Xadrez escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 12
12 - Pois Há Perguntas e Há Respostas


Notas iniciais do capítulo

*olha para os lados e entra de fininho*
OLÁ, GENTNEY!
Eu sei que eu tô mega atrasada, mas EU TENHO UMA DESCULPA! o/
NA verdade, são duas.
Outubro foi um mês horrível. Eu simplesmente enjoei de Xadrez, não queria escrever nada, sofri mesmo, e tanto eu quanto a Moni prestamos ENEM, então foi uma coisa meio corrida para as duas. Mas aqui estou eu, eu não vou desistir disso aqui e espero que me perdoem pelo atraso, eu não fiz de propósito '-'
Quero agradecer pelos leitores novos que comentaram nesse meio tempo, eu adoro receber leitores novos e eu fiquei tão feliz por vocês! Também vou agradecer à Gloria San PELA RECOMENDAÇÃO LINDA *-* Sua maravilhosa, me deixou muito feliz, viu?
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Dada as desculpas e os agradecimentos, esperando que vocês não estejam muito bravos, aqui está o 12! Espero que gostem. :3



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“Eles estavam no telhado do Vespasiano, outra vez — depois de tanto tempo passado lá, o lugar era praticamente deles, o único onde sabiam que podiam ter um pouco de paz — e havia uma atmosfera tão boa em estar ali, na escuridão, apenas ouvindo a respiração um do outro, e nenhum dos dois ousava fazer grandes movimentos. William apenas observava o céu abarrotado de estrelas até se perder de vista, os dedos se movendo lentamente em uma carícia suave pelo cabelo de Davi, que, deitado em seu colo, encarava as costas de suas pálpebras fechadas, uma expressão branda no rosto.

Ele está transformando meu cabelo em um ninho de mafagafos, pensou, e embora aquilo normalmente fosse gerar uma leve discussão, naquele momento só fez Davi sorrir; em ocasiões como aquelas, tudo parecia certo, não havia nada para se duvidar, o mundo parecia tão grande, cheio de oportunidades e caminhos, ao mesmo tempo pequeno demais, ao ponto de eles só caberem nele muito juntos... E essa hipótese não deixava Davi nada desagradado. Não quando estamos assim; tudo é muito fácil quando estamos desse jeito, bem um com o outro, sem brigar, felizes com o que estamos fazendo...

Era uma pena que aqueles momentos estivessem se tornando cada vez mais raros.

— Você está calado — observou, sabendo que aquilo era algo idiota para se dizer, ao mesmo tempo em que sabia também que não seria condenado por nada que saísse de sua boca. — E isso nunca acontece, porque você sempre tem algo para dizer. Tem algum milagre acontecendo?

— Parecia antirromântico falar alguma coisa. — William parou o movimento em seu cabelo por um instante antes de recomeçá-lo, de outra forma desta vez; Davi sentiu-o escolhendo cachos aleatórios em sua cabeça e os puxando sem muita força, apenas pelo prazer de esticá-los e senti-los retornar ao estado original, como pequenas molas. — Você não tem sensibilidade nenhuma, matou o clima.

— Ninguém liga. — Davi se virou no colo do outro e abriu os olhos, encarando o borrão acima dele; não havia iluminação no telhado e o rosto de William era apenas uma silhueta distinta contra todas aquelas estrelas. Cegamente, ele levantou a cabeça para beijar o namorado, rindo quando eles esbarraram os narizes de forma desastrada antes de se acertarem; tinha algo de reconfortante no beijo, que o garoto sempre associava a William, e era bom. — Viu? Acabamos de ressuscitá-lo.

William riu baixo.

— Seja bem vindo de volta, clima!

— Agora quem o matou foi você. — Davi piscou na escuridão. Estava com tanta preguiça... Podia ficar ali para sempre. — Assassinos de clima, os dois. Que nome bonitinho para um casal.

Ele escutou o namorado suprimir um resmungo.

— Não zombe — advertiu, se inclinando para mais um beijo, que Davi aceitou de bom grado. — Você sabe que você é a pessoa que eu mais gosto no mundo, não sabe?

Não... Davi sentiu como se houvesse gelo correndo em suas veias, levando embora toda a atmosfera de conforto do lugar para substituí-la por um sentimento de prisão — porque toda vez que William se expressava daquela maneira, tão franca, ele se sentia mais e mais longe da liberdade com a qual sonhava, ao mesmo tempo em que se sentia um lixo por enganar o outro. Você não pode gostar de mim desse jeito... William podia usar quantos eufemismos quisesse, mas Davi enxergava o que o garoto achava que sentia, podia vê-lo no fundo de seus olhos e a pior coisa do mundo era admitir para si mesmo que não gostava do que via. Você não pode achar que me ama, William.

— Sei — ele respondeu, a voz apática porque jamais poderia dizer o mesmo, jamais poderia retribuir aquilo de fato... E não merecia William algo muito melhor do que aquelas meias verdades? — Acredite em mim, eu sei.”

Davi piscou para afastar a memória enquanto se desviava rapidamente de uma intrincada teia de aranha — o caminho para o telhado sempre havia sido cheio delas, ele conseguia se lembrar, mas depois de anos sem ninguém para utilizar aquelas passagens, as aranhas provavelmente tinham achado que era momento para festejar. Talvez fosse; ele não conseguia dar atenção para aqueles detalhes naquele momento, atento demais em se lembrar de quais tábuas rangiam, de quais delas estavam soltas, de quais degraus da escadaria não eram confiáveis e de parar para espirrar, pelo menos uma vez a cada duas passadas — os ácaros estavam destruindo seu sistema respiratório com a determinação de um exército de guerra. Eu não deveria estar aqui, pensou, gemendo quando nenhuma parte subconsciente sua discordou dele; era fato, a única coisa que ele não deveria estar fazendo era estar ali.

