tinha sido o mais resistente (e no ponto de vista de Davi, o único) elo a unir os três integrantes da família.

— Davi! — Mônica disse, satisfeita, largando o livro na cama e indicando que ele se sentasse ao seu lado com alguns tapinhas fracos no lençol. — Caiu da cama, meu filho? Não são nem nove da manhã! Aconteceu alguma coisa?

Davi quis dizer que o que havia acontecido era um Matheus, por quem ele não sabia se estava ou não apaixonado, quis explicar sobre sua ansiedade e quis pedir desculpas, pois a mãe tinha pedido a ele que não se apaixonasse por Matheus, mesmo que de brincadeira, e ele via aquilo acontecendo... Mas aquelas coisas não eram relevantes. Ele não tinha ido ali para discutir nenhum problema pessoal seu de maneira profunda; não sobrecarregar a mãe com essas coisas era parte do manual.

— Alguém especial está fazendo aniversário hoje e eu acabei ficando acordado até tarde demais para dar os parabéns... — ele resumiu a história, deitando-se folgadamente ao lado da mãe, ignorando o encarar irritado que ela lhe lançou, os olhos dizendo algo como eu indiquei para você se sentar, preguiçoso, não deitar! — Acabei tendo uma crise de insônia.

Mônica se endireitou na cama, encarando-o confusamente enquanto suas mãos se dirigiam de maneira distraída para o seu cabelo, acariciando-o com dedos suaves.

— Você? — A voz tinha um toque de estranheza. — Com insônia? Você nunca me deu problema para dormir, Davi, vai começar a dar agora? Vou ter que xingar você, botar você para dormir, fazer carinho na sua cabeça, te dar umas porradas se precisar?

— Sem exagero, mãe! — rebateu Davi, tentando fingir alguma mágoa, mas não tendo muito sucesso; apenas aquele breve minuto de conversa com sua mãe já parecia ter tirado uma tonelada de pensamentos de sua mente, fazendo-o se sentir muito leve. — Foi só hoje... Não sei o que me deu. É o aniversário de dezessete anos dele, no fim, eu só estava planejando modos de deixar a coisa o mais legal possível... Ele é meu amigo, afinal.

Amigo, né? — Ela o encarou com olhos espertos. — Sei. Você com seus amigos... — Mônica se interrompeu quando ele a beliscou de leve no joelho, indicando seu constrangimento. Não eram muitas as pessoas que conseguiam deixar Davi envergonhado, mas a mãe nunca tinha perdido aquele poder e fazia questão de usá-lo sempre que se falavam; as conversas por telefone que os dois trocavam nos dias letivos de Davi sempre terminavam com o garoto constrangido, sentindo seu rosto esquentar de forma considerável. Minha linda e inconveniente mamãe. — Tudo bem, me desculpe! Não é como se eu pudesse evitar, você sabe. Mas já que você tocou nesse tema de aniversários...

Ela deixou a frase morrer no ar, intensificando os carinhos na cabeça de Davi, que estava prestes a ronronar como um gatinho; geralmente, aquele tipo de afago não lhe causava nenhuma reação muito intensa, mas, vindo da mãe, era sempre algo reconfortante e gostoso. Durante alguns minutos, ficaram naquilo, ela acariciando-o levemente na cabeça em silêncio enquanto ele apreciava o gesto, as pálpebras pesando gradualmente, até que finalmente Davi se lembrou de que havia uma conversa acontecendo ali e abriu os olhos bruscamente, olhando para cima e encontrando o contemplar apreensivo de sua mãe em cima dele. O rosto dela estava contorcido em uma careta de preocupação, como se a mulher quisesse falar algo, mas estivesse temendo alguma reação não muito positiva, e isso deixou Davi imediatamente mais alerta. Algo aconteceu...?

— Sim...? — incentivou-a a continuar, sentando-se e virando-se de frente para ela, perscrutando seus olhos; a mãe desviou o rosto. — O que foi, mãe? Tem algum problema?

Mônica não respondeu de pronto e Davi imediatamente franziu as sobrancelhas, reconhecendo a existência de um problema. A mãe não era uma pessoa particularmente difícil de ler quanto estava triste ou preocupada, seus sentimentos podendo ser decifrados de forma bastante transparente e, no momento em que ela piscou longamente, como que reunindo coragem, o garoto sentiu uma ponta de apreensão. Algo aconteceu — uma certeza dessa vez.

— Nenhum. É que eu sei que você não vai gostar do assunto. — Ela respirou fundo e finalmente o encarou, firme e decididamente. — Já que o tema da conversa é aniversário, vamos falar sobre o aniversário de seu pai. Está chegando. Já é em outubro.

