A Caçada escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 5
4 - Mihail


Notas iniciais do capítulo

Olá!
Esse é o maior capítulo dos seis. Espero que não fique cansativo pra ler.



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2 meses antes, em algum lugar da Itália Fascista

Aquilo era irritante. Muito irritante. A coisa mais irritante que ele tinha sido ordenado a fazer desde que seu capitão mandara que ele fosse para a Itália vigiar as movimentações dos fascistas, uma missão que no fim, não tinha se revelado tão ruim assim. Passava a maior parte do tempo em uma vila, comendo pizza — tinha ganhado dez quilos — e desvirginando as menininhas da vizinhança, uma vida definitivamente melhor do que aquela que levava antes. Certos dias, onde o céu estava azul, o tempo estava fresco e o vinho estava no ponto, ele quase se esquecia que existia guerra.

Mas aquela reunião o faria lembrar. De forma bastante irritante.

Mihail odiava seus compatriotas espiões: Pavel era um bajulador idiota que não tinha opinião própria, na mesma medida que Anton era um arrogante que tinha opinião demais. Oleg não falava, só observava todos com aqueles desagradáveis olhos saltados, enquanto Viktor não calava a boca. E Kirill tinha aquele jeito escorregadio, com os sorrisos horrivelmente venenosos que dava a todo o momento.

Em resumo: todos eram absolutamente dispensáveis, na opinião de Mihail. E estavam sentados, os seis, numa mesa circular, olhando uns para os rostos dos outros, a tensão tão densa que era quase palpável. Onde estava Yure, que não chegava depressa? Só de olhar para o sorriso de Kirill, Mihail tinha vontade de socar uma multidão.

—Você, garoto! — ele se virou para o homem que estava no canto da sala, distraído, provavelmente esperando por alguma ordem. —Me faça uma xícara de café. Preto, sem açúcar, bem forte.

O homem assentiu, e foi até a cafeteira no canto da sala, botando-a para funcionar. Para o desgosto de Mihail, seu café demorou para chegar, porque de repente todas as pessoas da mesa decidiram que queriam um também, e o pobre garoto ficou doido ligando e desligando a cafeteira, colocando-a para fazer os cafés de acordo com as preferências de cada um. Quando finalmente a bandeja com as xícaras chegou, Yuri tinha acabado de abrir a porta, delicado como um elefante bêbado.

Aquela era a primeira vez que via Yuri. Era dele que vinham suas ordens — ele nunca tinha falado com William diretamente — mas as instruções sempre vinham por cartas grosseiras da parte do mais velho, que Mihail na maior parte do tempo se divertia lendo. Poderia considerar Yuri um amigo, dada a quantidade de cartas que os dois tinham trocado, mas vendo o modo como o soviético entrava e encarava a todos os seis com certo desprezo, já não tinha tanta certeza.

—Yuri. — cumprimentou assim mesmo, sorrindo, enquanto provava de seu café. Bom. Amargo na medida certa. —Está uma hora e quarenta e dois minutos atrasado.

—Mihail! Imaginava você mais magro. Obrigado por me contar uma coisa que eu não sabia. Eu morreria se não soubesse que estou atrasado. Muito obrigado mesmo. E a propósito, fique esperto com seu pescoço quando sair daqui, nunca se sabe.

—O que você tem aí? Informações? Aqui tem sido chato, sabia? Nada acontece, eu estou só engordando, daqui a pouco minha esposa vai me colocar pra fora de casa, isso se eu passar pela porta, já que eu não paro de engordar, sinceramente...

—Viktor. — Yuri se aproximou com uma pasta, aparentemente cheia de documentos. —Cale a boca, seu imprestável. Calem a boca todos vocês, e escutem o que eu vou falar.

Ele estava pedindo por uma provocação.

—Quer café, Yure? Amargo, sem açúcar, do jeitinho que eu gosto.

Yuri sorriu de lado.

—Vá se foder, Mihail. Você e as prostitutas que você contrata. Mas antes, você vai prestar atenção aqui. Eu não convocaria seis chatos como vocês e viria lá da União pra cá só para contar casos.

—Chato é o...

O olhar do superior calou a todos, até mesmo a Anton, que cruzou os braços, irritado, e esperou. Satisfeito, Yuri tirou os documentos da pasta e os estendeu em cima da mesa; com uma olhada rápida, Mihail constatou que eram relatórios, algumas fotografias e três mapas.

