Tomoeda High escrita por Uma Qualquer


Capítulo 24
Distância




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Seu irmão, ela pensou. Nunca soube como era ter um irmão, não antes dele.

Touya era alguém que cuidava dela, enquanto a chamava de ‘monstrenga’. Eram ombros largos na bancada da cozinha, ocupado em preparar pratos deliciosos. Era a preocupação silenciosa em seu olhar, que só agora Sakura compreendia.

Ele sentou-se na cadeira ao seu lado. Tinha olheiras leves no rosto forte e bonito. Sakura havia conversado com ele mais cedo sobre suas descobertas, sobre ela ser uma vampira e Tsubasa ser sua mãe. Não achou que tivesse revelado muita coisa nova, no entanto.

Afinal, ele sabia parte da verdade. Só esperava o momento em que ela lembrasse.

– Devia dormir um pouco mais– aconselhou-o.

– Acho que não posso te dizer o mesmo.

Sakura sorriu. Era bom vê-lo outra vez.

– Sinto muito, Touya-san. Por tudo que fiz você passar. Pelos últimos meses e... Pelos últimos anos também. Sei o mal que causei a você e a Fujitaka-san, e nunca vou me perdoar por isso. Nem espero que me perdoem. Mas quero que saibam que eu realmente sinto muito.

Ele passou a mão pelo rosto, num gesto de cansaço.

– Sabemos disso. Claro que sabemos. Meu pai e eu, e mesmo... –ele se interrompeu por um momento, voltando a falar depois numa voz torturada. – Mesmo a kaa-san sabia. Não foi culpa sua, então... Não carregue isso como um fardo a mais em sua existência. Você não precisa.

Ela o ouviu em silêncio, sorrindo enquanto lágrimas escorriam de seus olhos sem controle. Ela não se sentia, de forma alguma, merecedora de tanta gentileza.

– Talvez eu devesse– murmurou embargada. – Por ela, eu não me importaria de carregar este fardo. Se Nadeshiko não tivesse me trazido de volta à vida, eu jamais teria conseguido viver além da dor que conhecia. Minha mãe tentou, mas só ela foi capaz de me dar uma segunda chance.

Havia dor na voz dela também. Touya não sabia todo o passado de Sakura, mas o bastante para entender que falar dele era um martírio. Resolveu tentar desviar a atenção dela por ora.

– E o que pretende fazer daqui pra frente?

Ela suspirou, enxugando o rosto. –Não posso continuar na Tomoeda. Não vou conseguir ser a mesma Sakura que todos conheciam. É melhor que eu me afaste agora, para o bem de todos.

– Todos? Está falando de…

– Sim, por isso eu o chamei hoje também. Você sabe, Touya-san. Sabe o que eu sou.

O jovem a encarou por um longo tempo, e então pousou sua mão grande sobre a dela.

– Sei quem você é– disse. – Tomoyo lhe deu apenas memórias novas, não uma nova personalidade. Se você continuar a ser você mesma, ninguém estranhará nada.

– Mas não deixo de ser uma vampira –ela sussurrou, e então voltou ao tom normal. –Não posso continuar na Tomoeda sendo quem sou.

– E daí? Pelo que fiquei sabendo, um de seus professores também é. Sem falar na sua mãe, é claro.

– Mesmo assim, minha presença em Tokyo é ilegal. Preciso prestar contas aos Guardiões o quanto antes. Talvez depois disso eu volte a Tomoeda, mas eu não contaria com isso. Além do mais, não falei com minha mãe ainda. Não sei o que ela pretendia, entrando em Tokyo desse jeito sorrateiro. Com certeza vai causar problemas a nós duas, e também àquele rapaz chamado Fai.

– Entendo. Você também não sabe o que houve com ela, em todos esses anos que esteve adormecida, não?

– É algo que terei que perguntar a ela também.

– Então… Quando sair daqui, pretende ir até ela?

Ela baixou o olhar, constrangida.

