A Caçada escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 6
Epílogo - Havryil, o Ucraniano


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo é uma continuação direta do prólogo. Esse dois capítulos — o epílogo e o prólogo — fazem uma espécie de sanduíche com os capítulos do meio. Então pense na reação de William imediatamente após ser avisado que há um assassino atrás dele.
Dito isto, enjoy!



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Dias atuais, Stalingrado, União Soviética

William Smimov arregalou os olhos. Como um assassino podia tê-lo como alvo? O capitão, por causa de sua perna deficiente, não ia para as fileiras havia quase cinco anos — seus superiores o tinham colocado na parte mais suja da guerra, a espionagem, justamente porque ele era inútil como combatente. O rosto de William tinha sido esquecido. Como alguém poderia se lembrar com tanta clareza?

—Você foi Primeiro-Tenente durante muito tempo, William, até o fim da coletivização na República da Ucrânia. Pode ser alguém com uma raiva antiga. — Yuri pareceu ler a dúvida nos olhos dele. —Não sei dizer o que ele quer com você, mas posso garantir que é metódico e muito cuidadoso. Não sei até que ponto ele iria para te matar, mas deixou muito claro para mim que você era o alvo.

—Quais dos meus espiões ele levou? Você disse que ele tinha feito estrago.

—Bem... Que eu tenho certeza, Mihail, Pavel, Oreg, Viktor, Anton e Kirill. Mas eu tenho meus motivos para acreditar que também foi ele quem matou Yure, Nikolai e alguns dos soldados menores que nós mandávamos para as missões: Ivan, Ygor, Frans, Hugh, Czar, Kriger, Russell... O crime mais antigo é de um ano e meio atrás. Ele age rápido e sem falhas.

William estalou a língua, irritado.

—Você quer dizer que um único homem levou, sozinho, toda a rede de informantes que eu levei quatro anos para conseguir?

—Sim. E agora ele quer você.

Parecendo preocupado, Smimov começou a manquitolar pelo cômodo, o barulho de sua bengala sendo o único a ecoar entre todos que estavam ali — toc, toc, toc. Todos o encaravam, parecendo esperar por uma decisão, e Yuri era o pior de todos; depois de muitos anos trabalhando e combatendo juntos, William sabia que o compatriota podia ler todos os pensamentos e preocupações no seu rosto.

—Como você pode ter certeza? — acabou perguntando, apontando a bengala acusadoramente para Yuri. —Existem vários Williams no mundo. Como você pode saber que sou eu que ele está caçando?

—Se uma pessoa colocasse uma faca no seu pescoço... — ele mostrou uma cicatriz fina onde a faca aparentemente penetrara. —E dissesse que está atrás do Yuri, em qual Yuri você pensaria? Pois bem, era essa expressão que eu queria ver. E ainda por cima, ele colocou um pano com clorofórmio na minha cara. Quando eu acordei, tinha sumido.

—Não podemos ignorar isso. Temos que tomar medidas preventivas. — outro dos homens que estava sentado na mesa se intrometeu na conversa, sério. —Nós podemos nos revezar em vigiar você, mas para isso, temos que dividir os horários claramente... Não deixar você sozinho é a prioridade.

William encarou-o por um segundo, sem argumentos para rebater, e concordou, assistindo ao início de uma calorosa discussão da qual ele não quis participar — estava mais preocupado pensando em possíveis pessoas com motivos para ir tão longe apenas para matá-lo.

William Smimov era soldado desde 1925, seguindo os passos do próprio pai. Nunca tinha querido ser outra coisa na vida — talvez por falta de influências melhores, talvez simplesmente porque não tinha escolha. Jamais conhecera a mãe, uma bailarina itinerante americana dotada de encantos realmente consideráveis, mas sempre soubera que o pai se arrependia do que tinha feito e desconfiava que era por isso que ele sempre se recusava a olhar William nos olhos. Cresceu solitário e não aprendeu muitas coisas sobre amizade, o que garantiu uma ascensão rápida no exército — o jovem William era ambicioso, frio, competente e não falhava. Não parava para ajudar seus compatriotas. Só matava.