O terceiranista passara o dia todo, desde o momento em que Marcelo o avisara sobre o convite de William, pensando se deveria ou não comparecer ao “encontro no telhado” — ele o ex não tinham mais nada para conversar e, embora Marcelo estivesse certo em dizer que o término não fora feito em bons termos, Davi não tinha mais nenhuma vontade discuti-los. Na época, ele tinha repassado aqueles argumentos milhares de vezes, dissecando-os tantas vezes que, mesmo anos depois, podia repeti-los de maneira quase mecânica, mas de que adiantava? Não sabia o que William queria e por diversas vezes no dia disse a si mesmo que não queria descobrir, mas ali estava ele, refazendo o caminho que seria automático para ele anos atrás, desenterrando todas aquelas lembranças e sentindo saudade; porque quando terminara com William, Davi não só abrira mão do namorado, mas também de todas aquelas outras coisas que o tornavam o Davi que o ex tinha pensado amar, a fim se tornar uma pessoa completamente nova. E embora não se arrependesse, certas coisas não podiam simplesmente ser esquecidas.

Eu estava me lembrando da última vez que estivemos juntos sem brigar. Davi chegou ao sótão do prédio e segurou um espirro enquanto procurava o alçapão que levava ao telhado. Depois eu simplesmente surtei e não deixei o coitado em paz até a gente terminar. Suas mãos alcançaram o trinco e ele abriu a passagem rapidamente, içando o corpo para cima com dificuldade enquanto segurava outro espirro. Mas, se eu pensar bem, eu nunca poderei dizer que senti tanta falta dele como senti disso aqui... Será que isso faz de mim uma pessoa ruim?

Estava na cobertura. Era a parte mais simples do prédio, sem nenhum grande luxo para decorá-la; ali havia apenas o telhado, alguns itens de limpeza e toda a vista que o lugar oferecia, tanto de baixo, de todas as imediações do colégio, como de cima, o céu sem fim, levemente nublado naquela noite de agosto. Naquele momento, também havia William, sentado na borda do telhado, o lugar onde tantas vezes Davi tinha pensado em se jogar no infinito apenas para provar do gostinho da liberdade.

Eu era patético; na verdade, pensando bem, não mudei nada, continuo dramático. Davi respirou uma grande golfada de ar puro, aliviado por abandonar o ambiente empoeirado do andar de baixo, mas os ácaros remanescentes em seu nariz não pareceram muito felizes com o ato e ele espirrou várias vezes.

Dramático e alérgico, concluiu, quando a crise terminou. E atualmente, prestes a enfrentar uma conversa com um ex-namorado que não parece muito feliz por ter sido chutado. Bem, lá vamos nós...

— Saúde — disse William, sem se virar para ele, a voz soando surpreendentemente apática. — Parece que alguém continua alérgico. — Ele lançou-lhe uma olhadela por cima do ombro. — Olá.

— Amém e olá. — Davi caminhou com cuidado pelo talhado até estar do lado do ex-namorado, onde se sentou cuidadosamente, hesitante sobre o que falar. Devo ser simpático ou direto? Eles estavam numa situação onde a simpatia era perfeitamente justificável, mas Davi não tinha paciência nenhuma para rodeios, nunca tivera... Serei direto. — O que você quer comigo, William?

O garoto sorriu como se já esperrasse pela pergunta, curto e sem qualquer humor, e Davi aproveitou seu olhar distante para absorver sua aparência; William não tinha mudado nada. Usava o mesmo corte de cabelo, mantinha os mesmos braços musculosos, peito largo e o semblante continuava o mesmo de que Davi se lembrava; algo simples, que trazia uma sensação de casa e conforto, ao mesmo tempo em que digno, forte e atraente. A única mudança notável era o modo como o tempo havia polido seus traços, deixando-os ainda mais angulosos, fazendo-o parecer mais um homem de vinte e poucos anos do que o adolescente que ele de fato era.

William sempre foi bonito e sempre destoou muito de mim em tudo, concluiu o terceiranista, com certa resignação. E eu o tive, mas não quis, porque ele achava que me amava e eu não podia lidar com isso. Acho que ainda não posso. O que nos traz à questão... Davi piscou. O que ele quer comigo, Deus? Eu acabei com ele no dia em que nós terminamos, a única coisa que ele pode querer é um...

— Por que, Davi? — perguntou William, ainda sem encará-lo, a voz ondulando perigosamente. Está nervoso, reconheceu o terceiranista, pescando a informação das profundezas de sua memória. Ele fica assim quando está nervoso. — Quer dizer... Eu fico tentando entender porque você disse aquele monte de merda para mim e você sabe que eu não tenho paz enquanto não consigo uma solução para um problema. — O garoto o encarou finalmente, os olhos cheios de uma raiva cuidadosamente contida. — Por que você falou aquilo tudo? Fiquei tão preocupado, sentindo nojo da sua cara nos últimos três anos que nunca tive a cara de pau de perguntar.

Bem, pelo menos, ele continua sincero.

— Por quê? — Davi respirou fundo. — Porque eu quis dizê-las. Nós não íamos dar certo de qualquer jeito, William... Vivíamos brigando, não sabíamos resolver nada na base da conversa e não adianta, William, amassos e sexo não são a solução para relacionamento nenhum.

William soltou a respiração como se tivesse levado um tapa.

— Eu sei, Davi, eu sei, mas — suspirou — eu sabia o que eu sentia. Eu realmente gostei de você.

Não, você achava que gostava de mim e foi por isso que eu te chutei, pensou Davi, com certo pesar. Eu sou estranho. Todo mundo quer alguém que te ame e, quando eu arranjo alguém, jogo a pessoa fora justamente por isso... Eu quis que você se machucasse quando terminei com você, falei um monte de coisas só porque sabia que eram coisas cruéis e aqui estamos agora... Para começar tudo de novo. Por que você é tão masoquista, hein, William?

— Eu não te amava, nunca te amei — mentiu o terceiranista, proferindo as palavras da pior forma que conseguiu. — Eu queria experimentar coisas novas, você sempre foi parado demais, muito lerdo, muito lento... — Ele forçou os lábios a um sorriso sarcástico. — Não dava.

— E por que dizer tudo aquilo?

— Porque senão você ia voltar e eu teria que dizê-las de novo — proferiu, docemente. — E não é o tipo de coisa que se diz duas vezes, não é?

William ficou em silêncio por um minuto, o rosto contorcido em uma careta péssima, e Davi não pôde deixar de rir internamente. As reuniões do comitê esse ano vão ser ótimas! O Marcelo vai adorar saber que, ao invés de fazer o cara gostar mais de mim, eu simplesmente vim aqui e disse outra penca de besteiras para o coitado; definitivamente, o tipo pacifista não é comigo...

