A Caçada escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 4
3 - Lutz




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7 meses antes em algum lugar da Alemanha Nazista

O sentimento era de glória.

Ninguém falava nada, ninguém comemorava. Todos faziam todas as formalidades necessárias nos momentos certos, mas era possível ver, no ar, na atmosfera, o sentimento de júbilo que a população mantinha. A humilhação tinha acabado — seriam finalmente vencedores, seriam finalmente respeitados. Os alemães finalmente teriam o reconhecimento que mereciam.

Os jornais vendiam que nem água no deserto, e ela tinha escutado, em cafés, em pensões, em todos os lugares, as mulheres cochichando baixinho sobre o horror de terem tido amigas judias. Também tinha escutado cochichos sobre a invasão da França, sobre as batalhas contra a Grã-Bretanha, sobre os bombardeamentos contra Londres — e ela era muito agradecida por esses cochichos, porque eles eram a única forma que ela tinha de saber o que estava acontecendo. Seu marido, um homem que tinha escapado da guerra nos campos de batalha por causa de um problema no joelho, não gostava de lhe contar as coisas.

Petrus era um homem rabugento. Antonina ainda não descobrira porque ele se interessara por ela, uma mulher animada que salivava por alguma emoção.

Nina, como gostava de ser chamada, estava indo comprar doces para o marido. Ele trabalha nos escritórios para o partido nazista, examinando longas pilhas de relatórios, e o humor era sempre péssimo quando chegava em casa — para que ela conseguisse ser feliz, tinha que amansá-lo com coisas das quais ele gostava, e assim ele a deixava em paz. Sua mãe sempre tinha dito para Nina que ela era burra, mas depois de estar há doze anos casada com Petrus, ela se considerava muito esperta.

—Antonina! — cumprimentou-lhe o homem da doceria, cujo nome ela nunca tinha perguntado. Ele tinha traços estranhos para um alemão, e Nina já tinha se pegado perguntando algumas vezes se ele era judeu; mas confiava o suficiente no próprio governo para eliminar pragas como aquela raça. —O que vai querer hoje?

—Muffins... E algumas pastilhas, também. Petrus estará voltando hoje.

—Ah, claro. Chegaram alguns chocolates, também. Posso mostrá-los a você?

—Mas é claro que pode. Adoro chocolates.

Antonina passou uma boa hora escolhendo as coisas que levaria, e quando terminou, pagou o homem da doceria com um sorriso agradável. A sacola de doces não estava especialmente pesada, então ela a carregou com uma única mão enquanto voltava para casa, num bairro não exatamente rico, mas nobre de Berlim. A vizinhança era flutuante, porque a guerra deixava as pessoas assustadiças, mas nunca era ruim — a maior parte das suas vizinhas nos últimos doze anos tinham se tornado suas amigas e se correspondiam com ela até o atual momento.

Quando chegava em casa, a mulher notou uma movimentação na construção ao lado da sua, e logo entendeu porque — um homem se mudava, carregando malas e mais malas para dentro. Evellyn tinha morado naquela casa, e sempre reclamava que ela era pequena demais; mas para um homem solteiro, como aquele parecia ser, deveria ser perfeitamente suficiente.

Não era correto para uma mulher casada se apresentar a um homem estranho sem a presença de seu marido — mas Petrus era um chato e Nina se importava muito pouco: se aproximou, alisando o vestido de seda até os joelhos e as luvas rendadas que iam até o meio dos braços.

—Senhor. — cumprimentou-o, com um floreio de cabeça. — De mudança? Precisa de algo?

O homem fixou-a por um momento. Tinha uma postura levemente curvada e um dos olhos estava fechado, não tendo se aberto para encará-la também — era um tipo ameaçador, que nem mesmo o sorriso que deu conseguiu dissolver.

—Ah, Senhora. — ele se curvou levemente. —Estou de mudança neste exato momento, e talvez precise de um punhado de açúcar. Não tenho o suficiente para adoçar meu café e não gosto de café amargo demais.