– Na verdade, eu estava pensando se… Se você ainda permite que eu more com você.

Touya lhe deu um sorriso caloroso.

– Sabia que você não tinha mudado – disse. –É claro que você volta comigo. Tive receio que escolhesse sua mãe, porque realmente não confio nela.

– Nem eu! Não por enquanto. – Ela o fitou de esguelha. –Então… Você não vai deixar de ser o meu nii-san, certo?

Teve como resposta um sorriso e a mão dele bagunçando seus cabelos.

– Assim que tiver alta, vamos pra casa.

Ela continuou fitando a porta que se fechou atrás dele, muito depois dele ir embora.

Não achava que era merecedora de um irmão como aquele. Mas nada a impedia de se sentir feliz assim mesmo.


A visita de Tomoyo foi um tanto mais tensa em comparação. Sakura queria muito agradecê-la pelas memórias que ela havia lhe dado, mas naquele momento, Tomoyo parecia sentir apenas vergonha do que havia feito.

– Antes de você e do vazio, só havia dor em minha mente– contou-lhe. –Nada podia acalmar meu desespero, e a única coisa que eu desejava era morrer. Graças às memórias que você me deu, fui capaz de começar uma nova vida.

A Daidoji sorriu em gratidão, os olhos já marejados.

– Você está bem mesmo, certo? –indagou. –Aquilo que lhe causava dor… Não é como se você fosse superar algum dia, mas ao menos pode encarar o seu passado sem o desespero de antes?

– Sim. Sou capaz disso, graças a você. Não sinta culpa por nada.

Ela enxugou os olhos. –Fiquei com medo de que você pudesse me odiar. Por eu ter feito você acreditar numa vida que não existiu.

– E de fato foi o que você fez, mas como posso odiá-la por isso, se foi justamente o que me deu forças para despertar em uma nova vida? Além do mais, nada do que aconteceu depois foi inventado. Eu vivi tudo aquilo.

– É verdade... Você viveu com seu irmão, fez amigos na Tomoeda... E conheceu o Syaoran.

Sakura baixou a cabeça ao ouvir o nome dele. Tomoyo então respirou fundo, preparando-se para uma tempestade. O pior que havia previsto ia realmente acontecer.

– Queria te pedir uma coisa, Daidoji-san– ela murmurou.

– Sei o que vai me pedir, Sakura– disse com firmeza. –Não vou fazer isso.

Ela a encarou frustrada. – Você sabe que não vai dar certo entre nós dois– exclamou. –É melhor pra ele que me esqueça.

– É melhor pra ele que fique com você– Tomoyo retorquiu indignada. – Como pode desprezar os sentimentos dele assim? Você acabou de dizer que tudo o que viveu foi real. Você o ama, tanto quanto ele a você. Por que se afastar dele agora?

– Porque ele é um Guardião. Não encare a situação como se ela tivesse ficado mais fácil, só porque eu me lembrei de meu passado. É justamente o contrário. Agora que sei quem sou, sei que não podemos ficar juntos. Devo me afastar, de todos vocês.

Tomoyo levantou-se da cadeira. Respirava rápido, olhando para Sakura com tanta decepção que a garota sentiu-se repentinamente culpada pelo que acabava de falar.

– Achei que nossa amizade poderia ser mais forte –disse numa vozinha contida. – Achei que você sabia que podia contar conosco, não importa o que acontecesse. Eu disse ao Tsubasa que talvez você ficasse insegura quando acordasse, mas não achei que ia chegar a esse ponto.

– Você não faz ideia do que pode acontecer– Sakura retrucou. – Os Li podem ser condenados por não terem percebido minha presença no território deles. Todos que me conhecem podem sofrer de alguma forma. Eu não quero mais isso, Daidoji Tomoyo. Não quero ver as pessoas a quem eu amo sofrerem por minha causa. Me desculpe se isso lhe parece falta de confiança, mas entenda que eu não posso passar por isso. Não outra vez.