—William está com uma ideia interessante sobre essa área italiana... Como vocês, como bons espiões informados, já devem saber, os alemães filhos da puta, que eram nossos aliados, agora estão invadindo a União Soviética. Nossas tropas estão sofrendo, porque nós fomos pegos extremamente de surpresa. Mas isso não é o foco. O foco são esses homens aqui. — Yuri mostrou fotos de vários homens. —Alguns generais das tropas italianas. Eles estão, de acordo com o que nós conseguimos, nesses pontos do mapa. — o dedo dele deslizou por entre seis pontos vermelhos em diferentes pontos do mapa. —A função de vocês é matá-los. William está extremamente irritado, e quer esse serviço rapidamente. Então, podem dividir os seis generais e viajar. Nós vamos nos reunir novamente daqui há um mês, nesse mesmo lugar, e eu não quero falhas. Entenderam? Ótimo. Agora decidam quem vai pra onde.

Uma discussão se iniciou, acirrada, e Mihail, sem ânimo para gritarias, suspirou, se curvando para a mesa. Distraidamente, catou as fotografias — que tinham no verso algumas anotações genéricas sobre cada fotografado — e o mapa, comparando-os rapidamente. Ele odiava os serviços de assassinato, e amaldiçoava William profundamente por dentro, mas não tinha muita escolha. Gostava da Itália, e se quisesse ficar ali, teria que trabalhar, para compensar sua procrastinação e sua barriga cada vez mais proeminente.

—Eu vou para a Toscana. Esse aqui. — decidiu rapidamente, mostrando a foto para Yuri. —Giovanni Napoli.

—Ele? Boa sorte, Mihail. William sabe que você, quando não está bebendo vinho, é um dos melhores oficiais que nós temos. Mas... Seja sensato. Ah! Você me lembrou uma coisa. — ele se endireitou. —Todos, prestem atenção aqui já. Já!

Todos se silenciaram.

—Alguma coisa está acontecendo com a nossa rede de informantes. Yure foi assassinado na União Soviética; e vários dos peixes pequenos do exército que William usava para realizar as missões foram mortos. Nosso principal espião em Berlim, Nikolai, não me responde faz quase um mês, e eu desconfio de que ele tenha sido assassinado também. Eu não sou idiota. Tenho 30 anos de carreira militar e, para mim, todos esses assassinatos estão interligados. Por isso, acredito que vocês estão em perigo. — Yuri parou por um momento, encarando demoradamente cada um dos seis. Era possível escutar o respirar de uma mosca. —Eu conversei com Oleg, e nós decidimos designar um guarda-costas para cada um de vocês, nessa missão. Eles estão lá fora, vocês podem escolher qual levarão, mas não saiam na rua sem eles. Pronto. Podem voltar a discutir.

E de fato, todos voltaram a discutir.

Mihail se levantou, sorrindo de lado, e acenou com a cabeça para Yuri, indicando que ia partir. O superior deu de ombros, mostrando que não se importava, e o espião já atravessando a porta quando viu o menino do café.

Parou. Olhou para a mesa, onde seus cinco companheiros espiões discutiam, e para Yuri, que assistia a discussão de modo entretido, e chocado, percebeu que o menino tinha ficado lá durante toda a reunião, parado, no canto, e nenhum deles tinha se lembrado de dispensá-lo. Seria porque a timidez do menino tornava sua presença quase nula? A mente de Mahil começou a girar rapidamente, se perguntando o quanto da discussão o menino tinha ouvido, o quanto ele tinha entendido e, acima de tudo, o quanto ele falaria para os outros quando saísse dali.

—Você. — Mihail se aproximou, falando baixinho para não chamar atenção. —O que você entendeu dessa discussão?

—N-n-n-n-na-d-da. E-eu n-não fui e-e-embora po-po-porque ninguém me mandou sa-sa-sa-sair.

O garoto estava roxo de nervosismo, e tremia como vara verde.

—E pra quem você contaria o que você viu aqui, pirralho?

—P-p-p-p-p-p-p-pra ninguém! E-e-eu fi-fico calado, prome-meto!

O soviético encarou bem o rosto do italiano: loiro, feições angulares. Ele não era tão garoto assim, embora parecesse tão assustadiço como um e gaguejasse, o que tirava a maior parte da credibilidade do que ele falava. Analisando-o rapidamente, Mihail não o identificou como um problema potencial.

—Qual é o seu nome?

—E-e-e-Enzo.

—Você já viajou pra Toscana, Enzo? — um prazer sádico tomou Mihail enquanto ele via o italiano negar, desesperado. —Ótimo! Você vai conhecer, agora. Enquanto essa missão não terminar... Se você quiser a sua vida... Você vai ter que vir comigo. Estamos entendidos?