Antonina sorriu.

—Porque não vem à minha casa? Eu lhe ofereço uma xícara. Presente de boas vindas... Você vai descobrir que a nossa vizinhança é muito hospitaleira.

Depois de alguma hesitação, ele aceitou, e os dois entraram.

Foi uma tarde divertida para Nina. Ela descobriu que o estranho se chamava Lutz e que tinha se safado da guerra por que era cego de um olho, e que por esse mesmo motivo eles tinham o livrado de trabalhos burocráticos no Partido Nazista — como aqueles que Petrus fazia a odiava. Ele tinha 28 anos e não era casado, por razões que ele chamou de “pessoais”, e tinha mãe e três irmãos vivos em Essen, os três novos o suficiente para terem escapado do alistamento. Apesar de sua aparência assustadora, era um homem gentil e bem humorado.

Sobre si mesma, ela contou pouco — mais por medo de Petrus do que por qualquer coisa. Falou sobre seu marido, como o tinha conhecido quinze anos antes e como os dois vieram a se casar. Falou sobre sua família em Hamburgo, da qual ela sentia muita saudade, mas que não visitava há algum tempo porque o Partido Nazista cobrava demais de Petrus e ele não se sentia animado a viajar quando estava de folga. Falou um pouco sobre seus gostos: costura, dança, leitura.

A tarde passou realmente rápido, como não passava há muito tempo; Nina passava dias inteiros sem companhia e costumava ser muito tedioso.

—Senhora Antonina... — Lutz observou o relógio, e já passava das seis. —É melhor que eu me vá. A Senhora é muito agradável, mas não é correto para qualquer homem permanecer na casa de uma mulher casada até o anoitecer.

Ela também olhou o relógio, e meio pesarosa, acompanhou seu visitante até a porta.

—Espero que goste de morar aqui. Eu já o faço há doze anos e não tenho nada a reclamar desta vizinhança.

—Não pretendo permanecer aqui muito tempo... É uma estadia temporária. Mas não vejo motivos para não gostar daqui, é um lugarzinho agradável. — Lutz se virou para ela e sorriu. —Muito obrigado, senhora, pelo café. Estava muito bom.

Antonina o observou ir embora, entrando na casa com uma expressão neutra, e logo depois voltou ela mesma para a sua, arrumando os doces e guloseimas para a chegada de Petrus, que não deveria demorar. Sua mente se preenchia com ideias de como teria sido se ela tivesse se casado com um homem bem humorado como Lutz e não um chato como seu próprio marido, mas elas não duraram — logo ela tinha um homem para adular.

Aquela foi a primeira vez que o novato da rua visitou Antonina Reinholt, mas não foi a última. Nas semanas que se seguiram, os dois se tornaram muito próximos, ela machucada pelo desprezo do marido e Lutz por algum motivo que ninguém conhecia. Ele sempre a alcançava nos passeios que Nina fazia todas as manhãs, e coincidentemente, sempre apareceria quando ela estava com as mãos cheias de compras, carregando-as para ela. Antonina descobriu que gostava de Lutz, sua expressão tipicamente alemã, seus cabelos louros curtos, e nem mesmo seu olho permanentemente fechado tinha o poder de assustá-la mais.

Essa simpatia que sentia por ele despertou a curiosidade da mulher, e ela se pegava olhando para a casa ao lado a todo momento quando Lutz não estava com ela. Descobriu muitas coisas sobre a rotina dele: o homem não tinha muitos amigos, e saía todos os dias às seis da manhã para caminhar. Só voltava às nove, dez, e saía de novo depois do almoço, só voltando às quatro, cinco da tarde. Então ele a visitava e passava um tempo com ela, os dois tomando café e conversando, e saía novamente para caminhar às oito da noite. Ela nunca estava acordada para vê-lo chegar em casa novamente. Ele também tinha curiosidade para conhecer as pessoas: fazia perguntas sobre os moradores do bairro de Antonina todo o tempo, principalmente sobre os homens. Às vezes, para ela, parecia que ele estava procurando alguém — mas era uma suspeita que ela logo eliminava. Era ridículo demais.