O cenário da conversa mudou no exato momento em que ela pronunciou as palavras; Davi, que antes estava inclinado em sua direção, encarando-a preocupadamente — afinal, o que era sério o suficiente para causar aquela apreensão? Ele era super protetor a respeito da mãe, a poupava de todos os problemas que podia — recuou bruscamente na cama, os olhos afrontando Mônica como se ele tivesse acabado de descobrir uma traição mortal, o que não deixava de ser. Citar o pai num momento daqueles era uma crueldade, porque Davi estava ali para ter um momento bom com a mãe e não para discutir com ela; e isso sempre acontecia quando Túlio se tornava o foco da conversa.

O aniversário do meu pai. Ele fechou os olhos por um segundo. Claro. Outubro. Como pude me esquecer? Todo ano ela tenta fazer alguma coisa para nos unir, todo ano dá errado. Não seria diferente.

— Não quero ter essa conversa. — Davi recuou o corpo até se ver sentado na outra extremidade da cama, sem poder retroceder mais; abraçou os joelhos. — Você sabe o que acontece quando ele é o tema. Nunca dá certo. Eu não mudei de ideia, mãe.

Mônica suspirou, de repente se parecendo muito mais com a doente que ela de fato era, as olheiras de noites mal dormidas se sobressaindo em seu rosto cansado.

— Meu filho, já faz muitos anos. Quatro, na verdade. Eu até fui capaz de compreender sua mágoa quando você era mais novo, mais adolescente, afinal, nem eu nem seu pai fomos muito gentis com você e com a sua condição; nunca foi sua escolha, mas nós tratamos como um ato de rebeldia e eu sei que isso não foi bom. Mas mudamos, meu filho. O tempo passou.

De novo não. Ele lançou um olhar arisco e magoado para a mãe. Você sempre o defende, mãe. Pare de defendê-lo. Pare com isso. Ele está errado. Ele esteve errado lá e está agora.

— Você mudou — sibilou, fazendo um esforço descomunal para na gritar, atirando as palavras como navalhas. De repente, não sentia mais conforto nenhum; de repente, tinha quinze anos novamente, aquela mesma mágoa reprimida lhe tomando completamente o juízo. Pare de defendê-lo, simplesmente pare. — Ele não. Ele continua a mesma coisa. Me trata da mesma maneira. Você me pediu desculpas. Ele não. Ele não mudou absolutamente NADA.

— Mudou sim, mas não você não dá a ele a chance! — Mônica retrucou, gesticulando nervosamente com as mãos.— Continua agindo como um adolescente mimado, mas a verdade é que você já tem dezessete anos, Davi, quase dezoito. Seu pai tem muitas coisas a te ensinar sobre a vida, sim, e ele aprendeu muitas coisas com você também; é hora de você superar isso. Não criei um adolescente mimado e não quero um adulto mimado.

Pare de defendê-lo!

— Mimado? MIMADO? MIMADO? — Ele se levantou da cama, inquieto demais para ficar sentado, os olhos da mãe o seguindo com perturbadora frieza; o que a mãe tinha de boa, tinha de ruim para o momento de uma discussão, ele se lembrou. Ela nunca se demovia do que queria e, tal como Davi, costumava desenterrar coisas nada agradáveis, com o diferencial de que nunca, nunca, alteava o tom de voz; uma péssima pessoa para se discutir, ele sabia, mas também estava plenamente consciente de que não conseguiria voltar atrás. — Quem teve que conviver com aquilo fui eu, tá bom? Fui eu! Eu te perdoei, mas você não foi muito melhor que ele, não se intrometeu naquilo, deixou que ele falasse todas aquelas merdas e o mimado sou eu?

— É! É você! Porque eu sei que errei, eu sei que fui preconceituosa e eu fiz o que eu pude para me compensar. Eu fiz meu perdão e você o deu. Seu pai tenta, por que ele também não pode ganhar?

PARE DE DEFENDÊ-LO!

— PORQUE ELE NÃO TENTA! — berrou, sabendo que era desnecessário, que estava sendo ridículo e, principalmente, que se arrependeria, mas não conseguia parar. — ELE NUNCA TENTOU, OK? SÃO QUATRO ANOS E ELE NEM SEQUER PEDIU DESCULPAS! VOCÊ ACHA QUE EU NÃO ESPEREI POR ISSO? EU ESPEREI. ESPEREI E MUITO! PORQUE MESMO QUE NÓS NUNCA TENHAMOS DADO CERTO, ELE É MEU PAI, CARAMBA!

— E não deixou de ser. — A voz da mãe era gélida. — Você não vai ganhar nada renegando seu pai para sempre, Davi. Ele não é o melhor pai e você nunca foi o filho que ele queria que você fosse, mas no fim, nós ainda somos uma família.

— Uma família — riu ele para a mãe, a zombaria tão ácida em sua voz que ele soube que a tinha magoado no exato momento em que pronunciou as palavras; o modo como seus olhos piscaram, longamente, a respiração longa que ela soltou e o jeito nervoso como seus dedos apertaram o lençol a denunciaram imediatamente. Em uma situação normal, saber que tinha chateado a mãe o faria parar, mas naquele minuto, aquela constatação perdeu seu impacto; ele queria feri-la, queria saber que a tinha machucado. No fim, nem estava mais pensando no que dizia. — Uma família que nunca fica no mesmo cômodo, que nunca se reúne, que nunca conversa entre si, que não se importa. Você pode pensar o que quiser, mãe, mas nós não somos uma família; nós existimos para você, mas morremos um para o outro.