— Eu conheço você — disse o ex, enfim. — Sei que está mentindo. Não posso fazer você falar, mas posso garantir que nenhuma dessas desculpas cola comigo. — Os olhos de William cintilaram com um brilho quase gentil. — Você sempre foi um mala-sem-alça, Davi; não mudou nada, mesmo.

— Não, não mudei... — Não chegou a terminar de falar; William se curvara num gesto lento, quase lânguido e, prestes a beijá-lo, ele descobriu a si mesmo permitindo que acontecesse. Não foi nada comprido, muito menos envolvente, mas Davi conseguiu sentir o eco do sentimento de conforto que o beijo costumava lhe trazer e percebeu que sentia saudade; do namoro, daquela época, do porto seguro que William costumava representar para ele e do William. O William que o tinha ensinado tanto, mas que Davi não tinha sido grato o suficiente para reconhecer. Quando os dois se separaram, o terceiranista estava se sentindo quase doente. —... Nada. Não mudei nada.

— Noto que não. — William sorriu. — Mas acredite, eu mudei, e muito. Vamos conviver pelos próximos meses na droga do comitê, Davi, e eu aviso desde já que vou fazer da sua vida um inferno.

— Entre na fila, jovem — disse Davi, suprimindo uma estranha vontade de rir. Matheus chegou seis meses na frente, né, você está meio atrasado. — Vamos ver até onde vai o seu ódio, moleque.

— Eu não odeio você. — William se levantou e espanou a poeira da roupa com um movimento ágil de mão, bagunçando os cabelos do ex-namorado com a outra. — Só... Acabou, não é? Fiquei três anos te evitando, não fiz nenhuma birrinha pós-fim-de-namoro, agora é a minha hora de ser tão infantil quanto eu quiser.

— Acabou faz três anos e agora você vai fazer birrinha?

— Não, Davi, seu estrupício — disse William, como se outro tivesse cinco anos. — Só acabou agora, porque só termina quando eu digo que acabou. E agora... Acabou. — Ele sorriu de forma brilhante enquanto caminhava para a saída do telhado. — Tchau, toupeira, até amanhã e prepare o espírito... Você pode precisar.

Davi não respondeu e não parecia que William estivesse esperando por uma resposta; o terceiranista fechou os olhos enquanto o ex-namorado saía do telhado e apertou as pálpebras com mais força quando o barulho do alçapão se fechando ecoou suavemente, denunciando que ele estava completamente sozinho. Era uma sensação boa, estar ali depois de tanto tempo apenas com o céu, a brisa e os seus pensamentos, e ele aproveitou a suavidade da ocasião para relembrar a conversa; tinha saído melhor do que ele esperara, muito melhor. Claro, ele não esperava por aquele beijo, mas...

Aquele beijo, repetiu, tentando processar as sensações que William tinha lhe causado; realmente, como um ósculo podia ser ao mesmo tempo tão nostálgico e tão sem sal? Sem querer, ele reviveu o beijo com Matheus, o modo como eles nem mesmo tinham tocado as línguas, o calor que aquele simples tocar de lábios lhe causara — e involuntariamente, aquela sensação se repetiu, um arrepio forte de saudade e desejo ao mesmo tempo.

Merda. Ele levou a mão aos lábios, quase como se estivesse se repreendendo. Mil vezes merda e mais algumas mil de brinde.

— Matheus, por que você fez isso? Você sequer tinha consciência do que estava fazendo? Foi algum tipo de vingança? Que droga!

Mas não havia Matheus ali, só havia o silêncio, e ele deixou que o eco de suas perguntas se dissipasse sem dizer mais nada; teria que encontrar as respostas sozinho.

De certa forma, é sempre isso que eu tenho que fazer, não é mesmo?

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— Então terminamos tudo por hoje? — perguntou Bruno, voz representante do comitê nas discussões, não parecendo muito preocupado em esconder o cansaço evidente de suas feições, o que Davi pensou ser perfeitamente justificável; não devia ser fácil gritar contra uma multidão de alunos furiosos que simplesmente não sabiam o significado da expressão “calar a boca”. — Alguém mais tem alguma coisa a dizer?

Eu tenho muitas coisas a dizer. Davi encarou o rosto de William, que, do outro lado da mesa, mantinha uma expressão maldosamente satisfeita. Mas nenhuma delas para você, seu coitado.

— Não — disseram todos, quase em uníssono. — Acabamos por hoje.

Bruno deu um suspiro aliviado.

— Ótimo, estão liberados. — Ele não disse as palavras “graças a Deus!”, mas, pela sua expressão, foi quase como se elas houvessem sido gritadas. — Até daqui a dois dias. Tchau.

Quase no mesmo instante em que o garoto proferiu a frase, houve um ruído quase único de cadeiras se arrastando, e todos os membros do comitê se levantaram, prontos para irem embora. Alguns ficaram parados, esperando por seus amigos, conversando baixo, mas Davi decidiu que não estava com toda aquela paciência; correu para a porta com certo desespero, sentindo que, ao fechá-la (com força) estava deixando um oceano de estresse para trás. Como podia uma única sala deixá-lo tão amolado ao ponto de ter dores de cabeça à noite por causa da irritação? Já conseguia sentir os primeiros espasmos da dor, se espalhando por sua testa e têmporas, fazendo-o franzir os olhos para tentar contê-la...

Não é a sala, é William, corrigiu a si mesmo, respirando fundo enquanto caminhava pelo corredor. É ele, que esqueceu completamente o significado do termo “bom comportamento social”, que está me deixando desse jeito... Tomara que na próxima reunião o desgraçado acorde com uma febre dos infernos e fique o dia inteiro de cama; assim ele não aparece.

Ele piscou, sentindo-se um pouco culpado; parecia cruel desejar coisas ruins para William, mas Davi jamais imaginaria que, quando o garoto dissera que iria infernizá-lo nas reuniões, estava falando tão sério. O ex-namorado, aparentemente, tinha se especializado na arte de contestar Davi em tudo o que ele dizia, refutando cada frase do garoto com um prazer perverso, claramente se divertindo em desvalorizar todas as sugestões do terceiranista para o grupo e, mesmo que Davi dissesse a si mesmo o tempo inteiro para não se importar, não conseguia negar o fato de que William estava tirando-o do sério.