Dois meses depois, os dois já eram inseparáveis, e a vizinhança começava a comentar. Petrus nunca estava em casa e Antonina era ainda uma mulher jovem e bonita — não seria surpreendente se eles estivessem tendo um caso. Muitas vezes, Nina ficava horrorizada que as pessoas pensassem assim, até porque ela e Lutz sempre andavam a uma distância razoável um do outro, ele nunca ficava em sua casa até o anoitecer e eram cordiais um com o outro de uma maneira meio fria quando não estavam sozinhos.

—Senhora Antonina? — ele bateu na porta enquanto ela estava pensando nisso. Era quatro da tarde e ela estava assando um bolo de cenoura, o favorito de Petrus. —Eu preciso de um pouco de pó de café. O meu acabou e estou ligeiramente sem dinheiro hoje.

Antonina se perguntou o que ele fazia da vida, mas não chegou a verbalizar esse pensamento — o convidou para entrar, educadamente, e ligou a cafeteira. Olhando para ele, a mulher concluiu que Lutz estava levemente fora de si, suado e desarrumado, e que também não estava com muita disposição para falar, os olhos dele seguindo seus movimentos com certo deslumbramento. Aquilo a deixava enervada, mas não era certo comentar a respeito e Nina deu de ombros internamente, entregando a xícara de café quentinho assim que ela ficou pronta.

Lutz não pegou a xícara. Ele pegou a mão que a estendia e a segurou entre as suas, olhando nos olhos de Antonina com um desespero que a deixou levemente desconfortável — mas que também lançou um jorro de adrenalina por seu corpo. Havia acontecido alguma coisa de importante? Alguém tinha morrido? Ele tinha tido algum problema?

—Nina... — a mão começou a subir. —Seu marido. Quando ele chega?

Que pergunta estranha.

—Hoje à noite.

—Bem... Isso é meio em cima da hora... Mas... Nós temos tempo.

Lutz levantou e a beijou.

Antonina ficou absolutamente surpresa, e por alguns segundos, não fez nada. Desde que descobrira ser estéril, Petrus raramente a tocava, e havia anos que não era beijada — mas aos poucos o relaxamento a fez ceder, e ela se deixou ser suavemente conduzida para seu quarto. O perfume do marido estava em todo lugar, o bolo estava assando e Lutz estava tirando suas roupas, mas de repente, a mulher não queria mais se importar. Tinha apenas 30 anos e não estava morta. Podia se sentir bem uma vez na vida. Podia se sentir bem...

A partir desse dia, se tornaram amantes. Passavam horas deitados na cama dela, ela fazendo perguntas o tempo inteiro e ele respondendo pacientemente — finalmente Nina conseguiu saber o que significava a guerra e o que estava acontecendo lá fora. Lutz era muito paciente, e ela começou a se sentir inebriada pela sensação de ser amada pela primeira vez na vida. Não engravidaria, e não estava preocupada com nada. Nem mesmo com Petrus. O Partido cobrava cada vez mais dele, e passava semanas longe de casa, sem mandar uma única carta.

—Antonina! — ele tinha esquecido o “Senhora”. Mas ela não se importou, e parou para esperar que ele a alcançasse. —Vai comprar doces?

—Preciso fazer um estoque para quando Petrus voltar. Ele está já há duas semanas longe de casa, vai voltar com um humor realmente azedo.

—Bem, então eu acompanho você até lá. — Lutz sincronizou seu passo com Nina, que recomeçou a andar. — O dono da doceria é homem ou mulher?

Aquelas perguntas estranhas.

—Homem. Um homem realmente estranho para um alemão. — Nina deu um risinho. — Já me peguei perguntando se ele era judeu. Mas não estaria aqui se fosse, então... Podemos concluir que ele é só um azarado por ter nascido com traços tão feios.