Smimov conseguia se lembrar de seu jeito frio e desagradável da juventude. Não gostava das pessoas, de seus sorrisos e de sua alegria, e sentir um prazer doente em vê-las chorar e implorar por coisas que ele não entendia — o que era piedade? O que era misericórdia? Ele demorou demais para compreender. E nessa fase horrorosa onde ele só colecionou pessoas que o temiam e inimigos, muitas pessoas podiam ter prometido lhe matar.

Agora uma delas voltava, e nenhuma das explicações de William bastaria. Alguém que o odiava tanto a ponto de matar todos aqueles inocentes não iria querer escutar que Smimov tinha perdido meia perna e que tinha aprendido muitas coisas — que tinha entendido a mecânica de um sorriso e de algumas coisas que ele considerava como “sociais”.

De repente, William começou a se sentir muito mal.

—É simples. — Yuri resumiu, trazendo-o de volta para a realidade. —Nós vamos com ele onde ele for, e com isso, o assassino não terá como agir. Ninguém é confiável. Ele tomou o lugar de um dos nossos melhores espiões e incorporou a personalidade dele como um profissional.

—Yuri, eu sinceramente, não sei...

—William, isso não está em discussão. É a sua vida, mas não é você quem decide; você não vai morrer e pronto. Nós vamos garantir que isso não aconteça.

—Tudo bem. — William oscilou imperceptivelmente, a sensação ruim evoluindo para uma leve dor de cabeça. — Tudo bem. Eu não me importo com os seguranças e vocês podem me seguir para onde vocês quiserem, mas deixem-me ir para casa sozinho e pensar a respeito. Você não tem certeza se Mihail deu uma informação correta a respeito da minha localização, certo? Pode demorar dias até ele me encontrar. Não acho que corro perigo hoje.

Ele viu Yuri cerrar os olhos e encarar os outros homens, a pergunta clara nos olhos — devo? Mas para alegria de Smimov, quatro cabeças acenaram conciliatoriamente, e ele ganhou permissão para ir embora sozinho, manquitolando preocupado com a bengala a ponto de nem notar a dor nos braços.

Os cadáveres que tanto o tinham incomodado quando entrou pareceram cantar quando William saiu, e o capitão suava quando finalmente alcançou o ar livre. O caminho que separava o galpão do centro de Stalingrado era vazio, mas relativamente curto — cinco minutos com as suas manquitoladas dolorosas — e ele pareceu correr para atravessá-lo depressa e chegar à cidade, onde o risco era virtualmente menor. Estava odiando Yuri. Estava odiando o homem que queria assassiná-lo. Mas principalmente, estava odiando a si mesmo, com aquela perna inútil que o impedia de se defender, com aquela bengala que o impedia de empunhar uma arma direito. Se alguém o pegasse sozinho, ele estaria morto.

Estava quase chegando à Stalingrado — podia se sentir aliviado, estava tudo bem, não era naquele dia que ia morrer...

Uma enorme explosão soou atrás dele.

William não se virou. Sabia — não tinha ideia do como, mas sabia — que Yuri estava morto. E todos aqueles outros homens também. E que ele estava sozinho.

E que havia alguém ali. Rondando como uma fera.

—Eu acho bombas algo incrivelmente indelicado. Mas você tem que admitir que elas são mortalmente práticas.

Sentindo todos os membros do corpo como rochas, William se virou. O homem estava à sua esquerda, apoiado despreocupadamente em uma árvore solitária. Tinha o mesmo rosto das fotos que Yuri havia acabado de lhe mostrar, mas a expressão era muito diferente — havia algo de muito duro em seu rosto, e o breve sorriso dos lábios não chegava nem perto de alcançar os olhos frios; parecia a William uma versão mais jovem de si mesmo, só que muito mais mortal.

—O que você quer comigo?

—Simples. — o homem tirou a arma do bolso com uma precisão quase mecânica. —Vamos conversar. Eu reservei um lugar só para nós dois hoje, porque em breve, minha pequena e extravagante explosão vai atrair curiosos e eu não quero platéia. Então... Andando. Se você fizer qualquer movimento brusco, eu explodo seus miolos, mas eu espero sinceramente que você não faça nada disso. Estou esperando para conversar com você há muito tempo.