Talvez eu libere um feromônio que torna todas as pessoas ao meu redor criaturas insuportáveis, que desperta em cada macho nojento o desejo insuportável de me irritar... Teorizou distraidamente. Porque isso tem que ter uma explicação plausível, por favor!

Davi acelerou o passo. Naquele momento, no ápice do estresse, a única coisa que queria era ir para um lugar onde o risco de encontrar William fosse bem próximo de zero por cento e, reconhecendo que não tinha muitas opções, acabou dirigindo seus passos para a biblioteca; ninguém o procuraria lá, porque o prédio era praticamente um repelente natural para gente chata e pensar nisso quase fez o garoto sorrir... Quase. Estava até se sentindo mais animado, pensando no livro que (re)leria naquela ocasião, quando chegou à borda do pátio e parou, percebendo, com um sentimento próximo do humor cruel, que estava chovendo lá fora — e que, dado a sua óbvia falta de um guarda-chuva, teria de se molhar. Praguejou alto.

Me falta pensar em uma maneira de esse dia ficar pior...

— O que você está fazendo aqui? — Matheus se materializou ao seu lado, observando a chuva que caía, o cenho franzido. — Xingando o nada como um idiota.

Bem, agora não falta mais. Davi fez uma careta que ele imaginou ser horrorosa enquanto se virava para o garoto, encarando-o com um olhar mortal, não se surpreendendo muito quando Matheus lhe sustentou a contemplação com olhos igualmente dignos. Ok, destino, isso já é sacanagem, sinceramente...

— Atualmente, estava xingando a chuva — corrigiu-lhe Davi, desviando os olhos, sem paciência para qualquer implicância. — Porque eu quero chegar à biblioteca, vou me molhar e não há lei federal que me obrigue a ficar feliz com isso.

— Ai, que mau humor. — Matheus deu de ombros, nem um pouco afetado. — Que bicho te mordeu?

Um bicho selvagem e filho da mãe chamado William, que já vem até com a metralhadora verbal embutida; conhece?

— Bicho nenhum, só quero ficar sozinho — retrucou, rudemente, e caminhou para debaixo da chuva fria rapidamente, deixando claro que não queria que Matheus o acompanhasse. Obviamente, o recado não foi suficientemente claro e o segundanista correu para se postar ao seu lado, fazendo seus passos mais depressa para seguir os de Davi, encarando-o com curiosidade. — O que você quer, Matheus? Não tem nada que você precise fazer? Um dever de casa, um trabalho, uma partida de xadrez, qualquer coisa? Não deixei bem claro que NÃO estou afim de companhia?!

— Para a sua infelicidade, eu acho que não... — Ele pareceu pensar por um instante. — Eu estava à toa quando te encontrei; não tenho nenhum dever de casa e Hugo não foi dar aula hoje, então fomos liberados mais cedo, ou seja, estou perfeitamente livre para fazer o que eu quiser.

— Então resgate a piedade ainda viva dentro de você e deixe uma alma atormentada em paz, vá querer fazer outra coisa.

— Não. — Matheus sorriu brilhante. — Lamento.

Davi suspirou derrotadamente, abrindo a porta da biblioteca com desânimo. Tinha o corpo frio por causa da chuva fina e o ar de dentro do prédio parecia ainda mais empoeirado que o normal; o terceiranista foi amigavelmente acolhido por um par de espirros assim que começou a caminhar pelo espaço, o olhar antipático do recepcionista cravado em suas costas, tão afiado que era quase possível sentí-lo perfurando suas costelas, mas o que podia fazer? Espirrou novamente, o som ecoando vigorosamente por toda a biblioteca vazia, e não pôde deixar de constranger-se quando o homem soltou um pequeno pigarro.

— Saúde — disse Matheus, assim que a crise se amainou, encarando-o de esguelha enquanto seguia o colega por entre as estantes. — O bibliotecário te ama, nota-se, o que é uma gracinha, se você for pensar.

Davi respondeu ao gracejo com um olhar sem humor.

— Rá-rá. Sem paciência para piadinhas, Matheus. Você pode até me impor a sua companhia, mas vai ficar calado; além da expressão rabugenta do bibliotecário na sua direção, o que é um motivo mais do que suficiente, eu vou ler e não quero ninguém me incomodando.

— Menino, Deus me livre desse seu humor...

— A porta está aberta. — Davi apontou imperativamente para a entrada enquanto escolhia uma das várias mesas vazias para se sentar, puxando a cadeira com um barulho agudo. — Pode sair, não tem ninguém te obrigando a ficar aqui.

Eu até preferia que você fosse, como é que eu vou ler com você a uma mesa de distância?

Contudo, quase que para pirraçar o pensamento de Davi, Matheus não deu um passo; apenas sentou-se lentamente na cadeira à sua frente, suspirando enquanto encarava o terceiranista com olhos languidamente divertidos.

— Claro que não; eu disse que ia te fazer companhia e vou te fazer companhia. — Ele se recostou folgadamente no assento. — Faça o que você quiser, vou só observar.

E, para a surpresa de Davi, o garoto de fato fez o que prometeu; enquanto o terceiranista mergulhava na leitura, começando o livro que escolhera (Os Caçadores de Conchas, pela milésima vez) desde a página um, Matheus simplesmente afundou no tédio da espera, deitando preguiçosamente a cabeça nos braços e fechando os olhos, não falando nada por um longo tempo. Era estranho, Davi reconheceu, estar imerso no universo do livro, os olhos concentrados em cada linha, ao mesmo tempo em que a presença de Matheus, a sua simples proximidade, o deixava absurdamente consciente de tudo o que acontecia em volta; sem perceber, ele começou a contar o espaço entre as respirações do garoto, o modo como suas costas subiam e desciam, a curva dos cílios de seus olhos fechados...

Havia se passado um tempo indefinido quando Davi finalmente desistiu de tentar se focar apenas no livro e fechou-o com um baque alto, batendo-o na mesa com força; talvez, só talvez, se batesse com força o suficiente, conseguisse descarregar toda a frustração acumulada que carregava...