— Não fale isso como se eu não tivesse tentado, Davi Anchieta Montecruz, porque se alguém tentou salvar esse maldito navio, fui eu! — Com dificuldade, ela se levantou da cama também. Estava visivelmente nervosa, seu sustentar nas pernas não muito firme, mas, mesmo vários centímetros mais baixa que Davi, doente e histérica, o modo ela o encarou conseguiu deixá-lo consideravelmente acuado; eram olhos de navalha. — Todo ano eu nos junto para as ocasiões que eu posso juntar, mesmo não estando com saúde para isso, mas você foge, como o covarde que é! No fim, você não quer perdoá-lo, não é mesmo? Não quer isso. Quer dizer que odeia seu pai! Eu sei, Davi, eu juro que eu sei, que o que ele disse não é algo que se possa esquecer, mas você precisa aprender que o que foi feito, foi feito, e se a pessoa se arrepende, passou!

— ELE NÃO SE ARREPENDE!

— Ele se arrepende sim! Ele se arrepende do jeito dele! Ele tenta se aproximar. Ele está em todos os eventos que eu promovo, em todas as ocasiões em que tento nos juntar, em tudo o que tento fazer para colocar vocês no mesmo ambiente. Ele está lá! Você é que foge!

Simplesmente... Pare de defendê-lo...

— ENTÃO SE VOCÊ JÁ VIU QUE EU NÃO QUERO PERDOÁ-LO, POR QUE CONTINUA TENTANDO?

— PORQUE CASO NÃO TENHA PERCEBIDO, EU NÃO TENHO MUITO TEMPO, SEU MENINO ESTÚPIDO! — ela finalmente gritou, a voz não brava, não furiosa, mas levemente agoniada, como se estivesse desesperada para fazê-lo entender. — ESTOU MORRENDO! O QUE EU QUERO É VER MINHA FAMÍLIA UNIDA DE NOVO, DAVI! SÓ ISSO! É PEDIR DEMAIS? É PEDIR DEMAIS EU VER AS PESSOAS QUE ME IMPORTAM JUNTAS DE NOVO? MENINO, SÓ PODE HAVER UM EGOÍSTA AQUI E, NA ATUAL SITUAÇÃO, VOCÊ NÃO TEM MUITOS ARGUMENTOS PARA CUMPRIR O PAPEL, NÃO ACHA? — Mônica o encarou, os olhos apáticos, e apontou para a porta com uma lentidão decidida. — Por que eu continuo tentando? Porque eu quero. Eu quero ver vocês dois conversando de novo. Se você não me dá o direito disso, então, por favor, saia daqui.

Davi não disse nada, muito menos se moveu; era a primeira vez que aquele fato lhe afetava com tanta força e ele não esperava que fosse justamente a mãe a jogá-lo na sua cara. Era claro que Mônica não tinha muito tempo; a medicina estava fazendo o que podia para prolongar sua vida, medicamentos caros esticando-a até onde ela podia ser levada, mas não havia como evitar o fim para sempre. Em alguma hora ele acabaria chegando e Davi evitava pensar nisso ao máximo, evitava manchar seus momentos com a mãe com o pensamento de que poderiam ser os últimos, pintá-los com aquela maldita atmosfera de despedida que ele tanto odiava — mas não havia como negar isso depois de a mãe gritar as palavras daquele jeito.

O silêncio se esticou por vários minutos, estático, tenso, pesado, até que Mônica finalmente respirou fundo e se deixou cair na cama, os efeitos da descarga de adrenalina vinda da discussão já aparecendo em seu rosto, no cansaço mais profuso em seus olhos, em sua respiração ofegante, no modo como ela recostou a cabeça na cabeceira da cama e soltou o ar, como se houvesse eras que não respirava. E ao mesmo tempo em que Davi se sentiu muito velho, odiando a si mesmo por fazer aquilo com a mãe, sentiu-se também como uma criança pequena, assustada pela situação, uma ânsia de choro lhe subindo pela garganta apertada. Não foi por querer, desculpa, me desculpa, por favor.

— Me desculpa — pediu, aproximando-se lentamente da mãe. — Me desculpa, me desculpa, me desculpa, me desculpa mil vezes, mãe. Eu... nunca tinha notado... que você via a coisa por esse ponto de vista. Me desculpa. Por favor? Eu não vim aqui para isso, eu não quis machucar você, me desculpa mesmo.

Por um minuto dolorosamente longo, Mônica não disse nada, deliberadamente evitando encará-lo nos olhos, até que, com um suspiro cansado, a mulher o segurou pelos ombros, fitando-o com veemência.