Ela assentiu tristemente.

– Queria ter feito mais por você, Sakura.

– Você fez tudo o que podia.

– Mas não foi o bastante. Você continua se afastando de todos. Nunca vai ser feliz desse jeito.

Ia em direção a porta, quando Sakura ergueu a mão para ela.

– Só mais uma coisa– pediu. –Em nome da nossa amizade. Prometa que nunca vai me desmentir.

Tomoyo entendeu o que ela quis dizer. Assentiu tristemente. – Em nome da nossa amizade– murmurou, antes de deixar o quarto.


Sakura procurou ordenar os pensamentos e as emoções, antes da sua última visita. Que seria de longe a mais difícil de encarar.

Syaoran sentou-se diante dela, fitando-a ansioso. Queria lhe fazer mil perguntas, mas se continha por não saber se ela estava preparada para respondê-las. O que lhe importava era saber que ela estava bem. Ou, pelo menos, era como ela parecia...

Ela então o encarou, assumindo a expressão mais distante que podia.

– Tomoyo me disse o que fez com minhas memórias– disse lentamente. –Falou de como eu podia perder as memórias mais recentes, no processo de recuperar as antigas… Aparentemente foi o que aconteceu.

Ele a fitou sem entender, e Sakura sentiu uma pontada no peito. Aquilo ia ser mais difícil do que imaginara.

– Chamei você porque estava na lista de pessoas próximas a mim– explicou. –Entre elas, havia também Touya e Tomoyo. Eu me lembro deles, mas a verdade é que não tenho nenhuma memória sobre você.

Syaoran engoliu em seco.

Havia sido alertado por Tomoyo sobre a bagunça que a cabeça de Sakura poderia se tornar. Mas não pensou que ele pudesse ter sido completamente isolado de suas memórias.

– Você... Não lembra de nada sobre mim? –Indagou incrédulo.

– Não– ela disse pesarosa. – O que é lamentável, porque pelo que os outros disseram, nós éramos realmente próximos.

– Éramos– Syaoran repetiu devagar, tentando fazer aquele conceito novo entrar em sua cabeça. A ideia de que, para a garota que ele amava, ele nunca existiu. – É… É lamentável.

Ficou em silêncio por um momento, fitando o vazio, e Sakura se sentia mais e mais torturada a cada segundo. Mas não podia deixar transparecer, pois a segurança de Syaoran, e mesmo a vida dele, dependiam de como sua atuação poderia convencê-lo agora.

– O que me leva a um ponto, Li Syaoran-san.

Ele ergueu o rosto para ela, confuso. Não lembrava de ela já ter lhe chamado tão formalmente.

– Acho que você já foi informado sobre minha verdadeira natureza. Pedi a Touya que mantivesse isso apenas entre ele e Tomoyo, mas você precisava saber também. Senão, não entenderia que a proximidade que existiu entre nós não irá continuar.

Syaoran franziu a testa. Aquilo parecia estar ficando cada vez pior.

– Sei quem você é– disse. –Seu irmão me contou. Mas não entendo… Você quer que eu me afaste, é isso?

– Sabe que é necessário– ela replicou com frieza. – As leis de Tokyo são severas com Guardiões que ficam ao lado de gente como eu. Além do mais, não há sentido se eu sequer me lembro de você.

Cada palavra saía afiada de seus lábios, cravando-se com força no peito de Syaoran. Ele tomou um pouco de ar, pois a dor chegava a ser mesmo física.

– Mas, Sakura… –tentou argumentar. – Você acabou de acordar. Tem certeza de que sua mente ainda não precisa se estabelecer, antes de mais nada?

– Eu não me lembro de você– Sakura repetiu suavemente, mas ciente do peso de suas palavras. –Seu rosto, sua vez e sua presença não me trazem nenhuma lembrança. Você é um completo estranho para mim, e eu não vejo a menor perspectiva deste fato mudar. Não sei quem você é, Li Syaoran. Sei apenas que é um Guardião, e isso é o bastante para eu desejar distância de você. Sabendo quem eu sou, deveria desejar o mesmo.