Ou não. Matheus piscou algumas vezes, aparentemente acordando de seu cochilo, e virou a cabeça para encará-lo, uma centelha de diversão em seus olhos nublados de sono.

— Está mais calmo? — perguntou, a voz levemente pastosa. — Já posso falar com você de novo?

Não; saia daqui, nunca mais fale comigo, volte no tempo e se dê um soco antes daquele beijo, faça qualquer coisa...

— Não pode. — Particularmente, eu preferia que você nunca mais falasse comigo, sinceramente. — Ninguém pode falar comigo, porque meu estresse é eterno.

Matheus endireitou a postura, esfregando os olhos de maneira sonolenta, e seu rosto se anuviou em uma careta pensativa, como se ele estivesse tentando se lembrar de algo. Durante alguns segundos, ele ficou daquela maneira; girando os olhos, como que para acompanhar a atividade de seu cérebro, os dedos batucando a mesa de leve, até que sua expressão se aliviou de repente, tão de repente que Davi nem reagiu quando o garoto pegou seu pulso e o puxou para o centro da mesa.

— O que é que você está fazendo?

Mas Matheus não respondeu; provavelmente percebendo que Davi não iria lhe oferecer nenhuma resistência, abriu os dedos do garoto com seus próprios, encaixando as mãos dos dois de forma que seus quatro dedos maiores estivessem entrelaçados com os de Davi, apenas os polegares livres.

Eu não acredito nisso, pensou Davi, surpreendido, percebendo o que o outro tencionava fazer. Ele não é infantil a esse ponto... É?

— Você realmente está pretendendo fazer uma batalha de polegares comigo, moleque?

Matheus sorriu de leve, mas não respondeu e tampouco levantou os olhos das mãos dos dois, terminando de ajeitar o vínculo dos dedos e balançando o próprio polegar de maneira que, provavelmente, pretendia ser desafiadora — mas que, naquele momento em particular, pareceu bastante ridícula.

— Eu desafio você. — Ele finalmente encarou Davi, os olhos competitivos. — E se eu ganhar... Sei lá. Eu ganho alguma coisa.

— Não tem nada seu que eu possa querer. — O olhar de Matheus começou a incomodá-lo e, numa fuga quase deliberada, ele desceu os olhos para suas mãos entrelaçadas em cima da mesa; elas eram quentes e o aperto, confortável e cálido, fazendo-o sentir uma onda morna de desejo que ele estava cansado demais para repudiar. Eu bem que preciso descansar a cabeça... Não deve me fazer nenhum mal. — Podemos ir naquela velha coisa clichê de, quem ganhar, poder pedir qualquer coisa para o perdedor.

— Bleh. — Matheus fez um gesto desdenhoso com a mão livre. — Eu já consigo o que quero de você, com ou sem aposta. Não vamos inventar. — Sorriu. — Só quero ver você ganhar, então, vamos lá. Um... dois... três... e... Já!

Os polegares começaram a se mover rapidamente, um procurando um modo de prender o outro contra o apoio que as mãos representavam; era um joguinho divertido e bobo, mas Davi se viu estranhamente envolvido. Quando, após alguns minutos de concentração onde nenhum dos dois disse nada, Matheus finalmente venceu, apertando o polegar de Davi com força contra seu indicador, foi como se o terceiranista tivesse acordado de alguma espécie de transe mal humorado; de repente, William, as reuniões do tal conselho e até mesmo a tortura que Matheus representava pareciam coisas muito distantes.

— A essa altura — zombou o segundanista de maneira presunçosa —, você já seria meu escravo pelo resto do mês.

— Que nada, eu tenho direito à revanche. Anda, me dê seus dedos magrelos aqui de novo.

Uniram novamente as palmas, mas, alertado pela derrota anterior, Davi estava decidido a não ceder a vitória tão facilmente dessa vez e decidiu que faria esforço para vencer — mesmo que, se eu for pensar, isso seja uma coisa bem idiota. Assim que Matheus deu a nova partida como começada, as mãos começaram a se mover freneticamente pela mesa — o que era contra as regras, mas nenhum deles estava se lembrando delas naquele momento —, o dedo de Matheus tentando com afinco prender o de Davi novamente enquanto o terceiranista achava todo aquele esforço hilário, tão hilário que, quase sem perceber, começou a rir.

Foi uma espécie de alento, como se a risada — não uma grande gargalhada, só uma risada — fosse tudo de que ele estava precisando naquele momento, fazendo-o se sentir leve e dando outra luz para as coisas à sua volta. Assim, definitivamente de bom humorpela primeira vez em dias, Davi nem sequer se importou com o fato de Matheus ter parado com a batalha para fitá-lo com uma expressão idiota no rosto; apenas se aproveitou da óbvia (e quase cômica) distração do outro para prender seu polegar contra o indicador com um gesto satisfeito, encarando-o com um sorriso contente enquanto anunciava a própria vitória:

— Venci.

O cantarolar alegre de Davi pareceu “acordar” Matheus; o garoto encarou as mãos unidas em cima da mesa com confusão, como se não soubesse o que elas estivessem fazendo lá, antes de sua expressão se desanuviar em um semblante quase ferino. Respirando fundo, ele encarou Davi com os olhos queimando, apertando a mão dele novamente, com força, uma clara convocação para outra partida.

— Melhor de cinco — grunhiu, parecendo realmente raivoso. — E maneira nessa força aí, moleque; se quebrar meu polegar, eu quebro você. Está avisado.

Revirando os olhos, Davi riu, dispensando a fala do outro com um aceno desdenhoso da mão esquerda antes de a outra mão recomeçar a batalha, o ânimo renovado de Matheus para a vitória fazendo-o se esquecer do quanto aquilo era idiota para se empolgar também, ajeitando a postura, encarando as mãos com uma concentração circunspecta. Era uma simples briga de dedos, claro, mas quanto mais a amizade dos dois progredia, mais lhe parecia que todos os aspectos de sua vida que tinham Matheus abrangiam também alguma competição. Ele não se lembrava de ser tão desesperado para vencer antes, mas o garoto parecia ter o dom de manobrá-lo para aquele único desejo de vitória e, às vezes, em momentos como aquele, Davi só podia agradecer-lhe.