Enzo balançou a cabeça, desesperado, e quando Mihail recomeçou a andar, seguiu-o como um cachorrinho. Olhando-o de esguelha, o soviético pensou que não era algo tão preocupante assim, mas nunca fazia mal ficar de olho.

Do lado de fora, seis homens esperavam, calados e sisudos, segurando submetralhadoras. Analisando-os rapidamente, Mihail constatou que realmente eram o tipo que protegia alguém, mas definitivamente chamariam atenção demais e o atrapalhariam com a missão — o maior dos seis tinha praticamente o dobro da altura de Mihail. Rapidamente, ele pensou em ir embora e não escolher nenhum, mas não achava realmente que Yuri ia permitir que ele saísse de Roma sem um daqueles homens o estar acompanhando, e por isso deu um passo a frente, chamando a atenção dos seis.

—De vocês... Se uma garota se declarasse, pra vocês, agora, o que vocês fariam?

Um corou — estava fora. Outro cruzou os braços e resmungou alto — definitivamente não. Dois se entreolharam e começaram a dar risadas — como essas pessoas podiam ser seguranças? O de dois metros de altura deu uma resposta fraca, mas decente — podia até ser. E o único que não falara nada sorriu, esperando pacientemente as reações de todos para enfim responder.

—Eu compreendo seus sentimentos, querida, e fico muito agradecido por eles: deixam-me extremamente lisonjeado. Mas não me sinto capaz de ficar com você, porque estaria enganando seus sentimentos e isso não seria correto.

A resposta perfeita.

Mihail analisou o homem que falara rapidamente — era mais ou menos da sua altura, com um rosto anguloso e louro, os cabelos indo até a altura do ombro. Tinha uma postura discreta, elegante. Ia servir.

—Seu nome?

—Bóris, ao seu dispor, se assim quiser.

—Você vai conhecer a Toscana comigo, Bóris. Como meu segurança. Vamos.

Bóris sorriu levemente, e se uniu à Mihail e Enzo quando eles recomeçaram a andar. Ninguém falou nada no trajeto até a estação de trem, que não era muito distante, mas chegando lá, Mihail não pode deixar de se sentir curioso.

—Você, Boris... Se importa tanto assim com o sentimento dos outros?

O segurança o encarou como se ele fosse louco.

—Eu? Claro que não. Só falei aquilo porque percebi que era o que você queria escutar.

Mihail sorriu. Tinha escolhido bem.

O trem que pegaram não foi diretamente para a Toscana — o espião queria juntar suas coisas e estudar um pouco seu alvo primeiro, para pensar na melhor forma de se aproximar e agir. Giovanni era um general, então, obviamente, não estaria vulnerável a qualquer ataque, mesmo vindo de alguém meticuloso como Mihail — teria de ser uma missão cuidadosa e muito bem planejada.

Sua casa estava exatamente como ele deixou. Enzo, que ao que parecia, tinha crescido convivendo com a pobreza, ficou impressionado com os cômodos grandes e luxuosos, os tapetes que faziam cócegas nos pés e todo o brilho dos utensílios de ouro e prata que Mihail possuía — essa admiração encheu o soviético de um orgulho enviesado. Já Bóris analisava a casa clinicamente, colocando sensores de movimento em todos os lugares e algumas bombas, para segundo ele, “o caso de alguém invadir enquanto você está fora”. Mihail se perguntou se a proteção de sua casa devia mesmo custar a destruição dela — mas não chegou a verbalizar a questão. Juntou algumas malas com pertences que considerava necessários e partiu novamente ainda naquele dia, sem nenhuma ideia especialmente relevante na cabeça.

—V-v-v-v-v-você v-v-v-ai re-re-realmente matá-lo?

Mihail abriu os olhos. O trem tinha partido havia aproximadamente uma hora, e eles não demorariam muito para chegar à Toscana. Bóris, assim que o espião se acomodou, saiu para fazer uma vistoria no trem, temendo alguma armadilha ou algo do tipo, e Mihail tinha começado a cochilar sem nem mesmo se lembrar que Enzo existia — a presença inexistente do garoto era definitivamente um problema.

—Não estou indo para a Toscana para dar a ele um presente de boas vindas, Enzo. É claro que vou matá-lo. É o que eu tenho que fazer. Meu capitão não é uma pessoa muito piedosa. E Yuri menos ainda.

—Mas... Mas... É erra-ra-do.