– Pois é – ele respondeu frustrado, os punhos cerrados com força. –Acontece que eu não esqueci você, Sakura. Nunca esqueceria. Mesmo sabendo quem você é, o que sinto por você não muda em nada.

Ela sentiu seu coração tremer nas bases. Queria muito se jogar nos braços dele, lhe pedir perdão, lhe dizer que era tudo uma grande mentira. Ela jamais esqueceria a pessoa que lhe tirou das trevas de seu próprio passado. Jamais deixaria de amá-lo.

Mas era por isso mesmo que não devia fraquejar.

– Sinto muito por isso– disse apenas.

Syaoran levantou-se, não suportava mais ficar naquele quarto. Estava abatido, frustrado, magoado, e sentia que faltava muito pouco para pegar aquela garota pelos ombros e sacudí-la até que lembrasse alguma coisa. Até que se lembrasse dele.

Como podia ter simplesmente esquecido?

Sua frustração diminuiu um pouco quando esbarrou em algo ao se levantar. Havia trazido uma sacola consigo e deixado ao lado da cadeira. Ele respirou fundo, recobrando a consciência. No fim das contas, ele também não podia tomar uma atitude inconsequente. Ouviu as palavras de Sakura, e dali para frente deveria decidir o que fazer a respeito.

No fim das contas, não era culpa dela.

– Fique com isso. Não se preocupe com nada, são apenas presentes de dois antigos amigos. Espero que fique bem logo… Kinomoto Sakura-san.

Sua expressão era de desolação completa. Ele ainda conseguiu forçar um sorriso antes de sair, mas Sakura não resistiu e começou a chorar, assim que ele fechou a porta.


– Se ela sair mesmo da Tomoeda, pra onde ela vai?

– Eu não sei. Ela é quem deve decidir. Pelo que ela falou sobre sua presença ser ilegal em Tokyo, acho que os estudos não devem ter muita prioridade pra ela no momento…

– Entendo.

Tomoyo e Touya estavam na grande sala de espera do hospital. Haviam vindo juntos, e por isso esperavam Syaoran para irem para casa.

– Acho que ele vai preferir ir sozinho– disse Tomoyo. –Provavelmente o que Sakura lhe disser vai deixar ele pensando por algum tempo. Além de magoá-lo bastante.

– Você acha? –Touya indagou, tentando conciliar a imagem de Sakura com a de alguém capaz de magoar outra pessoa.

– Ela acha que é pro bem dele– a garota deu de ombros. – Só podemos esperar que ele seja forte o bastante pra aguentar.

Touya assentiu, pensativo. – De qualquer forma, o moleque nunca me pareceu fraco.

Viram ele passar direto pela sala de espera. Tomoyo olhou para Touya, confirmando o que havia previsto.

– Vou com ele– disse, levantando da poltrona. – Vai que ele faz alguma besteira.

– É melhor– Touya concordou. – Acho que vou passar a noite aqui, pode ser que ela precise de alguma coisa.

– Só você pode cuidar dela agora– Tomoyo deu um sorriso melancólico, antes de se afastar.

– Daidoji-san– o rapaz chamou-a. –Você tem cuidado muito bem dela, esses anos todos.

Um pouco mais confortada, ela curvou-se em despedida.

Encontrou Syaoran na rua, seguindo pela calçada, o pensamento distante. Estava pegando o caminho do templo, pelo que ela entendeu, e isso a tranquilizou. Acompanhou-o em silêncio enquanto cruzavam ruas e avenidas, até chegarem ao distrito de Tomoeda.

Quando a colina ondo ficava o templo assomou diante deles, Syaoran parou subitamente, um pensamento iluminando sua expressão vazia. Ele riu como se não acreditasse, sacudiu a cabeça, e então notou Tomoyo olhando para ele.