Jogaram muito mais do que cinco partidas, entretidos pela diversão que simples ideia de um aprisionar o polegar do outro representava, até que, várias rodadas e um tempo indefinido depois, pararam, as mãos unidas, encarando-se com olhos vívidos. Era fácil encarar Matheus, algo que ele sentia que poderia fazer para sempre e, enquanto os minutos se passavam, longos, mas ao mesmo tempo curtos demais, ele se perguntou se havia algo em seus olhos que o denunciava. Algum brilho, algum vestígio da tortura que Matheus parecia ignorar que estava sendo para ele — essas coisas podiam ser notadas naquele encarar? Ele sabia que havia grande risco de uma resposta positiva, assim como sabia que devia se sentir vulnerável por isso, por se expor daquela maneira, mas era tão fácil... Ele se encontrava incapaz de se importar.

Até que Matheus acordou.

— Quem ganhou? — perguntou, apartando as mãos e esticando os olhos para a janela. — Eu perdi a conta de quem foi.

— Fui eu — respondeu Davi, pouco surpreendido com o modo deliberado como o outro parecia evitar seus olhos. Talvez eu devesse ter me importado um pouco mais. — Acho que por quinze a oito, não sei. O gosto da vitória é tão bom, não é? — Riu, e Matheus voltou o rosto para ele rapidamente, ainda sem encará-lo, pelo exato tempo necessário para fazer-lhe uma careta de desagrado antes de olhar para a janela novamente. — Como você se sente perdendo?

— Como se sente comigo aparecendo no seu quarto às duas da manhã para nunca mais te deixar dormir?

— Mal — respondeu, depois de um curto silêncio, piscando com culpa; a frase tinha despertado cenas nada puras em sua mente. Ele é meu amigo, meu Deus! Um amigo que não conhece muito bem os limites de uma amizade, mas ainda assim... — Bem mal. Sinceramente, eu mereço esses maus perdedores na minha vida... Você, o Guilherme, o Marcelo, vocês são o orgulho em forma de pessoa, eu deveria receber um prêmio por aguentar vocês. Eu sou uma pessoa tão boa!

Matheus revirou os olhos.

— E humilde, também.

— Ah é, bom que você me lembrou: humilde, também. — E sorriu, percebendo, quando Matheus sorriu-lhe de volta, que o segundanista era a única pessoa que, atualmente, tinha o poder de mudar diametralmente o humor dele daquela maneira. — Cumprimente a minha humildade! Ela vai ficar ofendida.

Matheus riu, Davi riu também quase por reflexo e poxa, parece que estou dando poder demais para ele quando estamos assim.

Mas novamente... Ele se sentia incapaz de se importar.

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Os dois caminharam juntos até o refeitório e lá se separaram; Matheus seguiu para a mesa de seus amigos, alegando falta de fome, enquanto Davi tomou seu lugar na fila de comida, pacientemente esperando por sua vez de chegar à gôndola e montar seu prato. Ele sabia que devia se irritar com a quantidade de pessoas à sua frente ou com o barulho excessivo do refeitório — por azar ou o que fosse, tinha chegado ao refeitório justo no horário de pico da refeição, carinhosamente apelidado pelos alunos de rush da janta —, mas, naquele momento, com o espírito leve e os pensamentos diáfanos como balões de ar, não conseguiu dar muita importância para isso; as trinta pessoas que compunham a fila pareciam apenas incômodos insignificantes, problemas de um minuto que logo se resolveriam.

O tempo que ele levou para chegar à gôndola com as comidas poderia ter sido vinte minutos ou vinte horas; para ele, teria parecido a mesma coisa, uma sequência de acontecimentos indefinidos enquanto ele ria consigo mesmo, a mente funcionando rápido demais, tão depressa que ele não conseguia captar nenhum pensamento coerente de fato. Apenas no momento em que pegou o prato e encarou as comidas disponíveis, ponderando sobre o que colocaria no prato, é que sua mente voltou à clareza, os pensamentos emergindo da piscina de nebulosidade em uma rapidez quase frenética.

Salada de repolho, salada de tomate, couve-flor, alfaces... Detesto alfaces, malditas... Ah, parte de comidas comestíveis, é disso que eu gosto. Fígado, amo fígado, arroz, feijão... Mas tem feijão tropeiro ali, o Matheus me disse que adorava feijão tropeiro, eu lembro disso! Tem purê de batata, que raridade, o Matheus bem que disse que era apaixonado por purê de batata, ele vai gostar quando vir que tem... Lasanha de berinjela, eca! Ah, batata gratinada, amo batata gratinada, Matheus detesta, idiotão, ainda mais essa daqui, cara, tem presunto, presunto! Hmm, bife à milanesa, detesto, mas o Matheus gosta... Ali tem quiabo, ele ama quiabo também, não entendo como esse cara consegue gostar dessas coisas, sinceramente...

Quando se sentou à mesa com Guilherme, o prato transbordando comida, até mesmo o amigo, já acostumado com suas comilanças compulsivas, arregalou os olhos para ele.

— Davi do céu, isso daí é demais até para você! — Ele puxou o prato para seu lado da mesa, arregalando os olhos a cada item que computava: — Arroz, feijão tropeiro, fígado, batata gratinada, purê de batata, bife de boi, lasanha bolonhesa, parmegiana... Bife à milanesa e quiabo? — Encarou Davi com descrença. — Cara, você nem gosta de bife à milanesa! E quiabo, cara, quiabo! Isso baba!

Davi encolheu os ombros evasivamente.

— Matheus gosta, eu quis provar. Minha birra pode ser infundada.

— Como é que é? — O queixo de Guilherme caiu. — Você? Querendo experimentar? Davi, eu demorei dez anos para fazer provar ovo frito, porque você dizia que era muito oleoso! Foram meses para fazer você comer uma manga pela primeira vez, porque ela era muito melada! E eu nem preciso falar daquele dia onde eu tentei fazer você comer sorvete de pistache, né? Não me venha dizendo que você quer provar; você é a pessoa mais ignorante que eu já conheci para experimentar coisas!