O soviético olhou bem para o rosto de Enzo. Ele parecia mais altivo sabendo que não ia morrer, então talvez a gagueira fosse um problema não relacionado ao nervosismo. Na verdade, o espião achou que Enzo parecia irritado com alguma coisa, o que fazia seu rosto se contorcer numa careta engraçada.

—É errado. Mas você vir comigo também é errado. A coisa certa era você ter saído correndo e contado para alguém. O que você preferiu? Fazer a coisa certa ou viver? — o italiano crispou os lábios. —Pois bem. Eu também quero viver.

Enzo digeriu a declaração por um tempo.

—Giovanni também merece viver.

—É. Mas eu não me importo.

Ninguém disse mais nada durante o resto da viagem. Bóris reapareceu e se sentou, passando a limpar sua submetralhadora com um assovio alegre, que Mihail ignorou para sua própria felicidade — cochilou até chegarem à Toscana, enquanto observava as vinícolas ficarem para trás, e foi acordado de modo nada gentil por seu guarda-costas quando o trem parou.

A primeira coisa que Mihail notou quando desceu na estação de trem, foi que, tal como escutara, a Toscana era realmente bucólica e verde — até mesmo o cheiro do ar era diferente — ao contrário de Roma, que mesmo na década de quarenta, já tinha ares poluídos e burocráticos. Lembrava muito ao soviético da sua cidade natal, um ajuntamento de casinhas cercadas por várias árvores que só tinham folhas durante dois meses no ano. A segunda coisa foi um homem, de aparência completamente debochada, lhe esperando na estação com uma placa escrita “Michel” — seu nome em italiano.

Alguma piada sem graça do destino?

Não mesmo. Quando o estranho focalizou Mihail, piscou como se estivesse vendo exatamente quem esperava, e caminhou em sua direção.

—Bóris, fique atento.

—Não me diga o que eu tenho que fazer.

Mihail segurou um sorriso, e quando o estranho chegou perto, conseguiu manter uma expressão completamente séria e respeitável. Ele parecia tão debochado de longe quanto parecia de perto, os cabelos louros desgrenhados e sem corte, as roupas completamente amarrotadas — quando estendeu a mão para cumprimentá-lo, Mihail notou que ele tinha cortes nos dedos e cicatrizes de queimaduras nos braços.

—Você deve ser Mihail.

—Não. Meu nome é Puffy. — o soviético apertou a mão que lhe foi estendida, um pouco forte demais. —Claro que eu sou Mihail. Você está segurando uma placa que tem meu nome escrito.

O estranho pegou a placa, leu, e riu.

—Ah. É mesmo. Você é Mihail. Meu nome é Pietro... E eu serei seu guia enquanto você estiver na Toscana. Fui contratado por um homem que se chamou de Yuri na correspondência... Ele foi realmente grosso... Mas não me importo muito, ele pagou bem.

Não era típico de Yuri mandar guias turísticos nas missões que seus espiões tinham que fazer — Mihail nunca se esqueceria da vez que teve que matar um homem na Noruega e quase morreu congelado por ter ido para a cidade errada. Encarou Pietro com desconfiança.

—O que eu estou fazendo aqui?

—Não sei de todos os detalhes. Mas você veio matar um homem... Giovanni. É conhecido por essas bandas, não vai ser difícil pra você encontrá-lo.

Mihail ergueu as sobrancelhas.

—Você sabe que eu vou matar um homem... Mas não se importa?

—Como já disse, fui bem pago. — Pietro desviou os olhos. —Um bom adiantamento, eu te garanto... E vou receber um bônus quando você terminar com ele. Vamos andando. Fiz uma reserva pra você em um hotel mais ou menos. Não sabia que você ia trazer bagagem. — ele obviamente se referia à Bóris e Enzo. —Mas a dona do hotel é gentil, ela não deve se importar.

Pietro começou a andar, e dando de ombros, Mihail o seguiu. Havia uma estrada de asfalto mal assentado separando a estação da cidade e em menos de quinze minutos, os cinco estavam em frente a um sobrado mal cuidado cheio de infiltrações, que pareceu muito menos acolhedor para Mihail do lado de dentro do que pareceu do lado de fora. A mulher dona do hotel, Isabella, gorda e ligeiramente corada, não se importou muito com o fato de haver dois hóspedes a mais do que o esperado — o espião desconfiava que a guerra tinha afastado a maior parte dos seus clientes.