– Daidoji-san? O que você faz aqui?

– Eu vim com você desde o hospital– ela explicou pacientemente.

– Tá me seguindo?

– Não, eu estava bem ao seu lado, Syaoran-kun.

Ele continuou a rir, e a confusão de Tomoyo aumentou.

– Qual o seu problema? –indagou.

– Meu problema? –Syaoran olhou bem para ela. – Eu não tenho problema nenhum. Mas a Sakura tem. Ela não sabe mentir.

Tomoyo moveu a boca devagar, mas não conseguiu falar nada. Seria possível que Sakura não fosse realmente capaz?

– Ela falou que não pode ficar comigo por causa das leis de Tokyo– ele explicou. –Acontece que fui eu quem falou dessas leis pra ela. Eu que contei o que aconteceu ao sensei por ele ter ficado do lado de Fai. Como ela pode ter esquecido tudo sobre mim, menos isso? Não é meio conveniente saber dessas leis, quando você é um vampiro e está tentando fazer de tudo pra se afastar de um Guardião?

Ela deixou escapar um suspiro. Às vezes, Syaoran era mais inteligente do que aparentava.

– Isso não prova nada– disse sem muita certeza. – Ela pode ter isolado apenas essa lembrança… É bastante provável.

– Ela falou com você, não foi – Syaoran a encarou perscrutador. – Vocês duas ainda são amigas. Ela ainda lembra de você. Talvez fosse capaz de pedir que alterasse minhas memórias, mas você não é o tipo de pessoa que faria isso, mesmo por uma amiga. Então... Ela deve ter pedido pra você não contar nada, certo?

– Não tenho nada a dizer, Syaoran-kun –ela franziu a testa, preocupada.

Como Sakura podia ter deixado escapar um detalhe tão importante? Talvez ela fosse realmente ruim em mentir. Mas Syaoran não podia ter descoberto aquilo tão rápido. Agora ali estava ela, fazendo papel de cúmplice numa mentira bem fajuta, e tendo que dar explicações a Syaoran sem sequer poder falar diretamente a respeito.

Teria sido bem melhor ter ido direto para casa e encarar mais um dia de convivência com sua mãe…

– Se você não pode falar nada, isso só prova que estou certo– Syaoran sorriu vitorioso, e voltou a andar na direção do templo. – Cara, que alívio. Aquela garota ainda vai me deixar louco, qualquer dia desses.

– Supondo que seja mesmo uma mentira– ela disse cuidadosamente. –O que isso muda? Você vai voltar a falar com ela?

– Não – ele disse, pensativo. –Ela não me quer por perto. Eu não posso simplesmente desrespeitar a vontade dela. Mas com o tempo ela vai perceber que eu não caí nessa mentira. Posso ficar afastado um tempo, mas vamos nos encontrar, cedo ou tarde.

– E quando vai ser isso? Esqueceu que o Touya falou que ela vai sair da Tomoeda?

– Ah, não vai ser na escola. Ela ainda é uma vampira em meu território, e eu ainda sou um Guardião… É disso que estou falando.

– Acho que não vai ser um encontro amigável– Tomoyo observou.

Syaoran começou a subir os degraus aos pulos. Lá no topo, Kurogane e Tsubasa aguardavam as notícias deles.

– Ela não me esqueceu– Syaoran exclamou para Tomoyo. – Se ela tentasse me matar agora mesmo, eu até morreria feliz.


Touya estava ao lado de Sakura, enquanto ela ressonava suavemente.

Sobre a mesinha ao seu lado, entre várias flores e presentes que os amigos mandaram, ele encontrou um pacote de pequenos mochis rosados enviados por Li Tsubasa, e um dragãozinho chinês de pelúcia vermelha, enviado por Li Syaoran.

– Eles realmente se importam com você– murmurou. –Quer mesmo afastar a todos?

– Também me importo com eles – ela respondeu, sem abrir os olhos.