Sem opções, William começou a manquitolar, seguindo a direção que o homem apontara com a sua arma. Durante mais de uma hora, os dois apenas caminharam, William na frente e o homem atrás, e Smimov não se atreveu a parar uma única vez — ele tinha um braço em brasa por causa da bengala e tropeçava a todo o momento, mas tinha a impressão que, se parasse, não viveria para fazer as perguntas que tinha. E eram muitas.

O homem o mandou parar em uma região periférica de Stalingrado na qual ele nunca tinha estado antes. Pareciam os arredores de uma fábrica, com uma única árvore solitária que já tinha perdido suas folhas com o início do outono.

—Sente-se. — o homem disse. Não era um convite, e William obedeceu. — Ótimo! Eu não esperava esse grau de obediência vindo de você. Então... Você ganha três perguntas. Escolha com sabedoria. Depois, quem fala sou eu.

O homem não sentou — permaneceu de pé, os braços cruzados, observando com grande interesse enquanto William pensava. O capitão pensou ter visto uma sombra de diversão cruzar os olhos inflexíveis, mas tão rápido quanto chegou, ela se foi, e ele já tinha decidido o que perguntaria.

—Qual é o seu nome?

—De todas as perguntas, você vai começar com a mais difícil. — ele riu, mas era um riso morto. —Eu já fui tantas pessoas que meu verdadeiro nome se perdeu. Você pode escolher: Pierre, Wowski, Yev, Armani, Doholov, John, Edmund, Kreist, Lutz, Enjoy, Mihail, Havryil... Têm alguns outros, que não me vêm a memória agora. Mas como eu preciso responder a sua pergunta, vou escolher para você. Enquanto conversamos, me chame de Havryil.

Smimov cerrou os lábios — ele tinha falado muito, mas não tinha respondido à pergunta, de propósito. Sem opções, passou para a próxima.

—Quantas pessoas minhas você matou?

—Que pergunta idiota. Só mostra que você não confia nem um pouco no seu falecido subordinado, Yuri: Ele não poderia estar mais correto a respeito das pessoas que matei. Além de todos os seus soldados espiões menores, matei seu espião na Alemanha. Yure também. E claro, todos os seus seis espiões maravilhosos que moravam na Itália. Confesso que Mihail foi o mais divertido de matar. Mas seu espião menor, Ivan, foi o mais interessante de me aproximar.

—Porque essa obsessão?

Havryil sorriu como aquela fosse a pergunta que estivesse esperando desde o início — o sorriso era como um buraco negro.

—Você é muito sábio, William. Fazendo a pergunta que eu mais quero escutar... Mas, para respondê-la, a partir de agora, só eu falo. Espero que você compreenda a seriedade da resposta.

William acenou em concordância; não sentia que tinha outra escolha.

—O primeiro motivo, que é o mais simples, é o fato de que eu te odeio, William. Com todas as minhas forças que me fizeram viajar dois anos pela Europa em guerra atrás de você, eu simplesmente te odeio, e, logicamente, odeio tudo que está relacionado a você. Odeio sua família. Poderia matar aquele seu filho, se eu quisesse, e juro que pensei nisso várias e várias vezes. — Havryil o encarou seriamente. —E porque eu te odeio? Mais simples ainda. Há aproximadamente 10 anos... Vocês, soviéticos malditos, Stalin acima de todos, inventaram a Campanha de Coletivização de Terras.

O capitão arregalou os olhos, mas Havryil levantou uma mão, impedindo-o de falar.

—Pois bem. Eu sou ucraniano. Eu tinha quatorze anos quando aquela praga começou, tinha uma família que não era perfeita, mas nós estávamos indo. Minha irmã mais velha, Natasha, tinha acabado de completar 18 anos, e ia se casar; meu pai ia pagar o casamento com as boas colheitas de grãos que nós estávamos tendo. E foi aí que o inferno começou. — o homem parou por um momento. —Começaram a tomar nossos grãos de forma praticamente abusiva. Mal sobrava para nós quatro, e depois de alguns meses, meu pai começou a surrupiar pequenas quantidades deles para que nós pudéssemos ter o que comer. Claro que nós fomos descobertos. E como punição, fomos exilados para a Sibéria.