— Você é parecido demais comigo, Davi. Parecido demais. E eu não vou dizer que já achei muito nobre ter todo esse orgulho que você tem. — Ela balançou-o pelos ombros para trás e para frente, fracamente, como que para acordá-lo. — Mas... O mundo não é só você. Seu pai está fazendo cinquenta anos, é uma data especial para mim e para ele e o mínimo que esperamos de você é a sua presença na festa. Você pode fazer isso?

O aperto dela afrouxou e Davi pendeu a cabeça para frente, apoiando-a no ombro da mãe enquanto estreitava seus braços em torno da mulher em um abraço frouxo. Ela cheirava a cânfora e, naquele momento, os braços dela retribuindo o abraço dele com firmeza, aquele pareceu ser o melhor aroma do mundo.

— Eu posso tentar. Eu posso prometer que vou me comportar. Eu posso — ele murmurou, contra a curva do pescoço dela, sentindo-se inesperadamente protegido —, tentar perdoar. Tentar. Está tudo bem?

— Se você fizer isso com afinco, meu bem...— Mônica beijou o topo de sua cabeça. — Eu não tenho mais nada para pedir.

>>

O lugar onde eles tinham marcado de se encontrar para iniciar o passeio era próximo de sua casa, separado dele por no máximo trinta minutos de caminhada, e Davi sabia que não deveria se preocupar com eventuais atrasos de sua pessoa; Guilherme não era um grande exemplo de pessoa pontual, assim como não o era Tábata. Contudo, completamente ignorante desses pensamentos racionais, ele fechou a porta de sua casa ao meio-dia e, ao invés de fazer seus passos em direção ao ponto de encontro como uma pessoa com uma hora de prazo faria — com calma, sem pressa de chegar, sabendo que ainda há muito tempo para gastar —, ele caminhou de modo quase desesperado, irritando-se com as calçadas cheias de pedestres de BH, mesmo sabendo que o movimento era típico dos sábados, distribuindo xingamentos aos coitados que nele esbarravam e chegando ao local do encontro com quarenta minutos de antecedência.

E como era natural de se esperar, não havia ninguém lá.

Acho que me adiantei um pouquinho. Ofegante pela caminhada intensa, Davi checou seu relógio de pulso, arregalando levemente os olhos ao ver as horas. Um pouquinho é um pouco de bondade minha... Ele se sentiu idiota. Tinha estado tão inquieto, ansioso para que a tarde acontecesse depressa, para que acabasse aquela maldita apreensão, que nem notara as horas direito; agora teria que ficar ali e esperar. Não valia a pena voltar para casa e depois ir para a praça novamente, então, rapidamente, ele girou os olhos, procurando um bom lugar para se instalar; e um banquinho debaixo de uma grande árvore pareceu ser a opção perfeita. Sem pressa dessa vez, ele arrastou os pés para seu destino, apertando o presente de Matheus com força cautelosamente desnecessária, a outra segurando seu celular com força. Isso está ficando fora de controle. Não há motivo para tanto nervosismo. É quase como se eu estivesse com um mau pressentimento.

Instalando-se no banco preguiçosamente, Davi remexeu em seus bolsos, procurando algum dinheiro para comprar qualquer porcaria comestível, e deu de cara com algo quase tão bom quanto: seus fones de ouvido. Agora eu tenho algo para fazer! Um sorriso se desenhou em seus lábios enquanto ele desenroscava os fios, um exercício que lhe custou quase dez minutos, e os encaixou nas orelhas, escolhendo qualquer música da playlist aleatória de eletrônica para começar a sessão musical — e quando os primeiros acordes de Anaconda começaram a tocar, ele se sentiu quase feliz. Tenho que ser positivo, concluiu, cantarolando o refrão baixinho, o que parecia completamente fora de contexto, mas quem se importava? Estou menosprezando meu próprio esforço e o de Tábata com todo esse pensamento negativo. A gente planejou essa tarde nos mínimos detalhes; não tem como dar errado, afinal.

A música o colocou em uma espécie de transe e Davi observou as crianças brincarem com olhos interessados. Havia uma garota que estava construindo um castelo de lama — gênia pródiga da arquitetura, pensou Davi, divertidamente — e, ao seu lado, um garoto que claramente queria destruir todo o seu serviço, a expressão em seu rosto lembrando a Davi de si mesmo em seus tempos mais juvenis. Mais distante, havia outras crianças com traços mais genéricos, que o garoto registrou apenas de leve, até seus olhos pararem num casal de irmãos — era claro que eles eram irmãos, pois a semelhança chegava ao ponto do gritante —, que inevitavelmente o fizeram imaginar Matheus e Karina.