Se instalou em um quarto mofado que parecia estar vazio há anos. Era horrível em uma primeira olhada, mas após constatar que a cama era macia e que o colchão era liso, livre de calombos, o humor de Mihail melhorou drasticamente, e seu rosto estava contorcido em algo muito próximo de um sorriso quando saiu para seu tour com Pietro — Giovanni não poderia ser um problema tão grande assim.

Ele gostaria de ter estado certo. Mas não estava. Giovanni era um grande problema.

Durante toda aquela semana, ele observou o general — Giovanni era um homem relativamente velho, perto dos cinqüenta anos — e descobriu que ele levava a mesma rotina praticamente todos os dias. Acordava às seis da manhã, tomava café em uma padaria próxima a sua casa e fazia uma pequena caminhada, sempre em lugares movimentados onde havia pessoas observando. Às oito nove da manhã, ele voltava e dava um cochilo, e se levantava pontualmente às dez para se reunir com seus companheiros de exército. Eles sempre tinham reuniões em um galpão abandonado, como aquele no qual Mihail se reunira, e a guarda em volta dele era realmente complexa demais para o soviético tentar atravessar. Quando Giovanni saía, uma formação complicada de seguranças o cercava, e eles o acompanhavam até a área novamente movimentada da cidade, onde ele tomava outro café e voltava pra casa. Seis e meia, em ponto, ele abria um livro, o qual lia até as sete e quinze. Tomava um banho, e dormia, sempre, todos os dias, sem nenhum atraso, às oito horas da noite.

Mihail passou a odiar Giovanni. Primeiro, por causa do seu jeito meticuloso e da rotina metódica que levava. Depois, por causa do modo como tinha montado defesas quase imperceptíveis, mas praticamente impenetráveis em volta de si mesmo — do modo como o general levava sua rotina, era quase como se esperasse que alguém fosse atacá-lo, e estivesse pronto para isso há algum tempo.

—Temos que dar um jeito nisso. — Mihail bufou, depois de uma semana de observação. —Eu só tenho um intervalo de mínimos cinco minutos para mirar! Não dá tempo.

Pietro sorriu para ele, irônico.

—Eu disse que ia te mostrar onde Giovanni mora e qual é rotina do cara. Não vou te ajudar a matar ninguém. É seu serviço, seu espião de merda.

Mihail fechou a cara, mas não discutiu. Sua mente estava galopante, analisando a rotina imutável (até nos fins de semana) de Giovanni novamente, procurando buracos onde ele pudesse atacar, mas o único espaço vazio — além dos cinco minutos que ele gastava da cidade até o galpão — era o momento da reunião, onde o general estava fechado dentro do galpão e Mihail não podia ver o que ele estava fazendo.

Ele precisava saber o que acontecia dentro daquele galpão...

Mahil era um homem alto, e chamava atenção — jamais conseguiria entrar naquele galpão sem ser visto. O mesmo se aplicava para Bóris, que além de alto, era maciço e corpulento. Ele precisava ver o que acontecia lá dentro, e para isso, precisava de olhos que não chamassem atenção.

Alguém que não chamasse atenção...

Foi aí que Mihail teve a grande ideia.

Enzo gaguejou. Gaguejou muito e correu, chorou e argumentou, desmaiou e ficou completamente branco, mas o soviético, na sua total falta de piedade, não se comoveu nem um pouco — chegou ao ponto extremo de chantagear o italiano, sibilando ameaças nada simpáticas no seu ouvido, antes de vê-lo desistir. No dia seguinte, depois de eles terem convenientemente tirado o cara do café do caminho, Enzo entrou em seu lugar, tremendo e parecendo muito doente, mas sem muitas opções e não ser realizar a missão de observar.

—Eles... Não li-li-ligaram. E-e-e-e-eu di-di-di-disse que eu era o-o-o-o meni-ni-ni-no do café e e-e-e-e-eles a-a-a-a-acreditaram.

O soviético sorriu. Enzo, mesmo parecendo anêmico, tinha feito um bom trabalho.

—E o que eles fazem lá dentro, Enzo?

—Di-di-di-discutem. Gri-gri-gritam. Eles so-so-socam a-a-a-a-a-a-a-a me-me-mesa... E nunca con-con-concordam em na-na-nada.

—Só isso Enzo? — Mihail teve o cuidado de manter a voz baixa e persuasiva. —Deve ter mais alguma coisa. O que Giovanni faz de diferente?

—Ele... Briga co-co-co-como to-to-todo mundo. Ele... Não be-be-bebe café. Be-be-bebe chá. Po-po-pode ser co-co-conhaque também.

Mihail encarou Enzo por um segundo, e logo depois deu um sorriso aberto, afagando os cabelos louros do outro com leveza.