“A promessa era de que nós íamos trabalhar para uma empresa. Mas a verdade é que eles nos abandonaram no meio daquele lugar deserto, e nos deixaram para morrer.”

William começava a entender onde o outro queria chegar.

—Meu pai era um homem forte, entretanto. — Havryil continuou. —E começou a caminhar conosco. O objetivo era nos fazer chegar a algum lugar... Mas não era fácil. Ainda não era inverno, senão nós teríamos morrido inicialmente de frio, mas não havia comida, e água era uma coisa realmente rara. Nós estávamos aos poucos morrendo de fome e sede, e quando encontrávamos qualquer coisa, meus pais a direcionavam para nós, os filhos. No fim, nós conseguimos chegar onde íamos trabalhar. Mas não era uma empresa. Estava cheio de soldados soviéticos lá. E ninguém queria nos deixar entrar.

“É aí que você entra, William. Você era o comandante daquele lugar, na época. E eu me lembro, com muita clareza, de você rindo para nós de cima do muro enquanto meu pai implorava por alguma piedade. Foram dois dias, dois malditos dias, até você finalmente se cansar do jogo, e até lá, meus pais já não existiam mais. Ficaram do lado de fora, mortos de fome — Natasha e eu não estávamos muito longe disso, mas o que tínhamos conseguido no caminho tinha nos dado uma sobrevida.”

Piedade! Por favor.

Misericórdia! Eu imploro!

O capitão de repente começou a se sentir extremamente mal, acessos violentos de vertigem fazendo-o bambear. Mas Havryil estava concentrado demais na história para notar.

—Quando eu penso a respeito, hoje, eu não sei dizer o que era pior: morrer de fome do lado de fora, ou sobreviver do lado de dentro. Acho que as duas coisas eram comparáveis; você era um líder cruel demais para se importar, e nós sofríamos torturas horríveis. Havia dias em que eu achava que ia quebrar, meus músculos queimando e minha cabeça doendo... Mas nada, nada, pior do que as coisas que fizeram com Natasha. No dia em que a estupraram, William, eu vi você assistindo. Eu VI você assistindo e não fazendo nada, e foi ali que eu decidi que você tinha que morrer.

—O que aconteceu com Natasha?

—Agora você se importa com o que aconteceu com a minha irmã? — o tom de Havryil era amargo. — Minha irmã está no limbo. Não morreu, mas eu não consigo enxergar aquilo como “vida”; ela não fala. O trauma foi demais. E para piorar tudo, o desgraçado do seu lindo espião Yure a engravidou. Ele foi o único que eu não matei por sua causa; Yure foi uma vingança pessoal.

“Eu não desconfiei que Natasha estava grávida de cara. Mas ela logo percebeu, conseguiu me contar, e eu comecei a planejar nossa fuga no mesmo dia. Nós dois fugimos num dos caminhões que levavam as provisões para a capital, e de lá, conseguimos voltar para a Ucrânia, também na clandestinidade. Nós não tínhamos mais dinheiro nem nada, mas alguns tios meus que não eram muito chegados à nossa família tiveram piedade o suficiente para nos deixarem ficar. Eu permaneci do lado de Natasha durante todos os sete meses que sobraram, e quando o neném nasceu, prometi que a vingaria. Foi aí que começou.”

“Naquela tortura que vocês me obrigaram a passar, eu prestava atenção, principalmente em você, William. Toda a sua rede de espiões futura já estava mais ou menos delineada na época, e eu prestava atenção nos nomes. Por isso, quando parti da Ucrânia, eu sabia o que tinha que procurar. Quando achei o primeiro, foi fácil encontrar os outros. Eles foram se dedurando, adoravelmente, até que eu finalmente chegasse em você. Yuri foi me representou maior dificuldade — ele é inteligente e percebeu muito depressa o que estava acontecendo... Mas no jogo que eu propus, eu venci. Ele chegou primeiro, mas os mortos não decidem nada. Não é mesmo?