— Isso é blasfêmia! — retrucou, embora fosse verdade. Ele sempre usa o argumento do ovo frito... Eu devia ter comido o maldito ovo quando ele me ofereceu da primeira vez. — E se eu sou a pessoa mais chata para experimentar coisas, você é a pessoa mais chata para existir, seu mala sem alça! — Ele mordeu um pedaço de carne de boi com ênfase desnecessária, o queixo se projetando desafiadoramente. — Ao invés de se preocupar com o que eu como, fale-me da Tábata, é mais interessante. Como ela está?

Guilherme o encarou de forma entretida.

— Descabelada; semana de provas na faculdade. Quase não temos nos encontrado, infelizmente, porque ela nunca tem tempo.

—Feliz dela, ficar sem ter que aguentar você. Quem me dera ter essa mesma sorte... — Ele riu da careta feia que Guilherme lhe lançou. — Tá, tá, tá, desculpe. A Tábata está fazendo faculdade de que, mesmo?

— Biologia. Isso é meio estranho, já que eu sempre a imaginei em uma coisa mais intelectual, tipo...

— Matemática? — Davi remexeu o quiabo com desânimo; diabos, aquilo realmente babava. — O Matheus quer ser matemático.

O quê? Ele faz realmente o tipo insano! Tem inteligência para fazer medicina e vai caçar fazer faculdade de matemática? Mas o Matheus é retardado, mesmo.

— Você se esquece que ele joga xadrez, a área de estatísticas é perfeita para ele. — Ele balançou um dedo de maneira repreensiva para o amigo. — Vai ajudá-lo no jogo.

— Como se ele precisasse de uma faculdade chata para ajudá-lo a jogar xadrez! Você joga muito bem e nem por isso vai caçar cursar matemática! — ressaltou Guilherme, parecendo realmente indignado, e Davi riu baixo, ignorando completamente o elogio implícito na frase do outro; o amigo não entendia nada de xadrez e realmente costumava endeusar Davi um bocado naquele quesito, colocando-o como alguém muito melhor do que ele realmente era. — Eu vou ser muito feliz sendo programador e, olha o que é mais legal, vou ser rico! Eu só posso me amar mesmo.

Davi revirou os olhos. A humildade passou ali na esquina, acenou e seguiu caminho lá para o Japão, né.

— E eu vou ser muito feliz sendo... — Fingiu pensar, por um minuto forçando uma expressão intelectual antes de desfazê-la em uma careta meio maníaca. — Eu não faço a menor ideia! Que feliz! Cadê os confetes? O Matheus diz que eu tenho cara de administrador infeliz; na falta de opção, talvez eu realmente acabe me tornando um.

— A Tábata disse que você tem cara de psicólogo! — começou Guilherme, empolgado, mas a expressão cética de Davi fez com que a animação da voz minguasse gradualmente. — Ok, ok... Ela devia estar brincando.

— Prefiro ser um administrador infeliz. Vai que o Matheus tem razão e eu subitamente me descubro nessa carreira?

— Você é um alento.

Davi soprou a colher de feijão distraidamente antes de levá-la à boca.

— Matheus diz que eu sou um sopro quente de esperança no meio do deserto do Saara ao meio-dia.

Foi muito rápido; em um momento, Guilherme estava sentado em frente a ele, comendo displicentemente um pedaço de lasanha de berinjela e, no outro, tinha dado um sonoro tapa na mesa, ocupando o lugar ao lado do de Davi enquanto aproximava seus rostos de maneira desconfortável, os olhos afiadosperscrutando.

— O que eu perdi? — perguntou, mantendo o rosto próximo, apesar de Davi ter tentado recuar o seu em uma postura defensiva, confuso. — Não me olhe com essa cara de confusão! Em um dia, você e o Matheus se odeiam, só falta você cuspir espinhos enquanto fala dele. Então, do nada, ficam amiguinhos, ok, aceitável. Aí, mais do nada ainda, vocês começam a se tratar como se um ou o outro fosse explodir e agora você vem e me cita o maldito a cada cinco palavras suas como se ele fosse seu namorado? Eu te conheço, Davi Anchieta Montecruz, desde os seus seis anos, inclusive sei que se você odeia o Anchieta e foda-se, eu sou seu amigo e quero saber o que raios eu perdi!

Ué... Hã?

— Não tem nada para você perder, Guilherme!

— Tem sim! Só te vi retardado assim por causa do William! Nem por causa da Verena você ficou desse jeito, então: O... Que... Eu... Perdi?

Davi finalmente entendeu o que Guilherme estava tentando sugerir e ficou na dúvida se ria alto ou se ficava profundamente ofendido. Eu? Apaixonado por Matheus? A Tábata andou te oferecendo drogas, amigo?

— Cara... — Eu não acredito que estou tendo essa conversa com você! — Você não perdeu nada, ok? Eu NÃO estou apaixonado pelo Matheus, tá bom, e mesmo se estivesse, eu certamente não iria te contar.

Guilherme, que vinha fazendo uma expressão de alívio descarado, franziu o rosto imediatamente ao escutar a última frase.

— Estou procurando a graça, mas não achei. Acho que ela ficou envergonhada. — Cerrou os olhos para Davi em advertência. — Olha: uma das poucas coisas que eu exijo nessa amizade é que você me conte por quem está apaixonado...

— Porque você tem um senso de perseguição apurado...

— E que você me deixe te falar quando a coisa é besteira — continuou, como se não tivesse havido interrupção. — É sério, Davi... — A voz ganhou um tom de apelo. — Não se apaixone pelo Matheus, ‘tá? Ele não vale a pena; se você soubesse as coisas que a Tábata já me contou...

Davi não respondeu, crispando os lábios em uma expressão contida enquanto pensava que, realmente, não deveria ter esperado outra coisa de Guilherme. Ele era o cara mais superprotetor que o terceiranista já conhecera, aquele que tinha detestado cada dia seu com William, que tinha torcido o nariz para Verena e que queria saber de todos os avanços da vida amorosa de Davi como esta se fosse a sua própria, separando aqueles que eram bons e aqueles que não serviam para o amigo — o que, basicamente, significava todas as pessoas. Davi não se importava muito, porque sabia que aquele era o jeito de Guilherme, mas conseguia se lembrar perfeitamente de como a amizade dos dois tinha ficado preocupantemente frágil durante o seu namoro com William; aqueles dias tinham sido os de maior distanciamento entre Davi e Guilherme em mais de uma década de relacionamento.