Aquela dor, pensou consigo mesma. Não a queria novamente. Se da primeira vez que a sentiu ela quis morrer, o que faria se acontecesse agora? Com Tomoyo, ou com Syaoran… Se perdesse algum deles, o que ela faria?

Pensando bem, devia ter se afastado de Touya também, para a segurança dele. Mas não sabia se o rapaz iria aceitar aquilo. Sem falar que, se não pudesse ficar com ele agora, teria que encarar sua mãe.

Ainda lembrava do rosto de Tsubasa, lhe fitando tristemente, enquanto ela morria nos escombros cobertos de flores.

Mas sua mãe, mais uma vez, não permitiu que ela morresse.

Em vez disso, arrancou a estaca de seu peito antes que ela a cravasse mais fundo. Tsubasa era uma vampira muito antiga, e como tal, possuía uma habilidade que ninguém mais tinha. Ela havia escolhido proteger a existência de sua filha. Da primeira vez, capturou a mente e o coração dela de volta ao seu corpo, fazendo com que renascesse como uma vampira. E da segunda vez, regenerou os tecidos de seu coração. Para protegê-la do risco de tentar se matar novamente, enterrou bem fundo na mente dela as lembranças que possuía, e a fez cair num sono profundo. Então transformou a casa em ruínas num templo fortificado, cobriu-o de feitiços contra caçadores e trancou Sakura lá dentro.

Muitas eras se passaram. Trancada do lado de fora do templo, a Sakura do presente só pensava em sair dali. Mas não sabia como. O céu estrelado sempre parecia ser uma dica, mas ela não conseguia decifrá-la.

Por fim, uma equipe de arqueólogos chegou àquele local. Entre eles, Sakura reconheceu um casal jovem e muito bonito. Os pais de Touya, que viriam a ser seus pais também.

Eles encontraram o corpo de Sakura ali, mas não deixaram que o resto da equipe o descobrisse. Levaram-no para o laboratório deles, e Sakura acompanhou suas tentativas frustradas de reanimá-lo. Afinal ela parecia tão jovem e cheia de vida, como se tivesse sido acabada de ser trancada no templo. Ao final, quando já perdiam as esperanças, Nadeshiko teve uma ideia perigosa.

Naquela noite, o jovem Touya, um garotinho bonito e já bastante alto para sua idade, percebeu sua mãe acordar no meio da noite e rumar para o laboratório, com uma faca nas mãos. Desconfiado ele a seguiu, e ficou surpreso ao vê-la passar a faca levemente pelo seu pulso alvo e fino. Gotas de sangue vivo brotaram do corte, caindo nos lábios da garota. No mesmo instante, seus surpreendentes olhos verdes se abriram.

– Como eu desconfiava– Nadeshiko sorriu aliviada. – Você é uma...

No mesmo momento, a garota pulou em seu pescoço, e ela soltou a faca no chão. Touya gritou e invadiu a sala, e empurrou a garota para longe de sua mãe. Sakura estava enfraquecida, mas o sangue de Nadeshiko lhe fez recuperar parte das forças. Quando voltou-se para atacar o garoto, ele estava à frente da mãe, defendendo-a com a faca em punho.

– Não chegue perto– ele ameaçou, assustado.

Sua expressão amedrontada, mesmo enquanto tentava proteger a mulher, fez Sakura voltar a si. Ela suspirou e limpou o sangue da boca.

– Por que me acordaram? –indagou aborrecida. – Foi minha mãe que enviou vocês? Eu avisei a ela que, se tentasse me reviver de novo, eu a mataria.

– Não conheço sua mãe– Nadeshiko fez o filho baixar a faca e se aproximou devagar, segurando o ferimento no pescoço. –Só a acordei porque achei que alguém havia lhe prendido naquele templo, contra sua vontade. Sinto muito se a perturbei.

Sakura pareceu reconhecer sua boa intenção. Aproximou-se de Nadeshiko e, sob o olhar apreensivo de Touya, passou a língua sobre seu ferimento, fazendo com que o sangue estancasse.