Lutz franziu o cenho, pensativo.

—Ele não parece alemão? Interessante isso, quero conhecê-lo.

—O fará em breve, nós estamos chegando.

A doceria era um cômodo velho e levemente mofado, que cheirava a açúcar mascavo e canela. O homem do balcão, para o qual ela nunca tinha perguntado o nome, lia um jornal, parecendo extremamente preocupado, e demorou alguns minutos para notar a movimentação na sua loja.

—Antonina! Como vai a Senhora? — ele a cumprimentou, distraído. —E você é...

—Lutz. Lutz Boursheid. — Nina reparou que o único olho que o amante mantinha aberto ganhou uma intensidade quase feroz. —Seu nome?

—Aksel. — o doceiro parecia ligeiramente nervoso. —Nunca te vi por aqui.

—Me mudei faz pouco tempo... Ainda estou conhecendo essa vizinhança. — a intensidade deixou o olho de Lutz, e quando esse se virou para Nina, estava brando novamente. —Não vai comprar nada?

Ela estava incomodada com a cena que acabara de presenciar, mas deu um passo à frente e escolheu todos os doces que compraria. Quando saíram, Lutz estava silencioso, e não fez nenhum comentário no trajeto de volta para a casa dela; se despediu com um floreio educado de cabeça e entrou em casa. Ela não o viu pelo resto do dia.

Naquela mesma noite, Antonina se deitou preocupada na cama — Lutz tinha saído às quatro da tarde e não tinha voltado ainda. Isso não era comum, e nos tempos da guerra, qualquer sumiço era motivo para preocupação. Por isso, ela não pregou direito os olhos, dando cochilos e acordando de meia em meia hora. Nenhuma movimentação na casa do lado. Onze e meia da noite... Meia noite... Meia noite e meia... Uma da manhã...

Quando acordou novamente, Lutz estava lá. Em cima dela. Nina sufocou um grito de susto, mas ele sorriu para ela, acalmando-a com um leve afago na face.

—Nina, Nina. — ela se assustou novamente. Ele tinha os dois olhos abertos, e não havia nenhuma ferida, nada, no olho que ele sempre mantinha fechado. —Você foi um problema. Um problema sério. Maldito seja o dia em que eu vim te pedir café.

—Como... Assim?

—Aquele soviético desgraçado da doceria já está morto. — Morto? — Não tive muitos problemas com ele. Meu problema é com você, querida Nina. Não está nos planos de um matador se envolver com alguém. Não posso ir embora enquanto você ainda se lembrar que Lutz existe. Nina, Nina... Você vai ter que morrer.

—Mas... Por que? Lutz!

—Lamento, Nina. Lamento mesmo. Você foi o meu maior desperdício.

Antonina Reinholt não gritou. Não disse nada, só olhou bem no fundo dos olhos se Lutz e esperou pacientemente. Em consideração a ela, Lutz não lhe infligiu muita dor e o tiro foi rápido e limpo. Tinha sido uma boa amante, era uma pena.

Lutz se levantou e tirou as roupas sujas de sangue, jogando-as num canto qualquer. Calmamente, vestiu as roupas que tinham sido de Petrus, ajustando-as para seu próprio tamanho, e piscou os olhos várias vezes, para se adaptar — tinha sido cansativo manter um olho fechado o tempo inteiro. Depois, pegou as anotações que tinha conseguido com Petrus (não tinha sido muito difícil mata-lo, também), e saiu da casa.

O homem se chamava William. Infiltrava informantes nos países inimigos e mandava seus soldados fazerem o trabalho sujo de matar pessoas que ele considerava empecilhos. Era soviético... Tinha mandado aquele desgraçado estuprar Natasha... E provavelmente tinha sido ele que mandara matar seus pais.

O quebra-cabeça estava se completando...

Ao sair do bairro classe média de Berlim, Lutz também não existia mais.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por terem lido, até o próximo.



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