—Muito bem, Enzo. Muito bem mesmo. Eu quero que você coloque algo nessa bebida pra mim.

No dia seguinte, Enzo não tremia tanto quando entrou no galpão. No outro depois desse, estava quase normal. E durante toda a semana que se seguiu, seus passos se tornaram mecânicos, como se ele tivesse perdido a noção do que estava fazendo — Mihail de fato pensava que o italiano não tinha plena consciência do crime que estava cometendo, e que era por isso que o realizava de modo tão apático.

Pietro não dava palpites; observava tudo com olhos interessados, mas distantes. Já Bóris parecia minimamente preocupado, seguindo Enzo todos os dias de manhã com as sobrancelhas franzidas como se algo o incomodasse.

—Tem certeza de que não vai contar pra ele?

Mihail o encarou. Enzo já estava envenenando Giovanni há uma semana a esta altura.

—Não até o serviço estar terminado.

E estava funcionando. Nos cinco primeiros dias, Giovanni continuou saindo para caminhar todas as manhãs, mas parecia mais abatido, olheiras enormes sob seus olhos e uma postura realmente cansada, que denunciava noites mal dormidas. Nos dois dias que vieram depois, ele não foi caminhar, saindo de casa apenas para as reuniões e se arrastando dolorosamente para chegar em casa. E um dia depois da pequena conversa entre Mihail e seu segurança, Giovanni não saiu de casa.

—Mihail, Mihail, Mihail! — Enzo chegou correndo, parecendo realmente horrorizado. —Giovanni morreu!

O espião soviético olhou para o italiano, despreocupadamente.

—Claro que sim, Enzo. Você o matou.

Enzo parou. Foi como se tivesse congelado, de uma hora para a outra empalidecendo, seus olhos perdendo um pouco de sentimento e se tornando de repente vidrados. Ficou assim por alguns minutos, e, de repente, avançou em Mihail, socando tudo o que viu pela frente — acertou o tórax do outro com todas as forças que tinha e deu chutes, cabeçadas, sibilou coisas obscenas entre dentes, parecendo simplesmente demente.

—Você me usou. — ele não gaguejou. —Você me usou para matar um homem! Eu disse que ele merecia viver, Mihail! Ele merecia!

Bóris se adiantou para separá-los, mas o soviético o parou com um aceno fraco de mão.

—Eu disse que não me importava, Enzo.

—Mas EU ME IMPORTAVA! Eu me importava que alguém ia morrer! E-e-e-e-eu vou embora!

Enzo não chegou a dar dois passos para a porta; logo, tanto Bóris quando Mihail apontavam as armas para a sua cabeça.

—Você pode ir, Enzo. Direto para o purgatório, conseguir seu julgamento. Mas eu juro que torço para que você consiga o céu. Você merece, é uma boa pessoa. — o italiano arriscou mais um passo, e o espião deu um bufo audível. —Pirralho... Não me teste. Já matei criaturas piores que você... E criaturas muito melhores também. Não é como se eu tivesse alguma moral.

O italiano o encarou, bem dentro dos olhos, o desprezo simplesmente escorrendo pelas orbes. Mas não se moveu.

—Claro.

Mihail suspirou enquanto Enzo voltava para dentro do cômodo. Tinha terminado a missão... Mas de repente, o preço parecia alto demais.

Bóris o encarava significativamente.

—Não vou matá-lo. Não ainda. — o espião não o encarou de volta. —Mas, para não termos muitos problemas na nossa partida... Acho que você pode dar um jeito no nosso guia turístico. Ele sabe demais. Mas tente não ser muito cruel.

—Bem que Yuri disse que você pedia demais.

Mas o segurança se levantou, obediente, e saiu da casa — Mihail sabia que não precisava esperá-lo de volta tão cedo. Enzo, sentado em um canto, destilava uma aura desagradável de desprezo, respirando em arfadas, e de repente, o mundo pareceu um lugar muito otimista para se estar. Mas tudo bem, o soviético pensou consigo mesmo. Já tinha passado por situações piores.

Pietro, obviamente, não foi levá-los de volta à estação na manhã seguinte.

A viagem de regresso para Roma foi silenciosa. Bóris lia um livro, concentrado, enquanto Enzo mantinha o mesmo olhar vidrado, sem sentimentos. Mihail queria ter dormido, mas não conseguiu, e ficou repassando na cabeça os detalhes da missão — todos pensariam que Giovanni tinha morrido de um infarto natural. Ninguém pensaria, inicialmente, na hipótese de um assassinato, e quando pensassem, Mihail já estaria longe demais para ser pego — ninguém, obviamente, se lembraria da presença inexistente de Enzo.