O ucraniano se sentou, uma expressão falsamente agradável no rosto.

—Eu não esperava te ver dessa maneira. Fraco, mancando, com essa bengala... Parece que a vida começou a minha vingança para mim. Eu sempre imaginava que nós íamos brigar e eu ia finalmente te matar, mas eu tenho uma ideia melhor agora. Imagino que você não saiba qual é.

—Não interessa. Mate-me depressa, já que é esse o seu objetivo.

Finalmente, Havryil riu — uma risada alta, ressonante e verdadeira, que transformava suas feições em algo muito próximo do juvenil e suave. Ele tinha uma beleza cruel, William pensou consigo mesmo; do tipo que fazia as pessoas se aproximarem sabendo que precisavam se afastar.

—Te matar depressa, William? — a voz dele estava aguda pelo riso. —Não mesmo. Vou deixar você morrer do mesmo jeito que você deixou meus pais morrerem... De fome e sede. Não vou ter muitas dificuldades não é mesmo? — o capitão não viu o chute vindo; quando acordou para si, estava jogado no chão, a lateral direita do rosto mortalmente dolorida. —Vamos lá. Essas algemas aqui... Eu tinha outra ideia para elas. Mas você definitivamente é mais importante.

Smimov não reagiu quando o outro pegou seus braços, arrastando-o como um saco de batatas até a árvore novamente. Não fez nada quando enganchou seus braços em volta do tronco, estudando a melhor forma de prendê-lo. A mente de William girava, um único pensamento se repetindo de diversas maneiras, como um pânico antigo ressurgindo.

Não.

Não. Não mesmo.

Não, eu não quero.

Não.

Não.

NÃO.

—NÃO! — o grito foi alto e forte. Havryil ergueu as sobrancelhas. —Não, por favor, não, eu não quero ficar preso aqui, eu faço qualquer coisa, me mate depressa, me dê um tiro, mas não me deixe preso aqui.

Havryil o encarou. Até aquele momento, na conversa, o ucraniano tinha mantido um tom neutro, agradável, como se estivesse conversando com um desconhecido do qual não exatamente gostasse, mas com o qual sentisse obrigação de ser gentil — e naquele único olhar, toda a máscara cuidadosamente construída caiu. William jamais veria tanto ódio em uma única expressão. Era como se a raiva e o ressentimento tivessem conseguido marcar a ferro todas as nuances daquele rosto tão bonito, tão jovem, mas que de repente, parecia incrivelmente velho. O homem o odiava — e o odiava de verdade, do modo mais desprezível com o qual era possível se odiar.

—Você é simplesmente nojento.

Uma frase foi suficiente. Havryil terminou de prendê-lo à árvore e foi embora.

William gritou. Gritou durante horas, até a garganta estar em brasa e os músculos doloridos, mas nenhuma alma viva veio procurá-lo — os que se importavam, aparentemente, estavam mortos. Ele se remexeu com as algemas até os pulsos estarem em carne viva, mas não conseguiu nenhum progresso, e quando finalmente os braços começaram a ficar dormentes, o capitão nada fez. Apenas se deitou, e esperou.

Durante o primeiro dia, enquanto sentia a saliva engrossar, Smimov se concentrou em odiar Havryil. Silenciosamente naquele lugar desconhecido, ele relembrou cada um de seus espiões e os pranteou mentalmente, imaginando diferentes formas de se vingar do ucraniano pelo modo espalhafatoso com o qual ele tinha conseguido sua revanche contra William. Imaginou-se como um soldado jovem, ainda com as pernas, matando-o. O pensamento foi prazeroso.

—Você mereceu, Havryil! — gritou, sem forças, para o vazio. —Mereceu cada uma dessas coisas que aconteceu com você!

Mas não houve resposta. E se ele não soubesse que precisava economizar água, teria chorado.