E então, contou aos dois uma história da qual Touya mal se lembraria quando crescesse. Mas ele não esqueceria a dor, a tristeza e a mágoa daquela garota.

– Eu não entendo– Nadeshiko comentou pesarosa. –Você parece ter quase a idade do meu filho... Como pode ter passado por tudo isso?

– São só aparências– ela respondeu. – Tenho sofrimento o bastante para muito mais que uma vida. É por isso que prefiro dormir para sempre, ou mesmo morrer. Faça o que quiser comigo, só não me entregue aos caçadores. Eles sempre me farão lembrar a minha perda.

Nadeshiko segurou as mãos dela entre as suas. – Há algo que posso fazer por você, Sakura-chan. Posso te dar uma existência nova, diferente da que vem tendo por todo esse tempo. Você confiaria suas memórias a mim?

– O que você poderia fazer com elas?

– Na verdade, muitas coisas. Acontece que sou uma bruxa.

Sakura resolveu confiar nela, pois não via mais nada a ser perdido.

Assim, Nadeshiko usou todo o seu poder para selar de volta as suas memórias, refazendo todo o feitiço que Tsubasa havia aplicado em Sakura antes de a própria Nadeshiko desfazê-lo. Com isso e o sangue perdido durante o ataque da vampira, a energia vital de Nadeshiko caiu para quase zero. Ela só teve tempo de entregar o corpo adormecido de Sakura a Daidoji Sonomi, sua melhor amiga e uma bruxa como ela. Depois de poucos dias, ela faleceu.

Então Sakura viu como Sonomi e sua filha Tomoyo trabalharam para reanimar seu corpo para uma nova vida, com novas memórias. Mas aquelas memórias ela já conhecia. Enoshima, seu pai, a infância com Tomoyo. A estrada pelas suas memórias perdidas havia acabado, e se ela não encontrasse o caminho de volta, jamais acordaria.

Voltou à praia certa noite, e sentou-se na areia. Podia ver pequenas nebulosas no céu, a via láctea, em meio a milhares de constelações sobrepostas umas às outras.

“É assim que é o céu visto da praia, Syaoran.”

Ela assustou-se com o próprio pensamento, e percebeu que não estava mais sozinha.

Syaoran estava bem ao seu lado, seus olhos de cores diferentes fitando o céu, admirados.

– É realmente lindo –murmurou.

O coração dela se encheu de alegria. Ela assentiu em silêncio e encostou a cabeça no ombro dele, aliviada. Não estava mais sozinha.

Ficaram ali por vários minutos, até que sentiu os dedos dele acariciarem seu rosto. Então, Syaoran se ergueu da areia.

– Bem, acho que nós dois já vimos o bastante– ele lhe sorriu e estendeu a mão a ela.

Sakura lhe deu a mão e levantou-se também. Juntos eles foram andando pela praia, e ela lembrou do primeiro dia em que chegou ali, quando encontrou a si mesma mais velha, seguindo pela praia com seu marido e filho. Agora ela estava seguindo na direção contrária.

Mas sabia que também estava indo para casa.

Ela despertou do sonho no meio da noite, o primeiro que tivera depois que acordou. Parecia ter sido uma recapitulação do seu último dia em coma. Ainda sentia o calor da mão de Syaoran na sua, mas ele não estava por perto. Talvez jamais estivesse, dali para frente.

Touya dormia no outro lado do quarto, numa poltrona larga onde ele mal cabia. Era mesmo uma pessoa grande, Sakura sorriu enquanto o cobria com um lençol. Mas ele conseguia ter um coração ainda maior que ele mesmo.

Ela voltou para a maca, apanhando o dragãozinho de pelúcia. Caiu no sono abraçada a ele, enquanto lágrimas rolavam pelo rosto.

“Se algum dia formos à China...”

Mas nós nunca iremos.

Para o seu bem, Syao-kun.


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