Tinha sido bem sucedido, apesar de tudo. Agora ele só precisava se encontrar com os outros espiões soviéticos, e estaria tudo bem.

—Pensando nos seus vinhos e prostitutas?

—Vejo que Yuri falou bem de mim pra você.

—Falou bem de todos os seis espiões. Todos fazem coisas podres, se você quiser saber. O único que mantém a moral mais ou menos intacta é Pavel... Mas o modo como ele mata compensa. Ele é um torturador. As vítimas dele imploram pela morte.

Uma face definitivamente estranha de Pavel, o bajulador idiota sem opinião própria.

Mihail encarou Bóris, sorrindo ironicamente.

—Interessante. E o que Yuri disse de mim?

—Bebe e transa mais do que trabalha, mas quando trabalha, é eficiente. — as palavras saíram meio mecanizadas, como se ele tivesse as ouvido várias vezes. —É metódico e meticuloso, mas é bom tomar cuidado, porque é manipulador. Odeia matar, mas quando precisa fazer, não gosta de sujar as mãos, e vai usar qualquer coisa... Ou pessoa.... Como ferramenta.

Enzo pareceu despertar com isso, mas não disse nada. Só encarou Mihail novamente com aqueles olhos destilando desprezo e voltou à apatia, como se nada tivesse acontecido.

Bóris não disse mais nada, voltando ao seu livro. E Mihail ficou desperto, estranhamente consciente da presença de Enzo ao seu lado.

Roma os recepcionou, burocrática como sempre, quando a noite já estava quase alta, e Mihail ficou feliz que ninguém o esperasse — foi direto para a própria casa, sentindo que Enzo e Bóris o seguiam, e nem sequer tomou banho antes de dormir profundamente. A reunião seria dali a dois dias. Ele teria tempo para ver o que faria. Provavelmente, conversar com Enzo...

Não conversou com ninguém.

Dois dias depois, quando obrigou Enzo e Bóris a irem à reunião com ele, o clima estava simplesmente impossível. O italiano parecia ter atingido um estado ainda não estudado pelo homem de apatia, e mesmo quando a reunião, comandada novamente por Yuri, começou, ele não mostrou nenhum sinal de vida. Ficou escutando enquanto cada um deles gritava mais alto que o outro, se vangloriando por terem conseguido matar seus alvos, contando sobre os métodos que tinham usado e rindo, rindo e rindo.

A reunião se estendeu por várias horas, e não esfriou quando Yuri finalmente avisou que ia embora. Todos os seis — Pavel estava contando em detalhes como tinha deslizado a faca pelo pescoço da vítima, devagar enquanto escutava seus ofegos — se despediram brevemente do homem, e Mihail observou pelo canto do olho enquanto ele ia. Teria de esperar... Tirou do bolso uma caixa, que estudou com atenção, parecendo confuso, e colocou-a em cima da mesa.

—Vou procurar Yuri. Acho que esqueci de falar algo com ele. Não precisa vir, Bóris. Yuri pode proteger a nós dois.

Mihail saiu depressa, andando pelo caminho que sabia que Yuri tinha tomado. Olhou no relógio: 15 minutos.

—Você vai matá-lo também, não vai? Vai matar Yuri. Não sei por quê. Mas você vai fazer isso.

O soviético parou e respirou fundo.

—Enzo... Não é hora pra isso, agora.

—Você vai, não vai? Igual me fez matar aquele general pra você! Suas mãos que você odeia sujar! Você gosta de se sentir limpo, não é? Você adora isso, não é mesmo? Seu sujo! Manipulador! Quem vai usar para me tirar do caminho agora, Mihail? Você é bom demais para matar alguém, não é?

O italiano vacilou levemente sob o impacto do tiro, parecendo incrédulo que ele sequer tivesse acontecido. A velocidade com a qual Mihail tirara a arma e a disparara fora realmente grande — grande o suficiente para que ele acertasse a barriga ao invés do peito, que era o seu alvo verdadeiro.

—Enzo, Enzo, Enzo. — ele se aproximou, passo por passo. —Se você soubesse quem eu verdadeiramente sou, você não tinha dito isso. Afinal, eu não ligo para quem morre e para quem vive. No caminho que eu deixei pra trás, você vai ver pilhas e pilhas de cadáveres, e eles não ganharam nada sendo corajosos como você. Eles não ganharam nada vivendo.