Como será que eles são quando juntos? Davi imaginou como seria ter um irmão, como seria brigar com ele, ter que dividir coisas, ter uma companhia para os momentos de solidão; ele sempre fora o único filho e, inevitavelmente, tinha sido mimado por isso. A ideia de Matheus com uma irmã o divertia, porque Matheus tinha uma personalidade naturalmente mimada, mas uma irmã deveria tê-lo corrigido... Como seria Karina? Ela seria bonita como seu irmão, teria mesma personalidade insuportável? Provavelmente não. Não tem como alguém ser igual ao Matheus, uma pessoa idêntica a ele desequilibraria a balança da arrogância do mundo e haveria uma espécie de...

Ele não terminou o raciocínio. Houve um cutucão em suas costelas, bem no ponto onde ele sentia cócegas, e Davi praticamente caiu para trás no banco, fazendo todo um malabarismo para se equilibrar e voltar a postura ao normal; quando o fez, o casal de irmãos tinha ido embora, para junto de seus pais, e havia alguém sentado ao seu lado.

Não alguém, Davi pensou, subitamente desanimado de novo. O alguém.

— Você chegou cedo — disse Matheus, a guisa de comprimento, tirando um fone das orelhas dele para compartilhar da música que Davi estava escutando e, com uma careta, o devolvendo em um tempo quase recorde. — O que seria isto?

— Isto seria rap. Iggy Azalea, Ariana Grande... Nunca ouviu falar? — Davi pausou a música e retirou os fones, embolando-os de qualquer jeito para guardá-los novamente em seus bolsos; com Matheus ali, aquele tipo de distração não seria necessária. — Elas estão nas paradas! Você está afastado do mundo?

Matheus balançou a cabeça negativamente, uma leve careta no rosto, embora Davi pudesse jurar que havia um fantasma de sorriso em seus lábios.

— Eu escuto música de gente que tem cultura, esqueceu? — gabou-se, gesticulando convencidamente com as mãos. — Música boa. Não pop. Ainda mais pop genérico. Eca.

Davi fez um gesto amplo e floreado para as crianças que brincavam no parque.

— E aqui, crianças, vemos um exemplo de pessoa que não devemos imitar... — começou, em tom de troça, mas se interrompeu quando Matheus socou seu braço, dessa fez fazendo um claro esforço para não rir. — Ai! Isso dói, sabia? Você é magrinho, mas tem força, então pare de socar os outros desse jeito. E tem pops legais também, seu popfóbico.

— Ah... — Matheus franziu levemente as sobrancelhas em descrença. — Não tem não.

— Tem sim e eu vou te provar, coloca a droga do fone aí. — Davi desbloqueou o celular e passou a procurar na extensa playlist por alguma música que se encaixasse no que estava querendo; ele só teria uma chance de acertar. Caso a música que fizesse Matheus escutar não agradasse ao garoto, aquilo só viraria mais um motivo de troça e não era como se o segundanista precisasse de mais algum... Achei! Ele parou de descer a lista de músicas. Deve servir. — Você já está com os fones de ouvido ou eu vou ter que enfiá-los a força nas suas orelhas? Escolha sua, hein?

— Você é desnecessário — retrucou o segundanista, mal humorado, encaixando distraidamente os auriculares. — Vamos lá, me mostre o pop do ano. Estou esperando.

Davi sorriu para ele, com um toque de maldade, e colocou a música para colocar; na altura em que estava, ele pôde ouví-la explodindo para fora dos fones, a melodia suave e triste o alcançando com a mesma emoção com que o atingia todas as vezes, porque o significado da letra sempre o entristecia. Ele não tinha nenhum amor para esquecer, ninguém por quem ele tinha precisado ir ao fundo do poço para superar, mas conhecia tais histórias — elas estavam em todo lugar e aconteciam com todos os tipos de pessoas.

Matheus, durante os minutos que duraram a canção, nada fez além de permanecer parado, olhando para o nada, claramente concentrado na letra — Davi sabia que ele também podia compreendê-la —, até que, a certa altura, ele fechou os olhos; e foi aí que Davi soube que, mesmo não havendo nenhuma competição explícita ali, ele tinha vencido. O segundanista tinha gostado da música e Davi controlou seus instintos sacanas para não implicá-lo por isso, a duras penas se impedindo de fazer a dancinha da vitória mais infantil que sua memória fez o favor de desenterrar para ele.

— Isso é... — Matheus finalmente disse, retirando os fones lentamente. — Bom. Eu admito. Quem é? Quem canta?

— Que gracinha! — O terceiranista fez falsete, apertando as bochechas dele com força desnecessária; o garoto fez uma expressão feia para ele. — Eu desvirginei você em relação ao pop, me sinto feliz! Procure por essa artista onde você puder encontrá-la: Tove Lo. Stay High. Faça o favor de não escutar as remixes, você pode querer chorar por dentro.