Eu provavelmente sei das coisas que a Tábata já te contou. Também sei de muitas outras coisas, Guilherme, Sinceramente, você é meio impossível às vezes. O pensamento veio acompanhamento com uma onda de carinho e Davi sorriu fraco. Fazer o quê.

— Claro que não, Guilherme — acabou dizendo, porque Guilherme podia ser superprotetor e ciumento, mas ainda era seu amigo. — A única pessoa pela qual eu pretendo me apaixonar no momento é pela minha cama. Mais alguma coisa?

— O aniversário da Tábata foi dia dezoito de maio, né, e eu dei um presentão para ela. Agora meu aniversário ‘tá chegando, já é outubro, então eu estou muito ansioso para saber o que eu vou ganhar em troca, ela disse que ia me fazer uma surpresa tão legal, cara, e é da Tábata que estamos falando, ela sempre...

Jogaram papo fora até o refeitório se esvaziar drasticamente, Davi escutando o discurso exageradamente animado de Guilherme sobre suas expectativas para seu aniversário enquanto algumas poucas mesas ainda eram ocupadas pelos retardatários de sempre. Do outro lado do refeitório, permanecia Matheus e sua turma de amigos do segundo ano, rindo e se divertindo, e Davi simplesmente não conseguia evitar seu olhar de divagar para lá, encarando-o, perscrutando-o à procura de respostas para perguntas que ele ainda não tinha verbalizado para si mesmo, nem em seus pensamentos. Só sabia que, nas poucas vezes em que os olhares se encontraram, a vontade de se encolher era maior que o conforto que ele naturalmente devia sentir — eles eram amigos, afinal — e que o vazio que o tomou quando os segundanistas deixaram o refeitório não foi nenhuma coincidência.

— Ok, Guilherme, vou caçar cama — disse enfim, quando a sensação começou a incomodá-lo, levantando-se da mesa e empurrando o prato vazio para frente; até mesmo do quiabo ele tinha conseguido gostar. — Chegar no quarto, ler um pouco...

— Também conhecido como ler a Cidadela pela trocentésima vez... — Guilherme sorriu. — Sinceramente, você não cansa daquele livro não?

Davi virou-lhe as costas. Como explicar para um viciado em RPG que existem livros tão fodas, mas tão fodas, que você simplesmente não se importa de lê-los de novo e de novo?

— Você nem passou — informou, a guisa de despedida — das primeiras quinze páginas, cara!

— E ainda li muito, viu? Foi um sofrimento, uma vitória pessoal!

Davi ainda ria quando alcançou a porta.

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Ele se jogou na cama assim que chegou ao quarto, fechando os olhos com força enquanto enfiava a cabeça no travesseiro, aspirando o perfume irritante de lavanda quase que como um alento. Sentia vontade de dormir, embora soubesse que, na atual situação, aquilo era pedir um pouco demais; os eventos das últimas horas o tinham deixado demasiado alerta e pensativo para que conseguisse pregar os olhos, as palavras de Guilherme voltando à sua mente com uma nova força. Davi tinha negado a questão quase naturalmente quando o amigo a colocara pela primeira vez — apaixonado por Matheus? Claro que não —, porque parecia óbvio, mas encarando a coisa por uma nova perspectiva, agora já não sabia mais.

Ele podia estar. Ele completamente podia estar. Fazia todo o sentido do mundo.

Eu não quero nem sequer pensar nas consequências catastróficas desse fato na minha vida. Davi afundou ainda mais a cabeça no travesseiro. Se eu estiver... Mas nem eu sei me reconhecer apaixonado. Como eu ajo? Como eu fico? O Guilherme é a pessoa sensitiva aqui, eu sempre fui a toupeira nessas coisas.

Forçou a memória, mas, de fato, não tinha muita experiência em se apaixonar. Com o William, tinha condicionado a si mesmo a gostar do garoto muito antes de realmente gostar dele — em um dia, Davi acordara e se dera conta do quanto William era importante para ele, sem dramas — e com Verena, fora ainda mais natural, uma amizade que desde o começo parecia visar aquele relacionamento amoroso que não tinha sido muito intenso, embora Davi se lembrasse com carinho dele — menos da parte em que ela o chamara de promíscuo, claro. Nunca tinha se apaixonado realmente, aquele tipo de paixão do qual todo mundo falava, que tinha transformado Guilherme num zumbi feliz por quase todo aquele início de namoro, e não sabia dizer se aquela era a sua primeira vez.

Que problemático. Ele se virou na cama, os primeiros vestígios de sono vindo como um bom presságio. E o Guilherme ainda fica enchendo a minha cabeça de coisas. Nunca vi uma pessoa tão preocupada, Deus! Ainda estamos no início de setembro, o aniversário dele é no final de outubro e ele já está preocupado! Davi mirou o calendário pendurado na parede, a visão começando a turvar. É. O aniversário dele é três semanas antes do meu. Tem pelo menos uns cinco aniversários para eu me preocupar antes do dele! O Marcelo, eu acho, faz aniversário em outubro também. Uma das minhas primas... A Marta, se eu não me engano, é do final de setembro... E tem o Matheus! O sorriso lhe surgiu no rosto contra sua vontade. É esse mês, tenho certeza.

Matheus — o aniversário de Matheus estava chegando. Era dia quinze ou vinte, Davi não tinha certeza, mas, com uma onda de afeto que estava além de seu controle e que ele reconheceu beirar o ridículo, soube que tinha que fazer alguma coisa.

Aniversário da toupeira, hein? Davi se virou na cama, o sono quase o tomando completamente, a mente torpe demais para elaborar algum pensamento muito complexo. Talvez eu compre alguma lembrancinha.


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Notas finais do capítulo

Eu ainda não terminei o 13, mas já passei da metade, ele não deve demorar tanto quanto esse. *-*
Agradecimentos à Moni por ter me xingado horrores quando eu disse que eu ia desistir de Xadrez e me feito acordar para a vida. Moni >>> Eu. Sem ela isso daqui não andava, gent s2
Espero vocês no próximo!
Beijosssss