No segundo dia, com a boca seca e o coração acelerado, ele pensou que talvez tivesse realmente errado. E feio. Lembrou-se com exatidão de quando controlava os campos de trabalho na Sibéria, quando era mais jovem e ambicioso, e de como tinha sido cruel com todos aqueles camponeses que tinham perdido tudo — quantos deles ainda o odiavam, desejando em segredo que ele morresse todos os dias antes de dormir? Quantos tinham William como objeto de ressentimento eterno? Ele conseguia pensar em mil possibilidades; era um líder impiedoso. Ria das desgraças dos outros. E não entendia o que era a misericórdia.

Agora ele precisava de misericórdia... E começava a entender muito bem todos aqueles lamentos sem resposta — o pensamento o fez se sentir mais mal do que já estava.

O terceiro dia trouxe o cansaço excessivo, e ele não sentia mais qualquer capacidade de se mover; era como se seus membros tivessem parado de obedece-lo. Apenas a mente continuou funcionando, febril, e ele começou ter devaneios com a própria infância — lembrou-se do pai, enorme na perspectiva que tinha como garoto, encarando-o, os olhos inflexíveis. Foi a única vez que eles se olharam nos olhos e William assustou-se como o diabo. Lembrou-se de sua vizinha gentil levando-o no parquinho, dando empurrões suaves no balanço, e de como ele ria, alto e gostosamente, nenhuma outra preocupação no mundo.

Lembrou-se da expressão do pai no dia em que William Smimov tornou-se soldado: “Você vai se arrepender”.

Ele sempre trabalhou de modo a refutar aquilo. E agora estava se sentindo mortalmente arrependido. Se tivesse forças para rir, o capitão teria rido. Mas não tinha, e a partir do momento que fechou os olhos, William parou de contar o tempo. Ia esperar a morte como um bom homem.

—Você ainda está respirando. Impressionante como os piores são os que duram mais tempo. — a voz de Havryil pareceu vir de algum lugar muito distante. O capitão fez uma força descomunal para abrir os olhos. —Você está sofrendo, não está, William?

Sofrer... Ele já não conseguia mais assimilar a palavra direito.

—Se eu te dissesse... — começou, a voz traindo-o. —Que estou arrependido... Você acreditaria?

A resposta pareceu demorar uma vida para chegar.

—É claro que eu acreditaria. Mas é tarde demais. É tarde demais há muito tempo. — uma pausa. —Eu não me arrependo do que estou fazendo. Natasha precisa de paz, e eu também. Mas... — ele estalou os lábios como se estivesse se decidindo. —Boa estadia no inferno, William. Te encontro lá daqui a alguns anos.

Havryil não hesitou, e William, torpe demais com a sua sede, não percebeu o movimento. O tiro foi rápido e certeiro.

Durante alguns minutos, o ucraniano ficou parado, encarando o cadáver do homem que demorara dois anos para caçar e que agora, estava morto. Quase sem perceber, levou a arma ao próprio pescoço, apontando-a para a garganta, e ao passar de um milésimo de segundo, ele realmente pensou em fazer aquilo. Mas o suicídio era uma alternativa fácil demais — ele tinha uma irmã traumatizada e um sobrinho para cuidar. Quando os abandonou, o sobrinho tinha oito anos; aquela altura, já devia ser um rapazinho.

Calmamente, o homem guardou a arma, olhou para William uma última vez e suspirou.

Não estava se sentindo vitorioso, nem exultante, nem eufórico. Tinha trilhado um caminho de sangue para aquele simples objetivo, enganando pessoas que não estavam envolvidas com a sua história, mas que tinham sido tragadas pela vingança que ele tinha montado. Talvez agora ele finalmente pudesse ter companhia novamente. Estava cansado de estar sozinho.

Finalmente ele poderia sentir um pouco de paz.

Sorrindo, o homem abandonou o local.

A caçada estava terminada...

Tinha voltado a existir novamente.


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Notas finais do capítulo

E acabou.
Agradeço a todos que leram e acompanharam e a quem comentou também. Espero opiniões gerais sobre a história, mas fico muito satisfeita só com o fato de ter tido leitores. Muito obrigada, espero que tudo tenha ficado claro pra vocês.
Até a próxima! o/