— Mais do que eu quis chorar enquanto escutava isso? Impossível. — O segundanista fez uma careta engraçada ante a expressão de descrença que lhe Davi mandou. — Está bem. Sem mais implicâncias. Mas já que eu escutei uma música que você gosta e fui praticamente coagido a gostar dela também, quero que você escute uma que eu gosto e retribua o favor. — Ele pegou o próprio celular e encaixou nele os fones, praticamente enfiando-os à força na orelha de Davi e ignorando solenemente o resmungo insatisfeito do amigo. Por um curto minuto, nenhum dos dois disse nada, Davi sentindo-se idiota com dois fones silenciosos em suas orelhas enquanto Matheus encarava o próprio celular concentradamente, até que, de súbito, a expressão do segundanista se desanuviou em algo próximo de um sorriso. — Aqui está. Espero que goste.

Davi fechou os olhos, esperando por Bach ou Katherine Jenkins, mas o que chegou a seus ouvidos não foi nada clássico, o que o deixou mais surpreso do que o próprio caráter da música; aquilo era uma eletrônica chiclete, provavelmente cantada em francês — ele fez esforço para tentar distinguir a língua da letra, mas não ser um poliglota não colaborava muito naqueles momentos —, cujo refrão grudento, uma repetição de uma palavra que ele nem sequer sabia o significado, já estava em sua cabeça antes mesmo da canção acabar. Ele jamais imaginaria que Matheus escutava aquele tipo de música e saber disso o fez sentir como se estivesse conhecendo outra face do garoto, uma que se sentiu surpreso por descobrir que existia.

— Você não esperava que eu fosse te mostrar algo nesse estilo, não é? — troçou Matheus, lendo a surpresa no rosto dele sem que Davi precisasse de fato verbalizá-la. A música estava tocando suas últimas batidas e Davi esperou até que os fones ficassem silenciosos novamente para retirá-los, lentamente, sabendo que o segundanista o tinha pegado na questão, mas não se importando muito com isso. Quem imaginaria que ele gostava de eletrônica, meu Deus? — Ninguém imagina. Dizem que eu tenho uma cara muito clássica. Do tipo que vai à ópera e gosta.

Hm... Davi se sentiu quase mal. É isso mesmo.

— Ah... Você quer que eu faça algum comentário?

— Não.

— Bom. — O silêncio se estendeu novamente e, em sua distração, o terceiranista se pegou cantarolando a o refrão da música sem nem perceber. Parou. — Qual é o nome da música e o que significa? É francês?

Matheus deu de ombros de maneira aparentemente desinteressada, embora Davi tenha conseguido pescar ligeiros traços de satisfação em sua postura corporal; aparentemente, ele não tinha mentido quando dissera que esperava que Davi gostasse da música.

— Seu interesse me lisonjeia. Papaoutai, Stromae. Sim, é francês e não, eu não vou falar o que significa, porque eu não sou Google Tradutor e eu estou com preguiça. — Ele sorriu brevemente para a careta de Davi. — Chegue em casa e procure.

— Isso não foi muito educado. — Davi se virou para frente e cruzou os braços, disposto a não falar mais nada. As crianças ainda brincavam no parque, distraídas em sua inocência, que Davi considerava particularmente bonitinha, e o garoto se distraiu observando-as brincar, lembrando-se dos tempos em que ele mesmo fazia todas aquelas bobageiras. Costumava ser divertido. Com o arrastar dos minutos, mais casais de pais foram chegando, arrastando seus filhos pelas mãos e, ao ver novamente o casal de irmãos que o tinha feito imaginar Karina e Matheus, o terceiranista naturalmente se esqueceu de seu voto de silêncio; rapidamente, antes que as crianças novamente se perdessem de vista, ele cutucou Matheus com força nas costelas, apontando os garotos com o queixo assim que o segundanista lhe lançou um olhar rabugento e interrogativo. — Eles me fizeram imaginar você e a sua irmã.

O olhar de Matheus seguiu a direção que Davi apontava até parar nas crianças, que naquele momento discutiam de forma inflamada, e o segundanista sorriu largo dessa vez.

— Você tem uma boa intuição — comentou, sem desviar os olhos dos irmãos. — Eu e ela éramos daquele jeito. Brigávamos o tempo inteiro, por qualquer coisa; às vezes brigávamos só pela graça de brigar. Aí crescemos e ficamos civilizados... Em parte. — O sorriso se tornou maldoso. — Ela continua o mesmo retardo de sempre, a idiota.

Davi riu.

— E como ela é, sua irmã? Não consigo não imaginá-la como uma versão miniatura sua.

— Isso só prova que você não vai nem um pouco com a minha cara. Dizer que eu pareço com aquela praga é uma ofensa séria. — Matheus estremeceu de maneira exagerada. — Ela é mais baixa que eu e mais transparente também. Só que o cabelo dela é mais claro e ela é mais feia. Eu sou o filho mais bonito, todo mundo fala isso quando ela não está perto. — Havia uma entonação de implicância infantil nas palavras que, unida ao gestual convencido dele, tornou a cena bastante engraçada; Davi gargalhou para valer dessa vez. — Você ri porque não é você, né? Filhos únicos e mimados, eu mereço vocês.

— Eu não sou mimado.

— Questão de ponto de vista.

