Contos em Miniatura escrita por Goldfield


Capítulo 8
Para Sempre




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Para Sempre

(Originalmente publicado na antologia “Dimensões.BR”, Editora Andross)

Algo a acordou.

Ela não saberia dizer ao certo como ou o que. Ela apenas sentou-se sobre a cama, tateando o lençol agora ensopado de suor. Era como se algo a houvesse afligido enquanto dormia, alguma coisa misteriosa. Macabra.

Tomou ar e, ainda ofegante, olhou o quarto escuro ao redor. A única luz ali existente penetrava pelo vidro embaçado da janela, proveniente da pálida lua no céu noturno, invisível daquele ângulo. Percebeu que, durante o provável frenesi físico pelo qual passara durante seu sono turbulento, ela atirara o cobertor para fora da cama com os pés, e assim rapidamente esticou-se para apanhá-lo de novo e cobrir as pernas, já que fazia frio.

Enquanto se aconchegava ao leito para tentar mais uma vez pegar no sono, perguntou-se o que a teria afligido tanto. Um pesadelo? Podia até ser, mas ela não se lembrava de nada. Teria sido algo tão horrendo que sua mente acabou por apagar as vagas imagens logo que despertou? Virando sob a coberta, fechou os olhos. Na verdade, ela tinha idéia do que a afligia...

Fazia um ano. Bem naquela madrugada.

Sorriu de leve ao se recordar de como eles costumavam passar juntos as noites de inverno, abraçados, aquecendo-se, seus beijos fazendo com que seus corações apaixonados palpitassem como nunca. Até que, na véspera do último dia do mês, ele falou que precisava pegar um trem, resolver coisas urgentes na cidade natal... E ela acordou na manhã seguinte com a manchete no jornal sobre o descarrilamento na serra.

Ela não vivera mais nenhum relacionamento desde então. Nenhum rapaz que nela se interessasse era como Marcos. Ninguém a faria se sentir nas nuvens sempre que a abraçasse, conseguiria arrebatá-la do plano terreno ao beijá-la. Marcos fora único. E se fora. Não mais agüentou e chorou baixinho. Não desejava acordar os pais ou os irmãos, pois eles acreditavam que ela já havia superado a perda. Jamais conseguiria. Junto com o amado morrera uma parte de si. Não se sentia mais plenamente viva há um bom tempo.

Foi quando a intuição a fez abrir os olhos. E ela notou uma luz a mais no cômodo.

Parecia que o luar se intensificara, como se o satélite prateado desejasse consolar a moça como podia; mas não era a lua. A repentina e estranha claridade ficou mais forte, aglomerando-se num ponto definido: o centro do quarto, bem diante da cama. A jovem estremeceu, o medo que a tomou sendo indescritível, porém algo a impediu de fechar os olhos, cobrir-se, correr. Algo dentro dela ansiara muito por aquilo, aguardara dia e noite aquele momento, e assim ela não conseguia hesitar, por mais que seu corpo tremesse e seu coração parecesse subir-lhe pela garganta.

A luz primeiramente não possuía forma, até que passou a se auto-modelar, como se trabalhada pelas hábeis mãos de um artesão caprichoso. O que era um espectro indefinido, um fenômeno sem regra, ganhou braços, pernas, dedos, cabeça, olhos... Olhos que brilhavam mais do que todo o conjunto daquele estranho organismo, como se dotados de um irresistível poder de encantamento.

– Melissa!

Mas... Que era aquilo? Aquele intrigante visitante noturno estava chamando-a pelo nome? Ela levou alguns instantes até assimilar a situação, removendo o cobertor de seu corpo lentamente com as mãos, como se não mais controlasse seus movimentos. A transformação da entidade luminosa foi concluída, os traços da face ficando nítidos... E a incrédula espectadora tornou-se imóvel, ficando muito pálida. Talvez tão pálida quanto aquela própria figura inumana de pé no meio do quarto.

A garota engatinhou pela cama, por fim sentando-se na beirada do móvel. Tinha a visão fixa naquele rosto, naqueles olhos... Era ele, só podia ser ele. Marcos, que voltara tão resplandecente e bonito para ela. A voz. Aquele tom lhe soava tão leve e agradável quanto o canto dos pássaros que os dois gostavam de ouvir no bosque... Retornara. Retornara para ela. A penúria chegava ao fim.

– M-Marcos? – ela gaguejou, apenas incerta, mas não com medo. Ao menos o mais íntimo de seu ser não sentia qualquer temor.

– Sou eu, linda – ele sorriu. – Quantas saudades... E vim te buscar.

Melissa sorriu, toda a sua mente finalmente aceitando a verdade. O amor dos dois sempre fora imenso, indestrutível, e eles jamais conseguiriam viver separados, em qualquer plano ou realidade. Ele voltara para levá-la embora, ficariam unidos eternamente. Por mais que se reprovasse com freqüência ao pensar nisso, era tudo que ela desejava.

– Mas e minha família? – os últimos vínculos que ainda a prendiam àquele mundo se manifestavam. – E meus amigos?

– Se tiver um pouco de paciência, no futuro reencontrará todos no local para onde vamos.

Suas pernas se moveram, levantando-se da cama. Tomara sua decisão, e isso fez com que uma imensa alegria a dominasse. A ocasião fazia até com que se lembrasse de uma música, cogitou cantá-la, porém apenas deixou-se entregar em silêncio. Ele abraçou-a, seu toque fazendo a pele da amada brilhar como se fosse revestida de cristais e, enquanto ela atingia de vez o ápice do êxtase, Marcos sussurrou junto ao seu ouvido:

– Juntos para sempre... Como Romeu e Julieta!

Apanhou uma mecha dos cabelos da jovem, sentindo seu perfume. Quanta falta sentira daquela sedutora fragrância, quanto sofrera por não poder estar junto daquela que amava mais que tudo! Falando de modo doce e suave, completou:

– Basta que me beije, como sempre fizemos.

Com seus olhos fixos nas pupilas radiantes do namorado, Melissa aproximou seus lábios dos dele, e o ósculo ocorreu, as línguas e bocas se entrelaçando loucas de paixão ao mesmo tempo em que os dois corpos se tornavam dois espectros luminosos, tornando-se cada vez mais indistinguíveis... Até se unirem de vez e desaparecerem num forte clarão.

(...)

Na manhã seguinte, a mãe de Melissa chorava junto ao corpo gélido da filha, inerte na cama, olhos bem abertos fitando o teto e sangue ainda escorrendo de sua boca... As gotas do líquido compondo sobre o lençol, por mais incrível que pareça, rastros que formavam uma figura semelhante a um coração.

Luiz Fabrício de Oliveira Mendes – “Goldfield”.


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