Enzo tinha as mãos na barriga, gemendo baixo.

—Eu gostei de você, Enzo, porque achei que parecia comigo. Essa tolice infantil que você demonstra... Eu também já a tive. Mas você ia ter que morrer de qualquer forma. A partir do momento em que eu me encontro com alguém, essa pessoa não pode viver. — Mihail apontou a arma para Enzo, calmo, sorrindo levemente. — E Enzo, querido, morra sabendo disso: não quero que você tenha raiva da pessoa errada. Eu não sou Mihail. O Mihail verdadeiro está morto há muito tempo.

O segundo tiro foi calmo, e não houve erros. Mihail olhou no relógio: 11 minutos.

Yuri não estava muito distante, e caminhava alerta. Mihail chegou por trás, suavemente, e lhe deu um abraço forte, as mãos rapidamente esquadrinhando os bolsos do outro a procura das armas — as quais jogou longe — colocando depois uma faca no seu pescoço firme e comprido. Yuri, apesar de ter retesado todo o corpo, não fez nenhum movimento brusco, e sua voz estava absolutamente calma quando falou.

—É você, Mihail?

—Ele mesmo.

Yuri riu.

—O que você fez com o verdadeiro Mihail?

—Ah... O matei, claro. Que pergunta idiota. — olhou no relógio. Cinco minutos. —Mas não antes de torturá-lo durante um tempo. Você não faz ideia das coisas que descobri... Alguns homens falam demais quando sentem dor. Outros simplesmente contam tudo. Seu amigo Mihail era o segundo caso. — ele apertou a faca com um pouco mais de força. —Não sou muito chegado a torturas, mas... Ele foi interessante de se assistir.

—Deixe-me adivinhar... Eu coloquei um guarda-costas para proteger você de você mesmo? Você é o homem que está matando meus espiões, não é? É esperto. Incorporou a personalidade dele muito bem. Só meus instintos para me dizerem que você tinha alguma coisa de errado.

—Se eu sou o homem que está matando seus espiões? — Mihail riu. — Seus espiões são apenas o caminho. É como um lance de escadas. Eu preciso subir os degraus pra chegar ao meu objetivo. Digamos que você é um degrau muito alto... Mas eu tive que matar pessoas que realmente não mereciam a vida para chegar até aqui. E eu sei de coisas que eu não deveria saber...

Yuri se remexeu. O aperto da faca parecia estar começando a incomodá-lo.

—Quem é o último degrau? E porque você quer me matar? Eu nem sou um espião.

Mihail riu com um leve traço de sarcasmo.

—Matar você? Mas Yuri! Você nunca foi meu objetivo! — ele olhou o relógio. 20 segundos. — Você vai mandar um recado para mim. Sua hora de morrer não é hoje. — Mihail estendeu o relógio para onde Yuri pudesse vê-lo. —Vamos lá... Conte comigo, Yuri. Lentamente. Cinco... Quatro... Três... Dois... Um...

Uma grande explosão se ergueu alguns quarteirões para trás, um brilho laranja em meio à noite escura. E Mihail sentiu que o outro tinha entendido exatamente o que ele tinha querido dizer.

—Você... Você os matou. Todos eles.

—Sim... Pode ter sobrado alguém. Mas não duvido. Aquela era uma bomba potente. — Mihail se inclinou levemente, o aperto da faca ainda mais forte. —Agora, você me responda. Onde está William?

Yuri ficou silencioso por algum tempo antes de se dar por vencido e recitar algumas coordenadas, mecanicamente.

—Ótimo. Eu sei que você não está falando a verdade. Mas não interessa. Eu já sei onde William está... Mihail me disse. — o aperto se tornou ainda mais forte, e um filete de sangue escorreu pelos dedos do assassino. —O jogo agora, Yuri, é qual de nós vai conseguir chegar lá primeiro, e avisá-lo. Eu, ou você? Não sei... Você sabe quanto tempo tem. E eu sei exatamente para onde tenho que ir. Então... — a voz dele desceu para um sussurro. — Vá, Yuri, sabendo que você foi a única pessoa que sobreviveu de um encontro comigo...

Rapidamente, mas ainda com certa dificuldade, Mihail conseguiu colocar o pano com clorofórmio no nariz do outro. Para um homem grande como Yuri, só ia durar alguns minutos, mas era mais do que suficiente.

—Até agora.

E saiu andando.

A partir dali, Mihail também não existia mais.


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Notas finais do capítulo

No próximo capítulo, todas as dúvidas serão esclarecidas. Até lá. o/



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