— Não sou eu que ganha tabuleiros de xadrez riquíssimos em todos os aniversários. — Davi o encarou de esguelha, que desviou os olhos de forma quase tímida, um assentimento mudo. — Falando nisso, como foi o tabuleiro desse ano? Como está sendo seu aniversário até agora?

— Ele começou bem, eu recebi uma mensagem legal de um cara aí que não tinha mais o que fazer além de ficar lembrando todas as vergonhas dos últimos meses... — O terceiranista tossiu afetadamente e Matheus se interrompeu, erguendo as mãos como quem se rende. — Ok. Recebi uma mensagem sua, dormi, não, não respondi, não me olhe com essa cara feia. Eu estava com sono! Aí eu acordei hoje, ganhei um tabuleiro de madeira importada do meu pai, além de um sermão do tipo “você vai ganhar aquele campeonato”. — Matheus torceu o nariz levemente. — Meus tios me ligaram, dizendo que eu já tenho dezessete e preciso tomar juízo. Minha avó me deu um blazer novo. Já minha mãe me deu um celular novo, porque ela é sensível às necessidades adolescentes e me conhece bem. — Ele ergueu seu celular novo vitoriosamente. — Enfim, tudo nos trinques. Estou contando com vocês três para variarem a lista de presentes, porque, sinceramente...

Vish... Davi pensou no presente que tinha ali, seguro em sua outra mão, e sentiu um arrepio de nervosismo. Ele não tinha conseguido inovar, não tinha conseguido pensar em nada criativo para dar e, repente, pensou se não deveria ter arriscado mais. Com aquela fala, era bem provável que seu presente não agradasse... Não precisa contar comigo para isso.

— Só isso? — Era muito mais do que Davi geralmente ganhava em seus aniversários, mas Matheus não precisava saber. — Você, o filho mais bonito, o mais inteligente, e ganhou só isso?

— Ganhei um autorretrato da Karina também, mas ela fez aquilo de sacanagem. — O garoto balançou a cabeça para espantar a lembrança, encarando-o com uma expressão falsamente animada no rosto. — Vamos esquecer a minha irmã, vamos falar de coisas agradáveis, tipo, o que é que você compro...

— MATHEUS! — Tábata chegou gritando, assustando aos dois, e pendurou-se no pescoço do primo, abraçando-o com força e enchendo sua bochecha de beijos. Guilherme vinha logo atrás, observando a cena com uma expressão sobriamente envergonhada e, ao ver que Davi o encarava, cumprimentou-o com um aceno de cabeça apologético, como que se desculpando pelos atos efusivos de sua namorada. — Está pronto para a melhor tarde da sua vida? Nós trouxemos presentes! Levante-se, eu preciso abraçar você direito!

Parecendo ligeiramente tonto, Matheus se levantou, tendo apenas um segundo para se estabilizar nas duas pernas antes que Tábata pulasse nele e o abraçasse novamente; seu impulso quase jogou os dois no chão, mas Matheus, em uma manobra incompreensível, conseguiu se equilibrar, sorrindo sem jeito com as palavras de congratulação que ela lhe dirigia.

— Obrigado, Tábata, obrigado, eu sei que você me ama. Sim, eu sei que eu mereço muitos anos de vida, agora me solta, você é pesada — ele acabou dizendo, seu constrangimento claramente visível no rubor leve de suas bochechas, e a prima o soltou, estapeando seu braço de leve com uma irritação caricata que não convenceu a ninguém. — Ei! Você que quase me mata sufocado e sou eu quem apanha? Não acho justo.

— O mundo não é justo. — Ela tirou um minuto para se recompor, arrumando o cabelo displicentemente e saudando Davi de leve com a cabeça, antes de se voltar para o namorado, batendo palmas como quem agita galinhas. — Mas vamos, vamos, vamos, sem tempo a perder. Eu e o Guilherme trouxemos presentes e os meus instintos de Mãe Diná dizem que você vai adorá-los! Vem cá, Guilherme, me entregue o seu pacote, eu vou entregar o meu. Davi, você trouxe, não é?

Ele bateu continência.

— Sim, senhora!

— Então vamos!

— Seus loucos — observou Matheus, tentando manter uma expressão cautelosa, não muito bem sucedida; havia claro divertimento em seus olhos. — Vão fazer o quê? Me sequestrar e me forçar a me divertir?

— Não! — Tábata hesitou. — Embora não seja má ideia... Enfim. Venha cá. Vamos te dar os abraços e os presentes.

Ela o abraçou novamente, de forma mais comedida desta vez, e entregou-lhe um embrulho pequeno, que, ao ser aberto, revelou uma camiseta com os dizeres KEEP CALM E NÃO É DA SUA CONTA. Tinha tanto a ver com Matheus que Guilherme e Davi tiraram os minutos seguintes para rirem, ignorando completamente os agradecimentos sinceros de Matheus — Nossa, isso daqui é a minha cara. Caramba, Tábata, obrigado mesmo — e o olhar irritado de Tábata, que não parecia estar achando aquilo muito engraçado.

Matheus guardou a camiseta, parecendo de fato feliz com o presente, e Guilherme se adiantou para entregar o seu. Foi uma cena muito hilária, os dois claramente desconfortáveis com a situação, evitando se encararem enquanto davam tapinhas amigáveis nas costas um do outro, e Davi acabou tendo outra crise de risos, inevitavelmente acompanhado por Tábata — o que não foi bom, porque o riso histérico da outra era mais engraçado do que a própria cena, e os dois gastaram minutos apenas na brincadeira idiota de rirem um da gargalhada do outro.

— Todos consumimos drogas hoje, é isso? —Matheus ajustou o relógio que ganhara de Guilherme no pulso, a expressão cheia de uma estranheza satisfeita. — Não precisa disso tudo, gente.

— Você ainda é um pirralho, não tem o direito de falar o que é preciso e o que não é — rebateu a prima, afiada, antes de se virar interrogativamente para Davi. — E você? Não vai entregar seu presente?

Davi não respondeu; ao invés disso, virou-se para Matheus e começou a caminhar em sua direção, sentindo uma antecipação que não deveria estar lá, os formigamentos na ponta de seus dedos fazendo-o se perguntar o que exatamente estava acontecendo. Era apenas um abraço, afinal, mas os olhos de Matheus, cravados nos seus, deixavam transparecer uma apreensão tão intensa como a que ele próprio sentia — na verdade, o segundanista parecia quase em pânico, parado em seu lugar, ansioso, mas pelo quê? —, e caramba, os dois não estavam tão distantes assim, estavam? Por que ele não chegava depressa? Ele não queria chegar, não queria relembrar aquela proximidade, porque lampejos do beijo estavam ressurgindo em sua mente e aquela mesma emoção parecia estar querendo afogá-lo novamente...

Eles se abraçaram. E sua mente, que em um momento estava quase histérica, processando milhares de pensamentos ao mesmo tempo, de repente ficou confortavelmente vazia, focada em apenas absorver os detalhes da proximidade; o perfume que Matheus tinha passado — alguma coisa amadeirada, leve e gostosa de sentir —, as pintinhas que ele tinha na junção do ombro com o pescoço, a respiração levemente superficial dele, o modo como as mãos dele tinham se apertado em suas costas. Não era suposto ser daquele jeito, era? Davi precisou de três respiradas até se lembrar de que precisava falar algo — estou aqui para parabenizá-lo, Deus! — e de mais três para encontrar as palavras, pronunciadas baixinho para que apenas Matheus ouvisse:

— Feliz aniversário. Que você viva muito, seja muito feliz, que tudo dê certo para você, você merece. — Ele virou o rosto, de modo que cada pronunciar soasse como um sopro suave na orelha de Matheus. — Seu presente, eu entrego depois. Digamos que eu não fui muito criativo, não quero a Tábata me enchendo a paciência.

Matheus estremeceu por um segundo, mas anuiu, e eles se afastaram lentamente. Havia um certo brilho nos olhos do segundanista, algo que Davi tentou captar, mas que sumiu no exato momento em que Matheus olhou para trás dele e se lembrou que havia plateia ali; coisa da qual Davi tambémtinha esquecido.

Guilherme...

— Vamos, gente? — chamou Tábata, sorrindo, parecendo não ter notado nada; e Davi ficou feliz por isso, porque ele não precisava ser nenhum gênio para saber que tinha se entregado completamente ali. — Temos um shopping para ir, alguns boliches para falir e uma tarde inteira para gastar! Vamos!

Matheus fez um gesto animado.

— Vamos!

E os dois se adiantaram na frente, o segundanista lançando uma última olhadela para Davi antes de mergulhar numa conversa com Tábata, a garota completamente alheia a tudo e Guilherme ao seu lado, os olhos recheados de acusações cravados em Davi, a mensagem silenciosa completamente clara: você mentiu para mim. E ele realmente tinha mentido, enganando a Guilherme e a si mesmo, e sabendo que não havia nada que pudesse fazer para melhorar a situação, Davi articulou silenciosamente as palavras me desculpe para o amigo, sabendo que ele as entenderia.

Guilherme deu de ombros e entrou na conversa da prima e de Matheus, calmo como se nada tivesse acontecido, mas Davi sabia, tinha certeza, apostava todos os seus anos de amizade nisso: aquilo não ia passar barato. Ele ia ter que se explicar. Mas como dar esclarecimentos para seu amigo superprotetor quando você não consegue se explicar nem para si mesmo?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Agradecimentos à Moni, rena do meu trenó, Papai Noel da minha ceia, linda linda s2
Luto pela Ann Profecy, uma das minhas primeiras leitoras que excluiu a conta. Você está no meu coração, viu?

Novamente, feliz natal para vocês, lindos, e até o próximo capítulo! Beijos!